Entre a máquina de lavar roupa, uma bicicleta e cartazes de filmes, estende-se uma micro-padaria. Estantes industriais, fornos, frigoríficos, caixas, e formas, tudo foi escolhido a dedo para encaixar num puzzle múltiplo medido ao milímetro, de forma a rentabilizar ao máximo o espaço e os equipamentos. Abre-se o portão da garagem para entrar mais luz e avista-se uma panorâmica fabulosa sobre Coimbra. “Não faço um grande negócio com isto. Começou como uma brincadeira, e quase como uma brincadeira continua.”
Patrícia Miguel Dias tem 49 anos e uma vida na arquitectura. Tinha um ateliê com o ex-marido, fazia projectos, dava aulas. A Padaria Brutalista nasceu quase como “uma procrastinação funcional de um doutoramento que estava a fazer”, confessa. “Já tinha imenso trabalho feito, só que não estava a conseguir acabar aquilo, estava a ser extremamente angustiante, então isto também foi uma fuga”, conta, enquanto vai acrescentando vapor no forno, verificando temperaturas, tirando pães, desenformando-os e fazendo novas fornadas.
Tudo começou em finais de 2019, com uma simples tosta de abacate e chili fumado num café em Matosinhos. “Fiquei completamente fascinada pelo sabor, fui perguntar-lhes e disseram-me que era pão de massa mãe”, recorda. “Vim para Coimbra a pensar que queria fazer pão de massa mãe e que ia fazer aquilo de um dia para o outro, como quem faz um bolo”, ri-se. “Era mesmo a minha expectativa, completamente ingénua e de quem não sabia o que era massa mãe.”
Aquele sabor ácido e a textura do pão, no entanto, tinham feito Patrícia recuar às memórias da infância, ao tempo em que a avó fazia pão todos os domingos num grande forno a lenha. “Ela também semeava o milho, o centeio e o trigo, e nós acompanhávamos o processo todo, que durava o ano inteiro, do terreno ao tratamento dos grãos, a seca, a limpeza, o ir ao moleiro, fazer a peneira, até como se guardava nas arcas de madeira”, recorda. “Ela, de facto, tinha o crescente, que era a massa mãe.” Mas ninguém na família chegou a aprender a fazer tudo do zero, nem ficaram receitas.
Cabeça de pão
Apostada em recuperar aquele sabor, Patrícia já tinha encomendado 24 quilos de farinha do Reino Unido e novos livros sobre o tema, quando começou a primeira quarentena, em tempos de pandemia. E, claro, pãodemia: passou o tempo todo a investigar e a fazer testes com a farinha. Em Julho, criou a primeira página de Instagram, The Breadhead, a cabeça de pão, inspirada numa escultura de Salvador Dalí, precisamente para partilhar obras de arte onde surgia pão. “Não tinha sucesso nenhum.” Como gosta muito de arte e “dessa pesquisa”, mudou-a para outra conta, The Breadheart, porque, entretanto, atrás da coincidência do nome e de um planeta fechado em casa, começou a partilhar “bread heads do mundo inteiro” nas histórias da primeira conta, com imagens de pessoas “com um pão à frente da cara ou com uma cara desenhada no pão”.
“Percebi que isso era uma coisa, e também me senti bem a fazer isso, porque estava a criar uma rede de contactos e sentia-me mais próxima das pessoas de alguma maneira, aqui fechada em casa.” Atingiu os 12 mil seguidores. Mas o vídeo em que fez de raiz um pão enorme, na Suécia, onde a mãe morava, com a Chiquitita dos ABBA como banda sonora, tornou-se viral. “Teve 21 milhões de views, até me custa verbalizar o número, 500 e tal mil likes e, de repente, cheguei aos 127 mil seguidores.” Hoje são um pouco menos, mas não é isso que a move. O certo é que, quando deu por ela, estava absorvida pelo tema, das artes aos livros, das visitas a padarias aos cursos, do Instagram à cozinha.
“É como se tivesse ganho uma vida nova, boa e entusiasmante.” Tornou-se “uma paixão” e quase uma obsessão, como tinha sido o trabalho como voluntária, durante dez anos, na associação Coimbra em Transição. “Passei de não saber nada sobre hortas a ter uma horta na cidade e a dar wokshops sobre sementeiras, ervas silvestres, transplantações”, recorda. Quando se “dedica a uma coisa”, gosta de aprender a fazê-la bem. Ainda que, quatro anos depois, confesse continuar insegura quando há pão a sair do forno. “Estou sempre a experimentar.”
A ideia, no entanto, nunca foi vender pão. Os amigos começaram a pedir-lhe e, “em dois ou três meses”, os cinco iniciais passaram a 20. “Percebi que podia crescer mais um bocadinho e a cozinha [de casa] já não dava.” Pediu autorização à câmara municipal, fez mais cursos de empreendedorismo, segurança alimentar e panificação. Cerca de um ano e meio depois, tem uma carteira de 400 potenciais clientes e, uma vez por semana, quase todas as semanas, faz três ou quatro tipos de pães, num máximo de 170 unidades. “É muito trabalho e chego ao fim morta, só quero dormir durante dois dias”, ri-se.
“Ontem, estive aqui até à 1h, porque as massas mães estavam atrasadas e estive a moer os grãos.” Normalmente, são três dias em que não faz mais nada, sem contar com a parte burocrática. “Só é um part time, porque vou fazendo outras coisas no tempo livre, mas já começa a não ser muito.” No ano passado, começou também a dar workshops de pão, massa mãe, focaccias, massas doces, entre outras. “É uma parte óptima para mim, porque isto é muito solitário”, confessa, além de um rendimento extra.
Verdade bruta e autodidacta
A massa mãe “é uma moda”, diz sem rodeios. Mas “há aqui camadas de informação muito importantes” que valem a pena explorar e dar a conhecer. Mais do que um negócio, a Bruta, o projecto mais alargado onde se insere a Padaria Brutalista, “é uma provocação”. O nome é inspirado no movimento de arquitectura preferido de Patrícia, que surgiu no século XX, e expõe os “materiais brutos” e pouco “refinados” que eram utilizados na estrutura dos edifícios. “O Brutalismo é o querer mostrar a verdade de como é que as coisas se amassam, e aqui eu tento fazer pão bruto também, que mostra o que tem dentro.” Actualmente, está a recuperar uma casa, que desenhou em arquitectura brutalista em 2001, para criar “uma escolinha de pão”.
Depois, há “também o conceito de Arte Bruta”, cunhado em 1945 por Jean Dubuffet, que aponta à ideia de autodidacta. E tal como Patrícia, muitos dos padeiros, moleiros e agricultores que vai encontrando nas suas visitas pelo país são autodidactas, gente que aprendeu no saber-fazer partilhado de geração em geração, ou nos muitos anos de trabalho, às vezes, desde pequeno. Um dos sonhos de Patrícia é transformar essas viagens no PIB – Pão Interno Bruto, “uma base digital do pão em Portugal”, com um mapa e registo em vídeo, fotografia e texto, dos lugares e pessoas que ainda trabalham no ciclo do pão de forma artesanal no país.
Não é que a maioria faça bom pão, lamenta, e até tem “piorado muito em qualidade”, com farinhas adulteradas e aditivos que aceleram o processo. “É muito difícil encontrar padarias tradicionais com massa mãe e já revisitei algumas que deixaram de ter”, exemplifica. Mas importa guardar a manualidade, aprender com os diferentes gestos, registar as histórias e partilhar as memórias. “O pão sempre foi um alimento saudável e nutritivo, mas embaratecemo-lo até ao limite. Tornou-se uma coisa que não se devia pôr dentro do organismo”, defende. Enquanto, as novas padarias de massa mãe “tornam-se cada vez mais exclusivas”, as tradicionais baixam a qualidade e trabalham sem folgas para competir com “o pão industrial”.
“Acho que o que tem que se mudar é a mentalidade do consumidor.” Por isso, a Bruta quer trazer uma maior consciência sobre o que se está a comer, de onde vem, e o trabalho que deu, para que se dê maior valor ao pão — e se pague por isso.
Trigos perdidos
Entretanto, a primeira fornada já saiu. Esta semana, fez apenas o Bálsamo, um pão feito com dez tipos de grão, inspirado no curso de dois anos que está a fazer na Sourdough School, de Vanessa Kimbell. “Aprendemos que quanto mais plantas tiver um pão, melhor é para ti e para os teus intestinos, porque tem diferentes tipos de fibra e, sobretudo, porque alimenta a diversa microbiota.” Contém os grãos primordiais, mas também espelta, cevada, centeio, os trigos Barbela e Amarelo e Preto, entre outros, e nasce “dessa ideia de cura”. “É simbólico, também para pôr as pessoas a pensar”, aponta. Ultimamente, anda “muito interessada nesta questão de tornar o pão saudável”, confessa. “Tem uma ligação também muito profunda ao solo.”
A partir de uma única receita de pão, falamos sobre questões ligadas à fermentação, à alimentação e à saúde, esmiuçadas nalguns dos livros sobre a mesa; mas também sobre os cereais ancestrais, entre os primeiros a serem cultivados pelo homem, e que de tão negligenciados por cá não têm nome traduzido para português (Einkorn, Emmer, e Khorasan); ou mesmo sobre todos os outros, que não sendo tão antigos assim não deixam de ser um património diverso que se tem perdido de forma galopante com a monopolização das variedades modernas nas últimas décadas.
Abre outro livro, publicado nos anos 1960. “Isto são os trigos portugueses e as áreas onde eram plantados na altura. Agora, anda-se muito com esta moda do Barbela, mas eram dezenas, literalmente, e o Barbela era uma parte pequenina”, aponta. “Achei muita piada, porque o meu pai lembrava-se que os meus avós compravam este Mocho e um Barbado. E encontrei-os [no livro] exactamente na zona de Coimbra.” Hoje, já não haverá dessas variedades nos campos. Mas, em 2022, Patrícia decidiu devolver searas de trigo aos terrenos que a avó “ceifava à mão”.
Foi uma “experiência espectacular” e “muito fácil”, recorda. Bastou semear e deixar crescer, sem químicos nem monda de ervas: “Aquilo que deu, deu.” O único problema foi encontrar quem fosse lá com uma máquina ceifeira, paga a 150 euros por hora. “Foi aí que me arruinei”, ri-se. “Aqui na zona Centro, a única coisa que as pessoas semeiam é aveia para os animais.” A experiência saiu cara, mas ainda tem parte dos 500 quilos de grão, e “gostava de voltar a fazê-lo”, garante. Tirando esse trigo, apenas o centeio é português, de Videmonte. O resto, grãos e farinhas, tudo biológico, é importado de Espanha e Itália, sobretudo.
Isto não é um pão
A Bruta é “muito mais do que dizer que isto é o pão de antigamente”. Há uma clara “fusão entre a tradição e o moderno”, entre o método artesanal e o conhecimento científico. Mas também uma reflexão que vai para além do mero alimento ou da moda. Junto a um pequeno letreiro que anuncia “Bruta, a padaria Brutalista”, há um pão tosco pendurado por um fio. “Esteve um mês esquecido no frigorífico, depois pu-lo no forno e saiu um pão. Não o comi, porque achei simbólico”, recorda. Por baixo, com o marcador utilizado para desenhar o nome de cada cliente nas encomendas escreveu a preto: “Isto não é um pão”. Num post it sobre a folha A4 acrescenta-se: “Isto não é uma padaria”. E Patrícia parte daí para rematar agora, apontando a si mesma: “Isto não é uma padeira.”
Tal como no documentário de Jafar Panahi, Isto não é um filme, também o pão é, para Patrícia, muito mais do que o produto que temos à frente: é quem o come e quem o faz, o tempo e a qualidade de vida de quem o amassa, “é uma cultura e uma tradição que estão para trás e que foi passada de geração em geração”, mas também os campos agrícolas, as variedades e os métodos de produção, a maneira como se conserva o grão, como se mói, como se fermenta. “O pão é aquilo que fez com que o Homem passasse de nómada a sedentário. Há em todas as culturas.”
Para Patrícia, o pão não é pão – é mensagem. “Não é que não goste de fazer isto, mas a minha motivação é pensar que estou a chegar às pessoas”, resume. “Com as explicações que vou dando sobre os pães, estou a mudar o mundo. Eu sei que é uma visão um bocado poética e utópica, mas está na minha natureza.” Já era assim no Coimbra em Transição, com a permacultura e a agricultura biológica. Se surgir alguém “que goste disto”, talvez a Padaria Brutalista aumente a produção e se torne mais regular, sempre neste “modelo de fazer em casa e distribuir”, sem rendas, dívidas nem obrigações inerentes a uma estrutura com porta aberta ao público. “Mas até gostava mais que isto crescesse noutros sentidos, de investigação, com o mapa.” Porque a padaria é “só um caminho” para gerar mudança. “Havia muitos outros que se podiam fazer.”