Alterar condutas por decreto?

Sobre o Relatório da Comissão de Revisão dos Códigos Tributários

No passado dia 11 de setembro, a Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuinte, presidida por Rogério Fernandes Ferreira, apresentou o Relatório com as propostas concretas de alteração legislativa e recomendações de uniformização e simplificação dos Códigos Tributários.

As propostas, de mérito inegável e desenhadas por profissionais de insuspeita qualidade, muitas delas materializações na lei de entendimentos cristalizados na jurisprudência dos Tribunais Superiores, têm como intuito, nas palavras do seu Presidente, não uma reforma estrutural, mas meras alterações pontuais e circunscritas, tendo como fim último o aumento da celeridade e redução da litigância fiscal.

Destacam-se, a este propósito, a possibilidade de aplicação também aos Contribuintes do prazo de quatro anos para revisão oficiosa dos atos tributários, a eliminação do efeito duradouro dos efeitos interruptivos da prescrição, a possibilidade condenação da Autoridade Tributária (AT) em litigância de má-fé (à semelhança do que já acontece com os Contribuintes), entre outras alterações e uniformizações respeitantes a prazos e meios processuais – também elas bastante relevantes – que vão seguramente diminuir a litigância e, pelo menos em tese, diminuir a desigualdade estrutural entre a AT e os Contribuintes.

Não obstante os méritos da Proposta acima enunciados, temo que os maiores problemas fiquem por resolver e dificilmente serão resolvidos por via legislativa. Tais problemas resultam, em grande medida, de formas de atuação vincadas pelo tempo que, à semelhança de tantas Contribuições Fiscais, passaram de extraordinárias e transitórias a ordinárias e permanentes, predominando ainda uma lógica de atuação confrontacional por parte da AT, ao invés da desejável lógica colaborativa.

Exemplo paradigmático disso é o facto de, desde 1996, parte da compensação dos funcionários da AT estar diretamente dependente dos montantes cobrados em sede de execução fiscal, sendo pagos pelo Fundo de Estabilização Tributária. Não será por isso de estranhar que, de acordo com os números divulgados pela Diretora Geral da AT na Conferência de apresentação do Relatório, tenhamos 25 milhões de execuções fiscais instauradas em 2025. A indexação de parte da remuneração dos funcionários da AT aos montantes cobrados em execução fiscal gera um claro viés pró‑coercivo. Seria como dizer que o trabalho dos funcionários da AT apenas deve ser premiado quando cobram coercivamente.

Pergunta-se, então, se não poderá AT ter um papel importante na redução da litigância fiscal, decidindo ou julgando procedentes os exercícios dos direitos de audição prévia, as reclamações graciosas ou os recursos hierárquicos quando os contribuintes tenham razão? Não deveriam os funcionários da AT ser antes, ou também, premiados quando decidem correta e rapidamente? Num contexto de acentuada assimetria de informação e de concentração de poder coercivo, o racional subjacente à atual compensação incentiva a instauração massiva de execuções e a resistência à sua reversão ou correção célere, mesmo perante indícios de ilegalidade, com custos relevantes para os Contribuintes e para o erário público.

Trata-se de um claro desalinhamento de interesses entre AT e Contribuintes, o qual, pelo menos na aparência, parece ter outras motivações que não a descoberta da verdade material e o respeito pelo princípio da legalidade. Em matéria de execução fiscal, são raras as vezes em que os Contribuintes não têm de recorrer a Tribunal – os que podem, claro está – por forma a contestar ou a evitar penhoras ou reversões que, no final, são julgadas ilegais pelos Tribunais. Outros exemplos deste desalinhamento de interesses estão relacionados com a desconsideração das decisões proferidas pelos Tribunais Superiores ou com a falta de transparência dos atos de liquidação emitidos.

Muitas vezes os Contribuintes são obrigados a recorrer aos Tribunais apesar da existência de inúmeras decisões dos Tribunais Centrais Administrativos ou do Supremo Tribunal Administrativo. De resto, raras também são as vezes em que, não obstante as decisões dos Tribunais Superiores, a AT se conforma com as Sentenças proferidas e interpõe Recursos por forma a protelar alguns anos o trânsito em julgado das decisões. Ora, esta demora não tem apenas custos para os Contribuintes, que são obrigados a passar vários anos em Tribunal (às vezes décadas), mas, acima de tudo, tem custos para o Estado – e, em última análise, para todos nós. Basta lembrar que a taxa de juros indemnizatórios é de 4% e que a taxa de juros de mora agravados está atualmente em 16.618%.

Outro exemplo desse desalinhamento e da falta de transparência é a falta de conhecimento (e de publicação por parte da AT) dos algoritmos que estão subjacentes à emissão das liquidações de IRS que recebemos nas nossas casas todos os anos. Tratam-se de cálculos feitos por sistemas informáticos que não estão alinhados com a lei e cujos algoritmos não são públicos, o que impede a sua compreensão e controlo, quer por parte dos Contribuintes, quer por parte dos Tribunais.

Assim, e por muito louváveis que sejam as intenções reformistas de cada Governo a cada 4 anos, o foco das alterações necessárias está, infelizmente, desalinhado com os interesses de todos nós, Contribuintes, confundindo-se, assim e mais uma vez, a árvore com a floresta. Nesta como em tantas outras coisas, talvez fosse importante voltar ao início: reconfigurar os incentivos, reforçar a observância da jurisprudência consolidada e tornar transparentes os mecanismos de decisão. Só com esta reconfiguração será possível transformar reformas pontuais em mudanças comportamentais duradouras e alinhadas com o interesse público e alcançar o fim último da redução da litigância fiscal.

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