Um encontro entre o Barroco e a alma do Pacífico: Terras sem Sombra em terras de Vidigueira, já a adivinhar o Natal

Num território onde se entrelaçam o rio Guadiana, a serra do Mendro e a planície, o concelho da Vidigueira acolhe, a 29 e 30 de Novembro, o derradeiro fim-de-semana da 21.ª temporada do Festival Terras sem Sombra. O regresso às terras dos Gama conta com uma viagem musical que convoca horizontes de fé, exílio e pertença. Num ano que tem as Filipinas como país convidado, o concerto «Este/Oeste: Diálogos Musicais Entre as Filipinas e a Europa» reúne, a par de outras, obras de Handel, Saint-Saëns, Max Reger e dos compositores filipinos Lucio San Pedro e Felipe Padilla de León. A interpretação é de um trio de excelência, formado pela soprano Antoni Mendezona, pelo tenor Romel Leo Alojado e pela pianista Ana Ferreirinho.

Na vertente patrimonial, o programa propõe uma visita à aldeia de Marmelar, na freguesia de Pedrógão, onde o culto de Santa Brígida moldou a identidade local ao longo de séculos a fio. A pequena igreja manuelina-mudéjar, do século XVI, permanece como centro espiritual da comunidade e símbolo da persistência da fé no mundo rural alentejano. A encerrar o fim-de-semana, a actividade dedicada à biodiversidade traz ao debate o elo entre natureza e saúde pública, através do tema «Aparentemente Inofensivos, Potencialmente Letais: Os Caracóis de Água Doce e a Saúde Pública», propondo uma reflexão sobre o equilíbrio ecológico e a sua importância para a vida humana.

Na apresentação em Vidigueira, o TSS conta com a parceria do Município local e da Embaixada da República das Filipinas. Há a destacar o regresso, em 2025-26, ao apoio sustentado da Direcção-Geral das Artes.

Fé, ternura e transcendência 

A noite de sábado, 29 de Novembro (21h30), torna-se um espaço de encontro na igreja da Misericórdia, da vila de Vidigueira. «Este/Oeste: Diálogos Musicais Entre as Filipinas e a Europa», assim se intitula um programa que convoca pontes diversas: entre o sagrado e o íntimo, entre o lirismo europeu e a ternura das melodias filipinas. De Handel a Saint-Saëns, passando por Puccini, o evento – um concerto de Natal, em pleno Advento – está organizado ao redor de composições que evocam fé, ternura e transcendência. Obras como «Maria Wiegenlied», de Max Reger, ou «Sa Ugoy ng Duyan («Embalando o Berço»), de Lucio Diestro San Pedro, convidam a momentos de escuta interior e contemplação. Ao longo do concerto, as vozes e o piano cruzam épocas e sensibilidades, criando uma atmosfera de recolhimento e emoção partilhada.

Soprano filipino-americana, Antoni Mendezona é reconhecida pela «voz cristalina e distinta como um sino» e por uma brilhante carreira que une os Estados Unidos, a Europa e a Ásia. Actuou em «Noli me Tangere», no Kennedy Center, de Washington, D.C., e em Manila, e estreou papéis em óperas de Tobias Picker e Thomas Pasatieri, recebendo os elogios da crítica do New York Times. Estreou-se no Carnegie Hall com «The Peacemakers», de Karl Jenkins, e apresenta-se com regularidade em concertos e festivais internacionais.

Tenor filipino radicado em Espanha, Romel Leo Alojado já cantou em coros de referência nas Filipinas, como o Manila Cathedral Basilica Choir, antes de se fixar na Europa, tendo já actuado, com regularidade, em Alicante, Barcelona, Sabadell e Milão. É director do Cor Francesc, de Barcelona, agrupamento multicultural sediado na Paróquia de Santa Ana, e triunfa agora na carreira a solo.

A pianista portuguesa Ana Ferreirinho formou-se na Academia Nacional Superior de Orquestra, sob orientação de Paulo Oliveira. Estudou com mestres como Artur Pizarro e Fausto Neves e foi premiada no Concurso Internacional Cidade de Almada. Colabora com a Orquestra Metropolitana de Lisboa e o ensemble Alma Mater, tendo actuado em salas como o CCB e o Auditório Nacional de Música, em Madrid. Actualmente, conjuga a docência com os mestrados em Música e Ensino da Música.

Uma relação íntima com a terra e o sagrado

A tarde de sábado (15h00) reserva a habitual visita ao património cultural. Sob o tema «Sob a Protecção de Santa Brígida: A Aldeia de Marmelar», a acção – com ponto de encontro na Igreja de Santa Brígida (Marmelar) – tem a condução da historiadora Rosa Trole, do artista plástico Manuel Carvalho e do historiador de arte José António Falcão. No coração do concelho da Vidigueira, Marmelar afirma-se como uma das aldeias mais antigas e evocativas do Baixo Alentejo, marcando já a transição para o Alentejo Central. 

Habitada desde épocas remotas – como testemunham antas e vestígios pré-históricos –, a aldeia mantém viva uma relação íntima com a terra e com o sagrado. Sob a invocação de Santa Brígida, a quem dedica o seu templo manuelino-mudéjar do século XVI, Marmelar ergueu em torno da fé o centro da vida comunitária. A igreja, classificada como Monumento de Interesse Público, guarda um património que reflecte a síntese entre tradição popular e espiritualidade erudita. Este é um território de permanência e de memória, onde o Alentejo revela a sua alma: essencial, resistente e profundamente humana.

Uma questão de saúde pública 

A manhã de domingo, 30 de Novembro (9h30), é dedicada a um tema pouco debatido fora do meio científico, mas de grande relevância sanitária. «Aparentemente Inofensivos, Potencialmente Letais: Os Caracóis de Água Doce e a Saúde Pública» é o mote da actividade que decorre na barragem de Pedrógão e tem ponto de encontro no Museu Municipal de Vidigueira. A orientação está a cargo de Mário Jorge Santos, Delegado de Saúde Regional do Alentejo, de Manuela Calado e de Silvana Belo, ambas professoras e investigadoras do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.

Os caracóis de água doce, muitas vezes vistos apenas como parte inofensiva dos ecossistemas aquáticos, podem actuar como hospedeiros intermediários de parasitas responsáveis por infecções graves em humanos e animais, como a esquistossomose, doença que afecta milhões de pessoas em regiões tropicais e subtropicais. A sessão propõe uma abordagem acessível, combinando ciência e sensibilização ambiental, para explicar como o ciclo biológico destes moluscos, bioindicadores privilegiados, se cruza com o de algumas doenças e de que modo factores como as alterações climáticas, a qualidade da água e as práticas agrícolas podem favorecer a sua disseminação. 

A 13 de Dezembro (12h30), o Hospital Centro Vivo, em Badajoz, acolhe o concerto «O Menino nascido éi!» («¡El Niño nacido es!»), uma celebração das tradições natalícias e de Ano Novo do Alentejo. O Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento dá voz ao cante alentejano, património imaterial da humanidade, num encontro que une as margens de Portugal e Espanha através da música e da memória popular.

As iniciativas são todas de acesso livre e gratuitas.

O artigo foi publicado originalmente em Gazeta Rural.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: