Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados

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Sou funcionário do ICNF (e respectivos organismos antecessores na área da conservação) há tanto tempo que acho que este ano já me posso reformar sem penalizações por conta dos anos de serviço.

Tem sido uma carreira de altos e baixos, tanto mais que quando o nível das minhas dívidas para com a minha família, quando avaliada à luz do saldo mensal de receitas e despesas cá de casa, indicava que eu estava falido, pedia uma licença sem vencimento e ia para a actividade privada ganhar dinheiro para repor as contas a zeros.

Foi numa dessas alturas, em que finalmente a minha actividade privada começava a ser compensadora, isto é, ganhava dinheiro suficiente e escolhia que trabalhos queria fazer e os que não me interessavam, que recebi em casa um telefonema de uma amiga minha a perguntar-me se eu estava disponível para ser o seu Vice-Presidente do ICN (penso que era esse o nome na altura, à administração pública portuguesa tem um estranho fascínio pela mudança de nomes, visto que mudar a realidade dá mais trabalho) porque tinha sido convidada para ser sua Presidente.

Embora as dívidas não estivessem pagas, eu tivesse quatro filhos pequenos (entre os 10 e os 4, penso eu) e morasse a uma hora e meia de Lisboa, disse rapidamente que sim, porque o convite era de quem era (na condição de que entraria cedo, mas à hora de banhos e jantares estaria, de maneira geral, em casa, o que significava que saía de casa por volta das cinco e meia e procurava chegar, no máximo, às sete da tarde, o que geralmente acontecia), e a partir daí a minha carreira foi tendo três estados principais (com pequenas transições entre eles): ou era dirigente (ser Vice-presidente não chegou a um ano e meio, e foi uma experiência fascinante sobre a natureza humana, mas depois tive outros cargos de direcção muitas vezes); ou estava na prateleira; ou estava fora do ICN, a trabalhar no sector privado.

Numa das alturas em que era dirigente, encarregaram-me de coordenar a revisão do regime jurídico da conservação da natureza, razão pela qual sou (juntamente com Pedro Gama, um jurista externo escolhido pelo então presidente e que eu não conhecia) o principal redactor da primeira versão do regime jurídico da conservação da natureza (claro que com um apoio alargado de colegas meus do ICNF, num processo muito aberto e discutido).

O resultado não deve ter sido mau, visto que uma lei com a abrangência desta, com mais de 16 anos, tem uma rectificação quase imediata (pequenos erros, como falar em áreas classificadas quando se pretendia falar de áreas protegidas num artigo, por exemplo, quase de certeza resultantes de alterações de última hora, feitas pelos gabinetes governamentais, à proposta que saiu dos serviços, como é natural), uma alteração sete anos depois (decorrente das alterações o regime de ordenamento do território que obrigavam à actualização do diploma), outra no ano seguinte à primeira (decorrente da criação do Fundo Ambiental) e a última, mais sete anos depois (uma alteração conceptual e de substância que, parece-me, é fraquinha).

Ou seja, o teste do tempo parece demonstrar que as soluções jurídicas encontradas não eram más e eram mais ou menos aplicáveis, apesar das muitas inovações que o diploma original continha em relação ao regime anterior.

Várias dessas inovações são letra morta, porque a administração pública portuguesa tem a característica de achar que a lei é facultativa, e dentro dessas inovações estava a criação do Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados, uma ideia trazida por Pedro Gama.

Internamente o conceito do cadastro foi imediatamente liquidado, quer porque as pessoas relevantes o consideraram redundante com o sistema de informação do património natural (SIPNAT), quer porque toda a gente, dentro e fora da administração, considera razoavelmente irrelevante haver um arquivo da informação com valor legal (citando o preâmbulo “Resumidamente, o SIPNAT é constituído pelo inventário da biodiversidade e dos geossítios presentes no território nacional e nas águas sob jurisdição nacional, enquanto que o Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados – instrumento mais operacional -, é um arquivo de informação sobre os valores naturais classificados ou considerados sob ameaça pela autoridade nacional”).

Estou convencido de que a maior dificuldade de aplicação das normas referentes ao Cadastro se prendem com a dificuldade em interiorizar a diferença entre um sistema de informação (cujo valor se esgota no conhecimento que contém) e um sistema de arquivo que fixa a informação com implicações legais (por alguma razão o conceito foi trazido para a lei por um jurista), reforçando a segurança jurídica (por exemplo, em caso de dúvida, onde estão os limites legais de uma área protegida, ou como se define legalmente o estatuto de ameaça de uma espécie, questões com implicações em várias normas, ao contrário do que acontecia anteriormente?).

Uma coisa é fazer tecnicamente a monitorização de uma espécie ou habitat, cujo resultado integra o sistema de informação do património natural, outra coisa é atribuir um estatuto de ameaça a uma espécie, que tem implicações na gravidade das sanções aplicáveis a quem execute acções que prejudiquem a sua conservação, não sendo, portanto, uma questão meramente técnica.

Naturalmente, os técnicos de conservação detestam a possibilidade de “não especialistas”, por exemplo, um agricultor, contestar o estatuto de ameaça de uma espécie, socializando uma discussão que os técnicos consideram ser científica e técnica e os agricultores consideram ter uma dimensão administrativa e legal que pode condicionar a sua actividade.

O exemplo que uso sempre é o do lobo, uma espécie em expansão em toda a Europa, incluindo em Espanha, mas que “a ciência” insiste em dizer que há um oásis em Portugal que faz com que as populações de lobo portuguesas (que não existem biologicamente, visto que as populações portuguesas são uma parte administrativamente definida das populações ibéricas) não se expandam como no resto da Europa, não respondendo à renaturalização que ocorre por abandono agrícola, com expansão das populações presa do lobo.

O artigo 29º do diploma original é claro no que se pretende e nos mecanismos para retirar ou integrar valores no cadastro, pelo que me dispenso de mais referências, o que me interessa é que o diploma é de 2008 e, para além da previsão de actualização a cada quatro anos, o artigo 52º (que se mantém integralmente em todas as versões posteriores, como aliás todas as normas referentes ao cadastro) determina que o primeiro cadastro seja eleborado em dois anos, isto é, esteja publicado em 2010.

Até hoje, em 2025 (mais de 14 anos depois do prazo legal), o que se pode dizer é que entrará em discussão pública por estes dias (Aviso n.º 4022/2025/2, de 11 de fevereiro, o que quer dizer que a discussão pública se inicia no dia 21 de Fevereiro), depois de há mais de três anos ter estado igualmente em discussão pública, sem que se conheça o resultado.

Não quero fazer comentários sobre o conteúdo do documento que esteve em discussão pública (desconheço o actual) e hoje não tenho o interesse que em tempos tive na discussão destes documentos estratégicos (com efeitos legais ou de gestão) por ter consciência de como são, frequentemente, impenetráveis à realidade, mas gostava que este processo desse algum resultado prático.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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