Imprevisível? Esperem por 2030 (mais ano, menos ano)

image

Fez ontem oito anos que o Público publicou um artigo, que foi dos poucos que escrevi a pedido de uma jornalista do Público (estava desesperada porque toda a gente que sabia de fogos se escusava a escrever ou comentar o que quer que seja em cima das mortes ocorridas nesses dias, em consequência dos incêndios de Pedrógão).

O artigo foi escrito num estado de irritação muito grande, em especial com Marcelo Rebelo de Sousa, então um Presidente da República com níveis de popularidade estratosféricos, exactamente por dizer qualquer estupidez que as pessoas quisessem ouvir, como foi o caso  nos seus primeiros comentários sobre a tragédia de Pedrógão.

Eu tinha escrito uns meses antes, ainda em 2016, que haver situações como as de 2003 e 2005 era uma questão de tempo, e entretanto tinha passado tempo suficiente para que estivesse à beira de acontecer (esse artigo de 2016, no Observador, tenho ideia que resultava do aviso sério dos fogos de 2016, um aviso semelhante ao que ocorreu no ano passado, mais ou menos na mesma região, isto é, o outro foi na Freita e Montemuro, o do ano passado coincide em parte, mas é genericamente um bocadinho mais deslocado para o litoral).

“Há anos que esta é a doutrina dominante, mas dois dias de vento Leste fraco deram uma pálida imagem do que será a catástrofe a que nos conduzirá esta opção quando voltar a haver, com em 2003, dez a quinze dias de vento Leste forte a muito forte”.

Depois disto tenho escrito, frequentemente, que por volta de 2030, mais anos menos ano, estamos em ponto de rebuçado para uma situação catastrófica em matéria de fogos, visto que as políticas de gestão de combustíveis não se alteraram substancialmente (o resto sim, tem tido melhorias, mas não vou explicar outra vez o paradoxo do fogo para dizer que com excepção das melhorias na evacuação de pessoas, tudo o resto contribui para agravar a dimensão do desastre, não para o resolver).

Assim sendo, e como não consigo ter acesso ao que escrevi no Público (compro todos os dias o jornal em papel, mas não sou assinante), aqui fica o que escrevi há oito anos e um dia, que ainda hoje subscrevo, não digo linha por linha porque algumas coisas melhoraram, com certeza, e porque repito várias vezes o erro de usar “antecipar” em vez de “prever” (uma modernice importada do inglês), mas no essencial continua válido.

“Imprevisível?
Pedem-me que escreva em cima de incêndios trágicos quando me sinto dividido entre calar-me agora, por respeito para com as vítimas, ou falar agora, por respeito para com as vítimas, as de agora, mas sobretudo as do futuro.
O que mais que custa a ouvir nestas horas é a ladainha da imprevisibilidade, a ideia de que aconteceu qualquer coisa de extraordinário que seria imprevisível.
E, no entanto, depois de um sismo, bem mais imprevisível que o fogo, raramente se ouve a mesma ladainha da imprevisibilidade.
A diferença fundamental é que ninguém se lembra de pôr os paramédicos especializados no resgate às vítimas dos sismos a moldar as políticas de prevenção contra sismos, porque não é o contacto directo com os sismos e as suas consequências que qualifica alguém para antecipar o risco sísmico e para desenhar as soluções que nos permitem conviver com esse risco.
Em Portugal, aparentemente, admite-se que o contacto prolongado com os fogos e as suas consequências qualifica as pessoas para a gestão do problema, que está muito a montante desse combate.
Deveria bastar a quantidade de vezes em que os comandos operacionais dos fogos têm de mudar precipitadamente do sítio onde estão instalados, para se perceber que existe um claro problema de leitura do fogo e de antecipação da sua evolução por parte de muitos comandos operacionais.
Não é estranho que assim seja, a verdade é que grande parte dos comandos operacionais não têm preparação sólida em ecologia do fogo, são excelentes profissionais de logística, são homens determinados, muitos deles com uma inexcedível coragem física e dedicação ao bem comum mas, infelizmente, conhecem mal o fogo.
Quando um governante diz que o fogo é imprevisível, o que há é uns académicos que têm umas teorias sobre isso, está claramente a fazer uma opção obscurantista de desprezo pelo conhecimento, apoiando um suposto conhecimento prático sem muito suporte teórico.
Esta opção obscurantista é especialmente grave num país em que o Presidente da República declara, antes de qualquer investigação, que foi feito tudo o que era possível.
Esta opção é especialmente grave quando o representante patronal dos bombeiros (a Liga dos Bombeiros Portugueses não representa os bombeiros, mas sim as corporações de bombeiros) pode dizer impunemente “98% dos incêndios em Portugal têm origem humana e desses, 75% são de origem criminosa, não tenhamos dúvidas, e eu desafio as pessoas a que ponham em causa aquilo que eu digo, eu não tenho que provar nada, eles é que têm que provar que eu não tenho razão”, contrariando toda a informação existente, disponível e facilmente acessível sobre o assunto, sem que isso afecte minimamente a sua credibilidade.
Esta opção é especialmente grave num país em que, apesar dos recursos públicos afectos à protecção civil, não existe qualquer avaliação séria e independente do seu desempenho.
E é este desprezo pelo conhecimento que existe, e existe mesmo, aliado a uma fobia à avaliação independente de desempenho, que faz com que se possa invocar sempre a imprevisibilidade, como se não houvesse dezenas de textos a dizer que tragédias como a deste fim-de-semana são apenas uma questão de tempo, se a gestão do fogo se mantiver como tem sido.
O que é imprevisível é apenas o dia em que ocorrem estas tragédias, mas tudo o que nos leva a esta situação é absolutamente previsível.
Há projectos de grande dimensão científica, como o Fire Paradox, assentes exactamente na ideia, mais que comprovada, que quanto mais eficaz for a política de supressão do fogo, mais dramático será o primeiro fogo que fugir do controlo, exactamente porque impedir o fogo em territórios de acumulação de matos e folhada é encher barris de pólvora, à espera de uma das milhares de origens que pode ter uma ignição.
O que não nos impede de continuar a ter como doutrina base a ideia de que todos os fogos devem ser suprimidos à nascença e que, na suposta reforma das florestas, o plano nacional de fogo controlado o exclua exactamente dos sítios onde faz mais falta: os povoamentos florestais.
E isso não nos impede de ter o Ministro da Agricultura a usar os dinheiros do mundo rural para “domesticar os mercados”, isto é, através de subsídios à produção em sectores que estão livremente no mercado, como o leite e a carne de porco, em vez de os usar para resolver as falhas de mercado em sectores que produzem serviços de ecossistema que nos são úteis, como gerir os matos. As propostas para pagamento de serviços, como a gestão de matos, quer na pastorícia, quer na resinagem, quer mesmo na gestão da biodiversidade, têm sido sistematicamente recusadas.
É mais que previsível que a ausência de competitividade de grande parte do sector florestal, a ausência de pagamento de serviços de ecossistema no mundo rural e o desprezo pelo conhecimento de ecologia do fogo, nos levem onde estamos agora.
Tal como é previsível que, em alguns dias de alguns anos, haja condições meteorológicas extremas para as quais os territórios devem ser preparados com tempo e inteligência: ninguém tem soluções miraculosas para problemas tão complexos, é mesmo preciso seguir Camões “honesto estudo com longa experiência misturado”.
O que implica a integração entre prevenção e combate, isto é, a presença de profissionais de gestão do território que trabalhem todo o ano para criar condições de contenção do fogo, isto é, zonas de diminuição da carga combustível, e que depois, em situação de combate, as conheçam como as palmas das suas mãos e as utilizem para parar os fogos.
Pretender que problemas desta magnitude e complexidade se resolvem com voluntários é retomar a velha discussão do princípio do século XX que Pedro Almeida Vieira lembrou, um destes dias, da profissionalização ou não das enfermeiras.
O absurdo que hoje reconhecemos em pretender que a dedicação inegável das enfermeiras voluntárias poderia ser mais eficaz que a sua profissionalização, é o absurdo que um dia reconheceremos na ideia peregrina de que o combate aos fogos deve ser primordialmente feito por voluntários que desconhecem os terrenos que pisam e não fazem a menor ideia de onde andaram os pastores, ou os resineiros ou se fez um fogo controlado.
Aquilo a que na maior parte das vezes se chama imprevisibilidade em matéria de fogos é na verdade ignorância.
Uma das armais mais letais que existem.”

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


Publicado

em

, ,

por

Etiquetas: