Floresta, desertificação e portagens grátis

Uma das medidas mais surpreendentes da nossa política interna foi a intempestiva decisão de abolir totalmente, e já para o início de 2025, as portagens em autoestradas do Interior, as antigas/ex/e-agora-regressadas Scut.

Surpreendente, porque todo o conhecimento e toda a orientação política sobre os transportes e a mobilidade apontam para que o investimento se foque no ferroviário – comboio, metro, alta velocidade – e no transporte público em geral. Nas cidades, o objetivo é mesmo tentar fazer com que se prescinda o mais possível do automóvel e se mude para a forma mais prosaica, económica e saudável de deslocação –​ andar a pé e de bicicleta.

Surpreendente, porque, quando todos esperamos por abordagens sérias ao problema da descarbonização e da desertificação do Interior, surge este apoio em contraciclo ao automóvel. Os automóveis, mesmo os elétricos, não são propriamente amigos do ambiente. Elétricos são os comboios, e sem baterias para o efeito. E 40 passageiros a viajar num autocarro a diesel ainda têm um impacto menor do que 40 passageiros distribuídos por dez ou 20 automóveis elétricos, não esqueçamos.

Surpreendente, porque toda a técnica de gestão da atualidade tem na informação e nos sistemas de cobrança um dos seus pilares mais preciosos. Sem cobrança não temos meios para atuar e é da cobrança que nos vem toda a preciosa informação que nos permite saber onde, quando e de que forma devemos atuar. Hoje pagamos o saneamento, a recolha do lixo, a utilização da rede elétrica e, voltando à mobilidade, é por termos o estacionamento pago nas cidades que hoje temos sempre lugar para estacionar. E é também com o estacionamento pago que conseguimos abrandar a afluência desenfreada de carros à cidade. Um sistema de cobrança para resolver dois problemas.

Sobressalta-me, logo, uma primeira preocupação contabilística: sem o seu financiamento natural, vão continuar a conservar-se e a atualizar-se os pórticos, cablagens e todo o equipamento de cobrança de portagens nestas autoestradas ou, não servindo para nada de concreto, vão ficar apenas lá a envelhecer?

Outro problema contabilístico: e os automóveis espanhóis, também vão beneficiar da oferta?! O objetivo é beneficiar a população do Interior, dar-lhe um acesso melhor aos centros urbanos e aos mercados, mas, pelo caminho, vamos também apoiar os camiões espanhóis a vir descarregar as suas frutas e hortícolas, os seus mariscos e materiais de construção a preços ainda mais competitivos! Será que conseguimos oferecer portagens gratuitas ao Interior sem o expor ainda mais aos nossos bons hermanos?

Claro que não. Se o objetivo é apoiar o Interior, o modelo é, obviamente, continuar a cobrar: A, aos veículos do interior, B, aos veículos espanhóis, C, a todos os outros (leia-se, aos das áreas privilegiadas do litoral). E, no final, entregar A+B+C às regiões do Interior, para nelas ser investido onde for mais útil, produtivo e necessário.

Implementar políticas com isenções fiscais tem, habitualmente, este problema de se gastarem os cartuchos às cegas: muitos vão para o ar, alguns acertam no alvo, e outros são, como se vê, verdadeiros tiros nos pés. Os benefícios vão na sua maior parte para as empresas maiores, tecnicamente mais apetrechadas para adaptar a estratégia fiscal e captar as ajudas, e pouco destas políticas atinge os estratos que se pretende favorecer.

A abolição das fronteiras económicas com a entrada na Comunidade Económica Europeia trouxe estes problemas contabilísticos às regiões interiores da fronteira. Não cuidamos de fazer faixas de transição nos impostos dos combustíveis, deixamos os postos de abastecimento expostos a uma concorrência incomportável e o setor da gasolina vendas, empregos fluiu para Espanha, e só me lembro de, na altura, ficar muito impressionado com os números do prejuízo anual.

O que lá vai, lá vai, como de costume, olhamos para o Interior sem o ver, mas o objetivo deste artigo não é deprimirmo-nos com o passado. O objetivo é afirmar: confiem, do que o Interior está à espera é de uma aposta séria no ambiente, no seu território, no combate às ameaças do clima, que lhe permita acreditar que, digamos, em dez anos, terá água assegurada no verão e uma paisagem verde e saudável, e isso é o que conta para querermos viver e investir no Interior.

Câmaras municipais, comissões de coordenação regional, muitos técnicos e políticos estão no terreno a trabalhar na reabilitação das redes de distribuição de água para reduzir perdas, no reaproveitamento das águas residuais, na recolha e armazenamento das águas pluviais, na redução e racionalização do consumo e, também, nos transvases entre bacias de diferentes rios. Um intenso trabalho a que falta juntarmos, sem tibieza, um fundo de financiamento sólido, para que tudo não se arraste sem prazo nem consequência.

E precisamos de plantar árvores, milhares de árvores, muitas e muitas árvores! Árvores que captem a humidade do ar, que retenham a água no solo, que elevem as colinas e façam chover, porque sem árvores o ciclo da água fica interrompido. Árvores que, pelo caminho, nos resolvem muitos outros problemas: árvores autóctones, que reponham o coberto vegetal de que a agricultura precisa, que tragam a fauna de volta e que quebrem os incêndios, e árvores produtivas, que tragam de volta a rentabilidade que os terrenos perderam: madeiras nobres, frutos secos, pinheiros que substituam, quando e onde for possível, o ferro e o betão nos nossos edifícios.

Sabemos que a decisão de abolir portagens não foi culpa nem decisão de ninguém, mas apenas o resultado de uma querela na ressaca das eleições: o Governo votou vencido, a superdireita só queria agradar e desconhecia as consequências, ninguém a avisou, os mais ao centro foram forçados a acompanhar as benesses do início de mandato, porque, nos tempos que correm, se não pusermos um pequeno apontamento de populismo na lapela podemos mesmo ficar fora de moda.

O objetivo é lançar um apelo a todos os que têm em mãos a gestão das infraestruturas e a gestão dos programas de combate ao efeito das alterações climáticas para que se unam e façam chegar a sua voz a exigir racionalidade na gestão das autoestradas e meios para impulsionar a reabilitação do território interior: retomar o elo que nunca deve ser interrompido entre o trabalho técnico e a decisão política.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Continue a ler este artigo no Público.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: