Depois de duas guerras mundiais deixarem a Europa em ruínas, a reconstrução exigiu não apenas crescimento económico, mas também pessoas. Foi nesse contexto que os países europeus abriram as portas a trabalhadores estrangeiros. Nem sempre sem dificuldades, mas com uma convicção clara: era uma necessidade. Hoje, essa disponibilidade parece cada vez mais difícil de encontrar.
A Europa contemporânea vive cercada por tensões crescentes em torno da migração. Milhares de pessoas fogem da guerra, da fome ou da pobreza, em busca de melhores condições de vida, e chegam frequentemente em números superiores à capacidade de resposta dos sistemas locais. A integração falha, os recursos são insuficientes e cresce a perceção, entre muitos cidadãos, de que anos de políticas de portas abertas foram conduzidos à margem das realidades sociais e culturais de cada país. No calor deste debate, porém, uma pergunta essencial é muitas vezes esquecida: porque é que tantas pessoas partem em primeiro lugar?
A resposta leva-nos inevitavelmente a África. É ali que encontramos o centro de gravidade de muitos dos fenómenos que hoje marcam a Europa. O continente africano será, nas próximas décadas, o mais dinâmico em termos demográficos. Entre 2015 e 2050, a população mundial deverá crescer de 7,3 para 9,7 mil milhões de pessoas, sendo que uma parte substancial desse aumento ocorrerá na África Subsariana. Este crescimento é simultaneamente uma oportunidade e um risco. África é um mercado emergente, com uma população jovem e cada vez mais instruída. Mas enfrenta também fragilidades estruturais: infraestruturas limitadas, sistemas económicos frágeis, ecossistemas vulneráveis. Se não forem criadas bases de resiliência, o risco é claro: pobreza crescente, instabilidade, conflito e novas vagas migratórias com impacto direto na Europa.
Apesar de décadas de ajuda internacional, muitos projetos falharam em criar transformação sustentável. Uns foram demasiado pequenos para gerar impacto; outros caíram vítimas de corrupção ou má governação. O que se exige é uma abordagem integrada, pragmática e localmente enraizada — capaz de atuar sobre uma das maiores ameaças ao futuro africano: a gestão de resíduos. Não é por acaso que a saúde pública, o ambiente e a economia estão interligados nesta questão.
A cidade de Niamey, capital do Níger, é um retrato claro destes desafios. O crescimento populacional é explosivo, as infraestruturas são insuficientes e não existe um sistema estruturado de recolha ou tratamento de resíduos. O resultado é visível: montes de lixo acumulam-se nas ruas, servindo de alimento a gado que ingere plásticos e papel, e de palco a crianças que procuram materiais recicláveis sem qualquer proteção. Muitas vezes, para reduzir o volume, o lixo é queimado em fogueiras improvisadas.
Mas, devido à presença de plásticos e ao baixo nível de combustão, o processo liberta dioxinas altamente tóxicas, invisíveis mas perigosas, que se espalham pelo ar e representam um risco de saúde pública para todos os habitantes. Esta crise, no entanto, esconde também uma oportunidade. A gestão correta dos resíduos pode não só reduzir riscos ambientais e de saúde, como também criar milhares de empregos, fomentar o empreendedorismo local e reforçar a resiliência económica. Em Niamey, só o projeto da AWV prevê cerca de quatro mil postos de trabalho diretos, número que pode multiplicar-se por cinco em escala nacional.
É aqui que a AWV — Associação Waste to Value — procura introduzir uma nova lógica: a do resíduo como recurso. Acreditamos que o resíduo não é um problema a esconder, mas parte da solução. O nosso trabalho centra-se sobretudo no aproveitamento de resíduos orgânicos, transformando-os em fertilizante de elevada qualidade através de um processo circular inovador. A lógica é simples e poderosa: ao recolher resíduos das ruas e convertê-los em composto agrícola, limpamos o espaço urbano e, ao mesmo tempo, apoiamos diretamente o setor agrícola — vital para a sobrevivência de milhões de pessoas. Com fertilizante orgânico produzido localmente e a preços acessíveis, os agricultores deixam de depender de fertilizantes químicos importados e caros.
O Ministério da Agricultura do Níger considera este projeto estratégico para a segurança alimentar. Ao mesmo tempo, cada etapa do processo cria emprego: desde a recolha até ao embalamento e distribuição. É um motor económico verde, escalável e replicável, que liga saúde pública, segurança alimentar e economia circular.
O piloto em Niamey prova que o modelo funciona. Mas é apenas o início. Nos próximos anos, a AWV pretende expandir a abordagem para outros países: Etiópia, Mali, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Chade, Moçambique e Angola. Cada um destes contextos partilha desafios semelhantes: gestão precária de resíduos, desemprego jovem e agricultura sob pressão. Não levamos soluções pré-fabricadas, mas sim metodologias flexíveis, cocriadas com parceiros locais, apoiadas por uma rede internacional de especialistas. Embora a nossa ação principal esteja em África, a AWV é uma associação portuguesa e vê em Portugal um aliado essencial.
Queremos lançar programas de sensibilização em escolas e universidades portuguesas, para que os jovens compreendam a dimensão global dos desafios ambientais e da economia circular. Através de palestras, workshops, estágios e projetos conjuntos, os estudantes podem aprender não só em teoria, mas em ligação direta com problemas e soluções reais em África. Portugal pode, assim, afirmar-se como uma ponte entre Europa e África, exportando conhecimento, ganhando consciência interna e formando uma geração mais responsável em matéria ambiental.
Apesar da sua importância, projetos como o da AWV enfrentam uma lacuna de financiamento. São demasiado grandes para microcrédito, demasiado pequenos para os mecanismos tradicionais de ajuda internacional. É aqui que atuamos: ao ligar doadores, instituições e comunidades, criamos parcerias que produzem resultados reais. O nosso modelo não se baseia em esmolas, mas em investimento humano, técnico e financeiro, com retornos duradouros. Estamos à procura de parceiros em Portugal e na Europa — fundações, universidades, instituições públicas, investidores privados — que nos ajudem a multiplicar impacto e a transformar uma experiência pioneira em modelo de escala internacional.
Não existe uma solução simples para o debate migratório europeu. Mas existem caminhos sérios para atacar as causas profundas que levam milhões de pessoas a abandonar os seus países. Ao investir em comunidades africanas, ao apoiar a agricultura sustentável, ao criar emprego e promover o empreendedorismo, oferecemos alternativas reais à pobreza, à instabilidade e à migração forçada. Promovemos dignidade, autonomia e resiliência. E também fortalecemos as nossas próprias sociedades europeias, com mais consciência, mais ligação e maior sentido de responsabilidade global.
Como dizia Plínio, o Velho: “Ex Africa semper aliquid novi” — de África, surge sempre algo novo. Acreditamos que, se partilharmos conhecimento e experiências, esse “novo” pode ser uma oportunidade de transformação conjunta, para África, para Portugal e para a Europa.