Pouco rentáveis, ovelhas portuguesas “raras” já só existem por “carolice” dos criadores, apesar de 30 anos de apoios. Está em causa “capacidade de resiliência enorme” adaptada ao território do país.
“Temos de descobrir onde estão as ovelhas. É quase como procurar o Wally.” Ricardo Estrela, administrador da Herdade do Vale Feitoso, segue ao volante do jipe por vales e cerros de vegetação dispersa. São 7500 hectares no total, “tudo pegado”, o que faz desta propriedade junto a Penha Garcia, no concelho de Idanha-a-Nova, “a maior herdade privada do país e a sexta da Península Ibérica”.
O rebanho de churra-do-campo, uma das raças autóctones de ovinos com solar na região, é uma “aposta” muito recente de Ricardo Machado, o actual proprietário da herdade, adquirida em Agosto do ano passado. Tudo começou à mesa de Ricardo Estrela. “Quis ser simpático e ofereci-lhe um borrego churro. Era a refeição”, recorda. “Ficou tão apaixonado por isto que disse que tínhamos de tê-las.”
Encontramo-las, passados uns minutos, a correr pelos montes despidos. Vêem-se apenas algumas oliveiras, estevas e matos num terreno seco e pedregoso, apesar de estarmos em pleno Inverno, onde se alimentam cerca de 600 churras-do-campo. No rebanho, estão também mais de 500 ovelhas-merinas da Beira Baixa, outra raça autóctone portuguesa. Distinguem-se facilmente, pelo menos enquanto não forem tosquiadas: as churras têm o pêlo bastante comprido e escorrido, enquanto as merinas têm-no muito encrespado. Se quiséssemos formar um rebanho igual ao que vemos com todas as churras-do-campo que existem em Portugal, concentradas em quatro concelhos da Beira Baixa, não conseguiríamos. Só à nossa frente está mais de 62% de todo o efectivo da raça.
Quando pensamos num animal em vias de extinção, a maioria imagina uma espécie selvagem, exótica e distante. Dificilmente nos lembraríamos de um animal doméstico, muito menos de uma raça autóctone de ovelhas. Como poderíamos? Quantos somos capazes de dizer quantas existem em Portugal ou debitar-lhes os nomes? Das 16 raças autóctones de ovinos registadas actualmente no país, todas estão classificadas com algum grau de “ameaça de erosão genética”, incluindo seis definidas como raras, de acordo com o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum 2023-2027 (PEPAC). Tão-pouco é um fenómeno exclusivo dos ovinos: das 51 raças autóctones portuguesas, entre ovinos, bovinos, caprinos, equídeos, suínos e avícola, 28 surgem classificadas como raras. Todas as outras estão “em risco”.
De extinta a rara
A churra-do-campo chegou a ser dada como extinta nos anos 1990. “Não havia referenciadas”, recorda Carlos Andrade, secretário técnico que gere o livro genealógico e que acompanhou o processo de recuperação da raça desde o início. Em 17 anos, o efectivo tinha caído de 62.215 cabeças para apenas 400, segundo um levantamento da Direcção-Geral de Pecuária feito em 1989. Poucos anos depois, não havia qualquer animal registado.
Foi por iniciativa de António Cabanas, então vice-presidente da Câmara Municipal de Penamacor, que a autarquia e a Escola Superior Agrária de Castelo Branco (ESA) se propuseram recuperar a raça, ao abrigo de um programa de apoio europeu, em 2004. Conseguiram encontrar alguns animais “aqui e ali”, dispersos por pequenos rebanhos com ovelhas de outras raças, incluindo machos suficientes, a “principal dificuldade”, e foram depois “eliminando” aqueles que revelavam ter características de cruzamentos, recorda Carlos. O livro genealógico foi criado em 2007. “Começámos com 12 [ovelhas] na escola agrária, a câmara tinha 30 e pouco, e o António tinha 11”, conta o técnico, professor na ESA até se reformar.
Quando Penamacor quis doar pequenos rebanhos a criadores para aumentar o efectivo da raça, Ricardo Estrela foi um dos primeiros a aceitar. Começou com 17, hoje são 140. Nascido em Lisboa, “no Campo Grande”, “a coisa mais parecida com uma ovelha era a alcatifa lá em casa”, graceja. Mas “gostava imenso do campo”. Formou-se na ESA e aqui ficou a trabalhar, há mais de 20 anos na Herdade do Vale Feitoso, além do negócio próprio na agro-pecuária. “Sou um apaixonado por tudo o que é nosso. Também sou criador de cavalos-lusitanos. As nossas raças são uma coisa que me apaixona.” Passados quase 20 anos do início do processo de recuperação da churra-do-campo, o efectivo conta com 1015 animais, distribuídos por nove criadores. No Vale Feitoso, “o plano é aumentar”.
Raças menos produtivas
Almerindo Lopes, de 57 anos, nunca chegou a conhecer as ovelhas “amarelinhas pequeninas” de que falavam o pai e os amigos, todos pastores. Sempre viveu em Tinhela, aldeia do concelho transmontano de Valpaços. “Na hora em que ia a passar a procissão no dia da festa, estava eu a nascer.” A electricidade só chegou quando tinha 12 anos. De pequenos, todos os oito irmãos ajudavam nas tarefas do campo, a seguir à escola. “O meu pai dizia que eu não servia para pastor porque me aborrecia ficar ali à espera que elas se fartassem…”, recorda.
Almerindo, no entanto, sempre tinha gostado de ovelhas e, há cerca de 15 anos, já com alguns terrenos cercados, entendeu que tinha de tê-las, além do trabalho como agricultor. Na memória, ficara aquela imagem das ovelhas “amarelinhas pequeninas”. Ainda as procurou, mas acabou por ir criando outras raças, até que “há meia dúzia de anos, sem querer, bateu com um rebanho” já no concelho de Mirandela. Só então lhes soube o nome: churra-badana.
Actualmente, tem o maior rebanho da raça, “à volta de 450 adultas”. De acordo com os dados da Sociedade Portuguesa de Recursos Genéticos Animais (Sprega), referentes a 2023, há 2544 fêmeas e 83 machos de churra-badana inscritos no livro genealógico da raça e 30 criadores. Depois de ter descido um patamar no grau de ameaça no quadro comunitário anterior, volta a ser classificada como rara. “Se nada for feito nos próximos dois anos, a badana extingue-se quase por completo”, alerta Sónia Martins, secretária técnica e única funcionária da associação que gere o livro genealógico.
A história da badana quase poderia ser decalcada da churra-do-campo. Nos anos 1940, chegaram a existir mais de 200 mil animais, mas com a introdução de novos cruzamentos e raças estrangeiras mais produtivas, os números caíram a pique. Tanto a badana como a churra-do-campo são raças de tripla aptidão: dão carne, leite e lã, mas não são especializadas em nenhum dos três produtos. A lã, no entanto, já não gera receita. “Os borregos são pequeninos, nascem com 1,5 kg, enquanto um borrego convencional nasce com cinco ou seis quilos”, compara Ricardo Estrela. A churra-do-campo, por exemplo, dá 0,3 litros de leite por ordenha; outras raças dão quatro ou cinco.
Como o criador “recebe exactamente o mesmo” por quilo de borrego ou litro de leite, independentemente da raça, a escolha tem sido simples para muitos: desistir das autóctones e “ir para raças mais produtivas”. “O Vale Feitoso foi agora buscar 500 ovelhas de merino-da-beira-baixa a uma exploração que são puras mas já estavam a ser cobertas por um carneiro merino-alemão para os borregos serem maiores”, conta Ricardo Estrela. “Estamos a perder centenas de animais todos os anos de raças autóctones cruzadas com outras porque não têm rendimento.”
Um ano “particularmente difícil”
O ano de 2022 foi “particularmente difícil”, estrangulando uma situação que vinha a agravar-se desde o início da pandemia. A Guerra na Ucrânia fez disparar os preços das sementeiras, das rações, das palhas e colheitas de feno. Os custos com vacinação, controlo sanitário e medicamentos também aumentaram, assim como o preço dos combustíveis. “Há três anos, os sacos de adubo custavam sete euros, agora custam 25 euros”, exemplifica Sónia Martins.
A seca veio agravar o problema. “Muita gente até teve despesa em semear, mas depois não colheu, porque a erva não cresceu.” Ao prejuízo e ao aumento dos outros custos, os criadores tiveram de somar a compra de forragens e suplementos alimentares. Também foi um ano com menos ovelhas prenhas e borregos para vender. “Uma miséria comparativamente com 2021, menos 50%”, lamenta Francisco Ferreira, criador de churra-badana e presidente da associação. Agora, tem sido o Inverno particularmente chuvoso a ameaçar os rebanhos transmontanos, com uma maior proliferação de doenças.
O ano difícil nas explorações tem-se reflectido na capacidade financeira da Badana – Associação Nacional de Criadores de Ovinos da Raça Churra-Badana. “Se não nascem borregos, os criadores não registam [os novos animais] e nós não recebemos. Se não há recria, não recebemos. Se não há pesagens [dos borregos], não recebemos.” Sónia esteve quatro meses com salários em atraso (a questão não se coloca no caso de Carlos, no cargo […]