Comer carne: origens e novas questões sobre uma cultura alimentar | Por Jorge queiroz

Desde quando e porquê os seres humanos consomem carne de outros seres vivos? A investigação levanta hipóteses, nomeadamente que durante a pré-história grupos humanos, na luta pela sobrevivência em períodos de carência e fome, terão comido carne de animais mortos, o que estaria na origem de práticas subsequentes dos caçadores recolectores.

Surgiu nessa era uma nova ordem social, a invenção de instrumentos de caça, uma divisão de trabalho mais complexa, consumo partilhado da carne de animais abatidos como factor de coesão social.

Se observarmos, em museus e fotos de livros, nas máscaras rituais e de cerimoniais ancestrais, vemos figuras híbridas, por vezes metade homem e outra animal.  O acto de se alimentar como a sexualidade/fertilidade foram e são elementos relevantes na representação simbólica e nos padrões culturais das várias regiões do mundo.

JORGE QUEIROZ
Sociólogo
A crítica do consumo de carne centra-se hoje em razões ambientais, o abate de florestas para a pecuária extensiva, emissão de gases de efeito de estufa pelo metano produzido no processo entérico dos animais, transporte e abate em matadouros industriais

O consumo de carne foi alvo de debates ao longo da história, observamos ainda hoje diferenças culturais entre regiões do mundo quanto ao tipo de animais permitidos na alimentação humana.

A ciência revelou que os seres humanos foram originariamente omnívoros, consumidores de vegetais, frutos, comiam quase tudo que colmatasse as carências alimentares. Para autoprotecção, à semelhança de outros primatas, adoptaram formas de vida comunitárias, o nomadismo transformou-os em consumidores de carne, de tubérculos e frutos evitando carências proteicas.

Outra hipótese considerada pela investigação é a de que o Homem descenderá de um símio carnívoro.

O prazer e gosto não fizeram parte desse primeiro estádio evolutivo, estão ligados à descoberta do fogo, do seu uso para cozer e assar alimentos, tornando-os melhor digeríveis e mais saborosos, foi uma etapa marcante do modelo cultural alimentar carnívoro e da transmissão geracional.

A domesticação de animais e plantas alterou a relação entre homens com os outros seres vivos, modificou a organização socioeconómica, a agricultura transformou habitats naturais e alterou comportamentos socioculturais, estimulou o comércio e a troca.

Durante muitos séculos a fome ameaçou as comunidades humanas, os cereais armazenados raramente chegavam ao final da primavera, no caso das carnes duravam apenas parte do inverno.

A fitossociologia histórica aborda o estudo da vegetação natural e o aparecimento de paisagens culturais, especialidades como a arqueozoologia, situada entre ecologia e paleoetnologia, fornecem elementos sobre o tipo de animais consumidos, a preparação e transformação de materiais de origem animal. A análise de fósseis humanos foi acompanhada pelo estudo comparativo da morfologia das mandíbulas, maxilares, dentes de outros primatas, permitindo conclusões sobre aspectos nutricionais, nomeadamente deformações por carência de cálcio e outro tipo de vitaminas.

O debate ético e religioso, que integrou a formulação das normas de alimentação, foi particularmente intenso e polémico quanto ao consumo de carne de seres vivos, a ingestão de sangue provocava repulsa e algumas religiões interditaram-na tal como a carne de animais sagrados, como a vaca no hinduísmo ou a proibição de animais impuros, caso do porco na alimentação kosher dos hebreus e no halal do Islão…

A carne tem valor biológico e cultural, a sua ingestão transmite sensações de vigor e nobreza, está associada ao estatuto social de comida de classes superiores com maior valor comercial.

O antropocentrismo, ideia de que o homem é intelectualmente superior e domina a natureza, levou à ideia de que os animais servem o homem esquecido da sua própria origem animal. O designado “biocentrismo” considera que toda a vida tem valor intrínseco, deve ser protegida e preservada.

Correntes filosóficas surgidas sobretudo a partir do século XIX condenaram o mau trato de animais, hoje com implicações jurídicas, como a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (1978) da  UNESCO.

Com a industrialização e a urbanização surgiu uma economia de produção, distribuição e consumo de carne de animais criados em cativeiro, paralelamente cresceu uma economia ligada a culturas de apartamento, uma psicossociologia social da vida quotidiana com os animais de companhia.

A crítica do consumo de carne centra-se hoje em razões ambientais, o abate de florestas para a pecuária extensiva, emissão de gases de efeito de estufa pelo metano produzido no processo entérico dos animais, transporte e abate em matadouros industriais. Por razões de saúde pública, a ciência da nutrição recomenda a redução do consumo de carnes vermelhas e de alimentos muito processados, provocam aumento da incidência de “doenças da civilização” incapacitantes, obesidade, diabetes, acidentes cardiovasculares e coronárias, pesam de forma crescente os orçamentos para a saúde publica. A educação alimentar integra os currículos escolares.

Aumentou a dependência de famílias e indivíduos de cadeias alimentares de produção e distribuição, dos supermercados e centros comerciais. Carnes importadas de outros continentes e outros alimentos que viajam longas distâncias em sistemas de frio, com impacto na qualidade nutricional.

A análise das formas de vida das sociedades mediterrânicas mostrou que são equilibradas, e culturalmente ricas pela diversidade, melhoram a sustentabilidade ambiental, previnem a doença, promovem a soberania alimentar, reforçando as economias regionais e mercados locais.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Leia também: A trilogia alimentar grega, o Kosher e o Halal | Por Jorge Queiroz

Publicidade

Continue a ler este artigo no Postal do Algarve.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: