92% do território na gaveta dos deputados

O Parlamento falhou na aprovação de legislação crítica para a prevenção dos fogos rurais. «Há projetos-chave por implementar – alguns da competência exclusiva da Assembleia da República – que permitiriam resolver causas-raiz do problema», denuncia o último relatório de atividades da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), relativo ao ano de 2024.

O documento identifica várias dívidas dos deputados para com o mundo rural: a «alteração ao regime sucessório», para combater a divisão da floresta em parcelas cada vez mais ínfimas, ingeríveis e impossíveis de rentabilizar; uma ‘lei dos cortes’, para impor segurança às operações de limpeza e promover a eficiência económica da colheita de produtos florestais; «prémios indexados a resultados», em favor das autarquias ou comunidades intermunicipais com boa gestão da floresta, o que implica mudanças na lei das transferências; e a instituição massiva de ‘contratos-programa’, com organizações de produtores florestais e corpos de bombeiros, para financiar a boa gestão de combustíveis.

Estas dívidas não serão fáceis de liquidar, por mais votos que os portugueses emprestem aos partidos políticos. «Nem o Salazar tocou na propriedade privada», reconheceu Tiago Oliveira, presidente da AGIF, da última vez que foi ouvido no Parlamento, em julho de 2023. Se isso é verdade, também é evidente que ‘o presidente do Conselho’ ditava as suas leis num país maioritariamente agrícola, com o Interior densamente povoado, e onde cabras e pessoas impediam o mato de levantar cabelo até às copas das árvores.

Os incêndios florestais gigantescos, tão regulares no verão como a gripe no inverno, são um problema novo, que envergonha Portugal em todas as comparações internacionais.

Nessa reunião no Parlamento, deputados de diversas bancadas reconheceram falhas, atrasos e problemas por resolver, facto aproveitado pelo presidente da AGIF para pôr o dedo na ferida. «O PS e o PSD têm grandes responsabilidades», ousou dizer o perito em Engenharia Florestal, com nove anos de experiência na gestão dos eucaliptais das celuloses, que António Costa foi recrutar à Navigator, logo a seguir à carnificina da 2017. Levantou-se então um coro de apartes na Comissão Parlamentar de Agricultura e Pescas, com os deputados dos partidos sem histórico de governação a apontar o dedo aos outros. Tiago Oliveira lá diluiu as culpas em água – «Pronto, o ‘país’ tem grandes responsabilidades» – mas lançou chamas sobre o regime democrático: «Depois do 25 de Abril, a gestão do território, na questão das florestas, é uma questão que está por resolver».

Num país avesso a planos, só as tragédias costumam ser detonadores de soluções. Neste caso, no entanto, as medidas em falta já tiveram tempo de ganhar bicho da madeira nas gavetas do Palácio de São Bento. Logo em 2017, A Comissão Técnica Independente nomeada para analisar a tragédia de Pedrógão sustentava que «o exercício dos direitos associados à propriedade privada deve estar condicionado a prioridades coletivas, a começar pela segurança das pessoas». Nos anos seguintes, os relatórios anuais da AGIF pediram insistentemente a reforma do direito sucessório e do modelo de financiamento da gestão florestal.

Quando apanhados por uma tempestade de incêndios e de gritos desesperados da população na televisão, os partidos tendem a trocar essa agenda, árdua de explicar e de execução penosa, por temas mais fáceis. «Culpabilizar o eucalipto está completamente errado. E os meios aéreos não resolvem, antes encarecem o combate. Enquanto forem estes os temas do discurso político, as questões de base não se resolvem», lamentou Tiago Oliveira aos deputados.

A questão verdadeiramente vexatória, e com maior importância para o futuro, é esta: terá valido para alguma coisa o sacrifício da vida de 116 cidadãos e três bombeiros nos incêndios de 2017?

O número de ignições caiu de forma significativa. Entre 2018 e 2024, registaram-se, em média, 9.300 incêndios por ano, menos 15 mil ignições anuais do que nos 17 anos compreendidos entre o arranque do milénio e a tragédia de Pedrógão.

É inegável que a Proteção Civil não voltou a falhar de forma clamorosa na proteção de pessoas, aldeias e até mesmo casas isoladas. Em setembro de 2023, a OCDE publicou um relatório reconhecendo que «Portugal deu passos significativos para reforçar o seu quadro político e institucional para a gestão dos incêndios florestais», com a aprovação de uma estratégia intergovernamental. Os peritos internacionais elogiaram ainda «a melhoria substancial da proteção civil».

A verdade é que a área ardida voltou a descambar este ano, dando razão aos especialistas que alertam para a recorrência cíclica de incêndios devastadores, à boleia do abandono da floresta e das próprias áreas ardidas. Com mais de 222 mil hectares queimados até ao momento, 2025 é o pior ano desde 2017 (540 mil) e o quarto pior deste século. Falta saber o que os meses de setembro e outubro reservam.

Os incêndios rurais são o maior problema do regime democrático, pelo critério simples da extensão no território. Portugal tem cerca de 8 milhões e 400 mil hectares sujeitos a incêndios rurais, o que corresponde a 92% da superfície continental. Pelo menos desde os anos 1980, é o campeão da Europa em área ardida, mesmo comparado com países de clima mediterrânico cinco e seis vezes maiores, como Espanha e França. Em termos relativos, só é ultrapassado pela parte bolivariana da Amazónia e a savana africana. Ao contrário do que seria expectável – e exigível – o mundo rural português arde o dobro da Austrália e do que o Brasil. Pelo critério do fogo, Portugal não é um país europeu, nem sequer civilizado.

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