Imprevisível?

O título deste post repete o título de um artigo que escrevi, a pedido do Público, publicado a 18 de Junho de 2017, à tarde, e no dia seguinte, em papel, suponho, que terá sido escrito na manhã do dia 18, isto é, cima dos fogos de Pedrogão, que começam a 17 de Junho.

É, provavelmente, o artigo mais lido que escrevi e o mais influente, isto é, depois de lido, não teve influência nenhuma, como os outros.

Lembrei-me dele por causa desta imagem que me mandaram hoje de manhã.

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O Paulo Fernandes da imagem, que conheço e de quem gosto, é presidente da câmara do Fundão, não o Paulo Fernandes que cito aqui inúmeras vezes e que acho que nunca diria uma frase como esta.

Olhemos então para a progressão do fogo (evolui de Leste para o Oeste, ou seja, na imagem, da esquerda para a direita).

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Sem surpresa, um charuto direitinho, característico dos fogos comandados por um vento razoavelmente constante que, por sinal, estava previsto há tanto tempo que me permitiu, na Quarta-feira (hoje é Sábado), fazer este post, chamando a atenção para o facto de, provavelmente, nesta Sexta-feira ou durante o fim de semana, mas mais provavelmente entre Segunda e a Quarta da semana que vem, as notícias de fogos voltarem aos jornais e televisões.

A razão pela qual arrisco a minha reputação (eu sei que o risco não é muito, porque a reputação há muitos anos que não é muita) a fazer previsões sobre o futuro nestas matérias?

Porque estou convencido de que é a melhor forma de demonstrar que a visão que tenho do fenómeno do fogo está certa, que podemos parar de discutir as ignições, a composição do coberto florestal (o que inclui a discussão da inexistente relação entre eucaliptos e fogos, para deixar claro que não estou a usar eufemismos), o ordenamento do território, os regimes de propriedade, as transformações da paisagem para nos focarmos no único factor chave (não é que outros não existam, existem, mas não têm a relevância estratégica deste, se eu fosse de gestão diria que é o único KPI relevante) que realmente nos pode aproximar de uma gestão sensata do fogo: a gestão de combustíveis (questão muito mais económica que técnica, já agora).

O que estou a dizer é que, havendo combustíveis, arde sempre que as condições meteorológicas são favoráveis ao fogo.

Insisto em arriscar a minha reputação dizendo que neste Sábado e Domingo as coisas, apesar de tudo, andarão no arde e apaga cuja discussão entretém imenso a protecção civil, mas a partir do fim da manhã de Segunda e durante mais ou menos vinte e quatro horas as coisas andarão no arde mas não apaga, até que a mudança de condições meteorológicas venha trazer alguma calma.

Se nada disto se verificar, então a conversa da imprevisibilidade, dos ventos que mudam, dos acessos difíceis, do teatro de operações para onde se projectam não sei quantos meios aéreos que não conseguem ser tão eficientes como se previa por causa da densidade do fumo que dificulta a visibilidade (a espécie humana é tão fascinante que consegue levar milhares de pessoas a envolver-se na promoção de uma doutrina de combate a fogos que se espanta com o facto de, havendo fogo, ser natural que haja fumo), etc..

Mas se se verificar o que está aqui a dizer um leigo, mais ou menos informado e com a possibilidade de fazer meia dúzia de perguntas a meia dúzia de pessoas que realmente sabem de ecologia e comportamento do fogo, então talvez fosse boa ideia meter a conversa da imprevisibilidade onde melhor vos aprouver.

O Estado português, ou melhor, a sociedade portuguesa desistiu de gerir o fogo, quer com a conversa da imprevisbilidade que nos impede de tomar medidas concretas e continuar a executar e estoirar dinheiro em faixas e faixazinhas disto e daquilo (ide ver quantas faixas o fogo passou tranquilamente no fogo do Seixal e numa mata gerida como a da Apostiça), quer com uma doutrina de combate absurda, cuja responsabilidade não é dos coitados dos bombeiros concretos que andam como baratas tontas à volta de fogos incontroláveis, mas de quem define e aplica uma doutrina que só pode dar asneira.

Por razões que desconheço, e desprezando os resultados verificáveis obtidos pela Afocelca, que tem a única corporação profissional de bombeiros florestais, continuamos convencidos de que manter no mesmo comando, e nos mesmos operacionais, funções de protecção civil e combate a fogos florestais, é uma boa ideia.

O resultado é o que seria de esperar, mas mesmo que não fosse de esperar é o que se verifica, com dados objectivos como os das comunicações do SIRESP, anda quase tudo no alcatrão à espera que o fogo chegue em circunstâncias vantajosas para o fogo e desfavoráveis para os bombeiros.

As prioridades do sistema são claras e racionais: primeiro defender as vidas, depois as casas, depois as infraestruturas e, no fim, pensar em proteger o património florestal, o que tem como resultado que raramente se faz combate florestal a sério, que pressupõe conhecimento sobre o comportamento do fogo, o contexto do fogo, tempo para virar as condições a favor dos bombeiros e, por fim, bombeiros com ferramentas de cabo de pau e botas no chão, a tirar partido das condições favoráveis criadas para gerir o fogo.

Não acredito que seja possível ter bombeiros e comandos preparados para o combate ao fogo florestal a separação de funções entre protecção civil e gestão do fogo florestal, e sem profissionalização dos bombeiros florestais (a protecção civil pode ter uma grande componente de voluntariado porque exige grandes mobilizações de meios, em tempos curtos, para circunstâncias imprevisiveis e relativamente raras, o combate florestal, pelo contrário, exige trabalho de formiguinha o ano inteiro, com picos relativamente geríveis em quinze dias no ano que se podem prever com três dias de antecedência, o que torna a profissionalização muito mais eficiente que isto que temos).

Imprevisível? Eu não estou de acordo.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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