Henrique Pereira dos Santos

Walt Disney e o DDT – Henrique Pereira dos Santos

Não é natural que Walt Disney tenha alguma vez dedicado tempo e atenção ao DDT, em especial à sua proibição para uso agrícola nos EUA, quanto mais não fosse porque Disney morreu em 1966, apenas quatro anos depois da publicação de Silent Spring, de Rachel Carson, que está na base da proibição do uso de DDT na agricultura, em 1972, nos Estados Unidos.

Mas a visão antropomórfica que Disney criou dos animais, e a visão antropocêntrica dos fenómenos naturais que retrata nos seus filmes mais conhecidos – e mesmo noutros menos conhecidos em Portugal como o touro Ferdinando, um filme fabuloso de 1938 que durante anos passava sempre pelo Natal na televisão sueca – criaram um chão fértil para visões radicais de “equilíbrio natural” a que Rachel Carson, com o seu livro, deu uma nova orientação.

Disney vinha de uma longa linhagem de pensamento ambiental, centrado na conservação da natureza e na ideia de separação entre o mundo produtivo e o mundo natural, na base da qual foram estabelecidas políticas de áreas protegidas, parques, reservas, etc..

Esta longa linhagem de preservação de bocados da natureza intocados, que se pretendiam legar às gerações futuras (esta ideia é cristalina na decisão do senado americano que cria o Parque Nacional de Yellowstone, o primeiro parque nacional do mundo, que exclui toda a população e actividade económica que existia na zona, por via regulamentar e repressiva), não era uma linhagem “de esquerda”, bem pelo contrário, era uma linhagem em que tanto a esquerda, que reconhecia as virtudes de impor o bem comum por via repressiva, como a direita mais nacionalista, que venerava o chão sagrado da nação, se encontravam sem conflito, respondendo a um sentimento social bastante abrangente de comunhão emocional com a natureza.

Nos tempos livres, bem entendido, porque o dia a dia era gasto no processo produtivo que permitia fugir da fome, do frio e da precariedade do abrigo face à hostilidade dos elementos naturais.

O que Rachel Carson vem fazer é semear, neste terreno fértil de oposição entre homem e natureza, o argumento dos interesses e, consequentemente, da diferença irreconciliável entre os que estão do lado do bem (a mãe natureza e as pessoas) e os que estão do lado do mal (o interesse económico e a sua capacidade de manipulação).

Não só Rachel Carson argumenta, frequentemente com razão, em relação aos efeitos negativos dos poluentes orgânicos persistentes, como atribui aos “interesses” o facto de essa discussão estar totalmente dominada pela indústria química.

Esta opção tem um problema de fundo: o DDT (a principal vítima de Silent Spring), para além dos muitos problemas que levanta o seu uso na agricultura, tem um efeito fundamental no controlo da malária, que demorou anos reentrar na discussão e custou milhões de vidas, sobretudo de crianças, em países pobres, efeito esse que acabou completamente desvalorizado na discussão mora entre os bons (os ambientalistas) e os maus (a indústria).

Daqui nasce grande parte da quimiofobia actual, que para além de negar o princípio fundamental estabelecido por Paracelso – a diferença entre o remédio e o veneno é a dose – que remete para a discussão da forma de uso dos produtos químicos, confunde naturalidade com valor positivo e artificialidade com valor negativo, como se a cicuta, um produto natural, não fosse imensamente mais perigoso para as pessoas que o glifosato, um produto totalmente artificial.

Ou me engano muito, ou vai ser preciso morrer grande parte da minha geração antes que a discussão retorne ao ponto de onde nunca deveria ter saído: os efeitos da forma como usamos a tecnologia, e não a oposição entre tecnologia e natureza.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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