
Tenho uma franca simpatia pela ideia de Rewilding e tive longas conversas sobre a sua aplicação em Portugal com Wouter Helmer, um dos fundadores da Rewilging Europe, em especial em torno da questão do fogo e em torno da questão da diferença de variabilidade anual do factor limitante na alimentação de grandes herbívoros nos Países Baixos (a neve e consequente escassez de alimento no Inverno) e em Portugal (a seca estival, com a consequente escassez de alimento, no Verão).
Não tenho a mesma simpatia pela organização Rewilding Portugal, mal nascida a partir de um processo feio de deslealdade, francamente opaca e manifestamente centrada numa lógica lobista de captação de recursos, mesmo que isso signifique andar a espalhar bisontes pela Beira Baixa, vendendo fantasias sobre o interesse ecológico de uma mera acção de comunicação, se quisermos ser benignos, ou propaganda, se quisermos ser mais rigorosos.
Não é a primeira vez que critico, de forma bastante áspera, a opção de inventar realidades paralelas para vender histórias da carochinha que caracteriza a Rewilding Portugal, e uma das vezes foi exactamente sobre os extraordinários resultados de gestão do fogo apregoados pelo seu director executivo (é um dos mistérios mais interessantes da Rewilding Portugal, muito pouca gente sabe quem são os seus dirigentes, como são escolhidos, por quem, em que processos eleitorais, mas o seu director executivo é sempre o mesmo, independentemente das direcções, sugerindo que é mais o director executivo que escolhe direcções de fachada, que as direcções que realmente orientam os orgãos executivos da associação).
Agora que os resultados extraordinários que tinham sido antes demonstrados foram incinerados com um fogo que repete o fogo de 2017, a Rewilding Portugal não perde tempo e opta por pedir dinheiro (para quem quiser contribuir, aqui fica a ligação), mantendo o mesmo modelo de actuação que consiste em esquecer a racionalidade e ir directo às emoções associadas ao fogo, tendo recolhido perto de oito mil euros em 24 horas, sem que se perceba bem para quê.
Ou melhor, a organização, na campanha, descreve o que pretende fazer: Apoio a produtores e animais afetados, selvagens e domésticos (alimentadouros, feno etc.) – 10.000 euros; Aquisição de material especializado de combate para futuras ocorrências (kits individuais, equipamento de combate, kit para viaturas, meios pesados de combate etc.) – 60.000 euros; Recuperação da paisagem afetada através de medidas de restauro ecológico (criação de charcas, sementeiras diretas nas áreas ardidas etc.) – 40.000 euros; Apoio a produtores afetados da região (apiários, sistemas de rega, maquinarias agrícolas, plantações etc.) – 40.000 euros.
Infelizmente, o que esta descrição do destino dos dinheiros torna evidente é que a Rewilding Portugal continua sem compreender que o fogo é um processo ecológico fundamental que deve ser integrado nos modelos de gestão, e não uma tragédia que deve ser erradicada dos sistemas (sim, o fogo pode provocar tragédias, como as cheias, mas não são as cheias que são uma tragédia, é construir-se em leito de cheia que leva à tragédia).
E por isso a caixa de ferramentos em que pretende trabalhar insiste em coisas razoavelmente inúteis e consumidoras de recursos como sementeiras de áreas ardidas que estão cheias de propágulos de vegetação natural que co-evoluiu com o fogo, e coisas contraproducentes como evitar os pequenos e médios fogos, preparando o caminho para o próximo grande fogo, chegando ao ponto de omitir totalmente o papel potencial do fogo controlado na recuperação das paisagens e dos sistemas naturais.
São opções de gestão legítimas, como digo no post anterior sobre a Rewilding e o fogo para que faço ligação aí em cima, é bom que haja muita gente a fazer abordagens diferentes na gestão da biodiversidade, mas não há utilidade nenhuma em contrapor pensamento mágico à ciência, só porque isso torna mais fácil a angariação de financiamento para modelos de gestão que ignoram que o fogo é um processo ecológico fundamental que deve ser integrado nas opções de gestão, e não um “act of God” de que temos de nos defender quando, por azar, nos bate à porta furiosamente.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.