Não basta só falar de incêndios. O engenheiro florestal João Camargo explica como para salvar as florestas é preciso repensar o modelo de desenvolvimento económico e voltar a povoar o interior
A floresta portuguesa ocupa 3,2 milhões de hectares, o que corresponde a 36% do território nacional, de acordo com os dados do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) de 2021.
No território continental a floresta é dominada por espécies autóctones, salientando-se os carvalhos (incluindo sobreiro e azinheira, cerca de 36% do total) e os pinheiros (cerca de 30%). Os eucaliptais ocupam 26% da superfície florestal e a restante área é distribuída por espécies de menor expressão (incluindo castanheiros, alfarrobeira, acácias, medronheiro, choupos, espécies ribeirinhas e outras resinosas).
Dito assim, parece bonito. Mas a realidade é bastante diferente. “As florestas estão num processo de degradação profunda, de desaparecimento por desertificação, ligado diretamente com o aumento de temperatura e a variação dos regimes hídricos – que acontece em toda a bacia do mediterrâneo”, diz João Camargo, engenheiro florestal e membro da rede Emergência Florestal/Floresta do Futuro, uma iniciativa de cidadãos criada em 2022 e que se mostra preocupada com o abandono a que a floresta portuguesa tem sido vetada, a que se juntam ainda preocupações com o número crescente de incêndios devastadores e com os riscos potenciados pelas alterações climáticas. Riscos esses que, dizem, não têm sido devidamente combatidos pelas entidades responsáveis.
Para João Camargo “a única maneira de evitar que esse deserto chegue” é agir em três frentes:
1. Transformação profunda das espécies que estão presentes
A partir do século XIX Portugal apostou numa florestação monocultural, em primeiro com o pinheiro-bravo, “com apogeu na década de 1980”, segundo o ICN, e, a partir da década de 1960, com o eucalipto, que cresceu rapidamente e alimenta a indústria da celulose.
Das espécies predominantes, o eucalipto é a espécie florestal que ocupa 26,2 % da área florestal, equivalente a 845 mil hectares. Segue-se o sobreiro com 22,3% de ocupação, o que corresponde a 719 mil hectares e o pinheiro-bravo com 22,1 %, o que corresponde a mais 713 mil hectares de floresta.
Deseucaliptar é uma das palavras de ordem usada pela rede Emergência Florestal/Floresta do Futuro. Num território sem ordenamento, os eucaliptos aparecem como a solução mais fácil e barata para conseguir lucro num curto prazo. No pós-incêndio, por exemplo, é das espécies que mais facilmente rebenta, permitindo aos proprietários recuperar rapidamente alguma rentabilidade do terreno ardido. Mas os seus efeitos nefastos prolongam-se por muito tempo, diz João Camargo.
Todos sabem que a inflamabilidade e combustibilidade dos eucaliptos favorecem a proliferação dos incêndios. Além disso, o eucalipto dificulta a proliferação de outras espécies à sua volta, através da emissão de substâncias químicas inibidoras do seu crescimento e também porque absorve toda a água e seca os terrenos. “Depois disto, os terrenos precisam de muitos anos para recuperar”, explica.
Terminar com o reinado do eucalipto “colidiria imediatamente de frente com uma rede de interesses e de dependências locais”, admite João Camargo. Seria necessário ter vontade política para fazê-lo e “encontrar alternativas sérias” de desenvolvimento local.
2. Alteração do tipo de paisagem
“É importante deixarmos de ter monoculturas”, diz João Camargo. “Precisamos de variedade, conforme a altitude e o tipo de solo, e que não seja só floresta, temos de ter floresta, bosque, agricultura, porque a descontinuidade e a diversidade aumentam a resiliência e a capacidade de o ambiente se adaptar às alterações climáticas”.
“A floresta é um ecossistema complexo, uma mistura de espécies. A desertificação começa pelas árvores e, por isso, o fogo é o primeiro momento da desertificação”, explica. “Depois de destruídas as árvores, se não houver arbustos, se não houver plantações, se não houver mais nada, a desertificação continua.”
E isto está ligado ao despovoamento, assinala: “Um solo que não consegue produzir alimentos, não consegue ter pessoas”.
Neste processo de ordenamento do território seria importante, diz João Camargo, que o cadastro do mundo rural estivesse feito.
Segundo os dados do ICN, apenas cerca de 3% dos terrenos florestais são detidos por entidades públicas (Estado e outros entes públicos), sendo o remanescente detido por comunidades locais (configurando os terrenos que são designados por “baldios”, cerca de 6%) e por proprietários privados (91%, cujo número ascende a várias centenas de milhar, dos quais 4% são geridos por empresas industriais).
Atualmente, apenas 46% dos espaços florestais possuem cadastro predial. Estima-se que mais de 20% do território não possui dono ou este é desconhecido.
3. Presença humana
Finalmente, precisamos de pessoas. “Precisamos de ter mais dois ou três milhões de pessoas a viver no interior. Precisamos de pessoas que possam gerir essa transformação da floresta. Não podemos abandonar a floresta e acreditar que se vai regenerar sozinha. Isso neste momento não existe. É preciso gerir a paisagem”, defende o engenheiro florestal.
Por exemplo, “temos de gerir o risco fora da época de incêndios. Diminuir a possibilidade incêndio faz-se na época fria, com chuva. É preciso planeamento”.
Mas claro que isto vai contra “as escolhas de desenvolvimento que foram feitas nas últimas seis a sete décadas. Precisamos de criar condições para as pessoas irem para o interior, mas não para ir destruí-lo”, diz. Não para criar indústrias que vão destruir o ambiente ou para explorar o turismo de forma massificada. O ordenamento do território precisa, antes de mais, de um novo pensamento económico, que pense o desenvolvimento de forma sustentável – não só no papel, mas na prática.
Na opinião deste especialista, a entrega de 10% do território à indústria da celulose “foi uma catástrofe”, não só ambiental, mas também económica. João Camargo explica que, “depois de 40 promessas de criar emprego”, a indústria da celulose não conseguiu gerar mais do que “uns milhares” de postos de trabalho, enquanto “foi esmagando outras oportunidades económicas”.
“Estamos à beira do precipício, mas temos de continuar a lutar”
Os efeitos da falta de ordenamento do território são visíveis e não só em Portugal, diz o engenheiro florestal.
No espaço de apenas 30 anos, entre 1990 e 2020, o planeta perdeu 420 milhões de hectares de floresta – uma área que corresponde, sensivelmente, à dimensão da União Europeia. A destruição das florestas faz com que os ecossistemas entrem em desequilíbrio, tendo como principais consequências a perda de biodiversidade, a emissão de gases de efeito estufa, a degradação dos solos e a alteração dos padrões climáticos.
A destruição da floresta e as emissões de carbono são das principais responsáveis pelo aumento da temperatura do planeta. E o aumento da temperatura está na origem de muitos dos fenómenos extremos a que temos assistido nos últimos anos. Em Portugal, as ondas de calor – com temperaturas extremas em dias e noites consecutivas – e os incêndios são mais visíveis, mas temos tido também cheias (ainda recentemente, em Espanha), tempestades e furacões num lado do mundo, secas extremas noutro canto. “Isto vai acontecer cada vez mais frequentemente”, antevê João Camargo.
E de cada vez os solos estarão mais fragilizados e terão menos capacidade de resistir a estas agressões. “Até ao momento que até mesmo a nossa sobrevivência será ameaçada, porque precisamos de nos alimentar. Já começamos a perceber isto porque os preços dos alimentos estão a subir, os vegetais estão cada vez mais caros. Mas chegará o momento em que seremos mesmo confrontados com a escassez.”
“Vivemos num sistema suicida”, conclui. “Estamos à beira do precipício, mas temos de continuar a lutar.”