António Covas

Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos

As imagens devastadoras dos fogos florestais, as aldeias serranas abandonadas, a crise da micro e pequena agricultura de subsistência e o envelhecimento dos agricultores, os protestos em redor de novas explorações mineiras, na sua imensa crueza devolvem-nos aquilo que eu costumo designar como o rural tardio português, um universo pleno de sentimentos contraditórios acerca do nosso passado, presente e futuro e do que, geralmente, entendemos por tradição e modernização do mundo rural português. Num outro comprimento de onda, os impactos de longo alcance das grandes transições já em curso – climática, energética, ecológica, agroalimentar, digital, demográfica e migratória, socio-laboral e sociocultural – revelam-nos a dureza da tarefa que temos pela frente em matéria de mitigação, adaptação e transformação de espaços agro rurais que reúnam um mínimo de requisitos para serem considerados as portas de entrada para a chamada 2ª ruralidade do século XXI.

Estamos no início de 2022, temos meios financeiros substanciais à nossa disposição, pergunto-me se será, ainda, possível definir uma espécie de contrato social entre a sociedade e a natureza que seja um imperativo ético e prático mais do que uma promessa corporativa de política pública, que nos leve, enfim, do rural tardio português até à 2ª ruralidade do século XXI. Refiro tudo isto a propósito do lançamento de vários programas de política pública: o programa de transformação da paisagem (RCM nº49/2020 de 24 de junho) que criou vários instrumentos – programas de emparcelamento e ordenamento, áreas integradas de gestão paisagística, condomínios de aldeia – para prevenir e combater os fogos florestais, o programa de resiliência e recuperação (PRR 2026), o programa de aplicação de fundos europeus PT2030 e, também, o PEPAC, o programa estratégico para aplicar a PAC em Portugal. Num tempo de aceleração sem precedentes, vale a pena fazer uma breve incursão por este mundo paradoxal do rural tardio português.

Os novos conceitos e a polity do mundo agro rural

Os conceitos novos ou emergentes têm uma carga prescritiva e normativa muito elevada. Falo de conceitos como sustentabilidade, multifuncionalidade, conservação, ecossistemas e serviços de ecossistema, unidades de paisagem e paisagem global, digitalização e inteligência artificial, segurança nas suas várias versões, de governança, entre outros. Qual é o risco e, portanto, o grau de prudência a adotar? O risco é que a política pública para o mundo rural adote as suas recomendações prescritivas e normativas sem que, para tanto, adote a dose certa e adequada de mitigação, adaptação e transformação que se impõe ou, ainda, sem que uma avaliação rigorosa da realidade nos diga qual é efetivamente o nosso ponto de partida e o sistema operativo aplicável. O risco é, ainda, uma pressão imediata sobre os custos de contexto e formalidade a cumprir pelos agentes económicos e, na ausência de uma rede eficaz de cooperação e extensão, a discriminação no acesso e o crescimento de uma economia informal e intersticial. Esses conceitos, quase sempre de origem urbana e importada, são fundamentais, é certo, mas não podemos matar o doente com uma dose prescritiva e normativa desproporcionada. Além disso, e talvez mais importante, ao rural tardio português, na sua extrema vulnerabilidade, faz imensa falta um incumbente acreditado que seja um ator-rede eficaz de cooperação e extensão rural e empresarial. Sem esse ator-rede, que faça baixar drasticamente todos os custos de contexto e formalidade implicados pela gestão e operação das grandes transições e respetivos programas de apoio, dificilmente seremos bem-sucedidos no caminho para a 2ª ruralidade ou, então, essa transição será capturada por terceiros operadores, estranhos e alheios às comunidades humanas do interior do país.

A renovação do contrato social em direção à 2ª ruralidade

Os fatores de mudança estrutural introduzidos pelas grandes transições – clima, energia, ecologia, tecnologia, segurança, economia agroalimentar – dizem-nos que os solos, a água, a biodiversidade, a floresta, os serviços de ecossistema, o vento, o sol, o mar, as marés, a biomassa, fazem parte de um bem maior, de um bem público global de cuja provisão e regulação justas e adequadas não poderemos prescindir. Esse é o tópico principal do novo contrato social e a missão essencial do Estado-administração enquanto incumbente primordial no quadro europeu.

A tabela que apresentamos revela bem que os temas fortes em agenda dizem respeito ao combate às alterações climáticas por via da mitigação e adaptação, ao aproveitamento integrado das várias fontes de energia renovável existentes in situ, à gestão criteriosa de todas as fontes de água doce, à agricultura de precisão e ambientalização da agricultura, à florestação de terras agrícolas e o sequestro do carbono e, de uma maneira geral, à energetização das culturas no sentido da sua neutralidade carbónica. Falamos de hibridismo da política agro rural.

O hibridismo da política agro rural

Mix agroclimático, variações sazonais e ciclo de produção, mitigação e adaptação Mix energético e ligações de novas fontes de energia renovável Mix hídrico, complementaridade das fontes de água doce
Mix florestal e multifunções,

da produção ao sequestro de carbono

Mix de capital natural, da biodiversidade aos serviços de ecossistema Mix de usos do solo, o sistema alimentar local (SAL) e o sequestro de carbono
A política pública, o sistema operativo regional, os custos e benefícios de contexto O ator-rede incumbente, a gestão digital das interfaces de cooperação e extensão rural A concertação corporativa e o quadro regulatório e arbitral de uma transição justa

Fonte: autor

Este hibridismo da política agro rural introduz uma maior mediatização da política pública para o mundo rural porque se alteraram, claramente, as relações de força e as condições de exercício do poder em meio rural. Dito de outra forma, a velha regulação agro sectorial produtivista ligada à produção agrícola cede, progressivamente, o passo a uma outra administração agro rural dominada pelo rural não-agrícola, por via de um conjunto de regras, processos e procedimentos que aqui designamos de governança agro rural, sendo certo que sem uma normatividade favorável esta governança perde efetividade. E aqui entronca o tripé da governança política composto de custos e benefícios de contexto, de um ator-rede acreditado e competente no território e atuando no seio de uma nova cultura política de concertação, regulação e arbitragem sociopolítica.

Assim sendo, desta tabela e deste hibridismo podem retirar-se várias leituras de polity, policy e politics do universo agro rural. Uma das leituras possíveis para um novo contrato social é esta que aqui sugiro:

  • Uma gestão corrente dos programas de apoio financiados por fundos europeus numa lógica predominantemente produtivista que não condicione em demasia o investimento e, em especial, o investimento direto estrangeiro; uma condicionalidade mínima faz crescer mais rapidamente o PIB e as exportações;
  • Uma gestão de mitigação e adaptação de 2ª ordem e de natureza instrumental para atender e responder aos efeitos mais gravosos das alterações climáticas, ecológicas e ambientais;
  • Uma gestão coordenada, integrada e convergente dos vários mix implicados pelas grandes alterações referenciadas na tabela, com o rápido crescimento da geoeconomia dos sistemas de base territorial, a saber, os SAL (sistemas agroalimentares locais), os SAF (sistemas agroflorestais), os SAP (sistemas agropaisagísticos e áreas de paisagem protegida), os SAE (sistemas agroenergéticos), os SAT (sistemas agroturísticos e turismo de natureza);
  • Uma gestão integrada desta governança multiníveis exige uma coordenação muito estreita com a política regional do nível NUTS II e requer a criação de estruturas de missão ou atores-rede para o nível NUTS III ou o nível das Comunidades Intermunicipais (CIM) onde se produzirão as principais economias de rede e aglomeração.

É aqui, também, nesta governança multiníveis, que entronca uma nova questão política relevante, qual seja, a coabitação pacífica entre propriedade e acessibilidade, uma questão de sociedade que marcará as próximas décadas. De facto, as novas procuras socio-urbanas clamam pelo acesso aos bens públicos rurais, independentemente do direito de propriedade, público ou privado, que sobre eles impende. Como é evidente, esta acessibilidade pode contender com o direito de propriedade e ser uma fonte de conflito recorrente se a relação entre propriedade e acessibilidade não for rapidamente esclarecida pela política pública da 2ª ruralidade. Dito de outra forma, no próximo futuro, a relação entre liberdade de circulação, direito de propriedade, bens públicos rurais e política pública estará no centro das atenções e será objeto de diversos conflitos de interesse em espaço agro rural.

Notas Finais

Entretanto, o mundo não para e a questão que fica por saber é o que acontecerá às várias movimentações em curso no espaço rural e respetiva regulação: aos efeitos da agricultura de precisão de quem se esperam milagres de realização, ao papel da economia dos recursos naturais e da ecologia funcional no que diz respeito à prevenção do abandono e do fogo, à economia da especulação fundiária e imobiliária ou, ainda, aos efeitos da economia de predação por parte daqueles que por cá passaram, temporariamente, para explorar os nossos recursos naturais e que, uma vez exaustos, abandonaram. A questão essencial, desde logo, é a de saber se nos sentimos confortáveis e confortados com a saída de cena do Estado-administração que deixa território soberano entregue a si próprio e, objetivamente, favorece a aquisição e concentração da propriedade da terra, ou se o Estado-administração, num assomo de brio político-profissional, defenderá para todo o território um mix agro rural de fins múltiplos onde os recursos naturais, os recursos tecnológicos, os recursos produtivos e os recursos criativos possam coabitar pacificamente e duradouramente por respeito das gerações vindouras.

Uma nota final em jeito de aviso. Durante a transição entre o rural tardio e a 2ª ruralidade podemos ficar sujeitos ao dilema do prisioneiro. Por um lado, uma certa liberalização das ajudas ao investimento com o único propósito de realizar despesa pública e recuperar rapidamente o investimento privado e, por outro lado, uma subida excessiva de custos de contexto e formalidade e, portanto, de uma discriminação e burocratização agravadas em resultado de multiplicarmos os níveis de governo e administração.

No final, na transição entre o rural tardio e a 2ª ruralidade não há soluções ótimas, mas apenas soluções mais ou menos inteligentes. Se mantivermos a inércia do costume em relação aos problemas de uma transição justa e equitativa é bem possível que o rural tardio português acabe por desaparecer de morte natural enquanto a 2ª ruralidade nascerá, muito provavelmente, de um hibridismo mais cosmopolita do que português. Fica o alerta para os próximos ministros do planeamento e administração do território e da agricultura e desenvolvimento rural.

António Covas

Professor Catedrático na Universidade do Algarve


Publicado

em

,

por

Etiquetas: