Posição oficial da Rewilding Portugal sobre o Projeto SOPHIA (Central Solar Fundão–Penamacor) e LMAT associadas

 “Se o preço a pagar é a própria biodiversidade, não lhe chamem energia verde”

A Rewilding Portugal manifesta a sua oposição firme e fundamentada ao projeto de instalação da Central Solar Fotovoltaica SOPHIA (CSF Sophia), e às Linhas de Muito Alta Tensão (LMAT) associadas, atualmente em consulta pública. Esta posição assenta na análise detalhada dos dados oficiais do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e na avaliação dos riscos ecológicos, sociais e territoriais que o projeto representa para o centro interior de Portugal, em particular para os concelhos do Fundão, Penamacor e Idanha-a-Nova, com impactos significativos e irreversíveis para os ecossistemas locais, para a paisagem, para as comunidades desta região e para o modelo de desenvolvimento sustentável do território que defendemos.

Embora reconheçamos a urgência e a importância da transição energética, consideramos que o projeto em causa não cumpre critérios mínimos de sustentabilidade territorial, ecológica e social. Foram revelados impactos significativos e irreversíveis sobre ecossistemas de elevado valor, sobre a paisagem rural da Gardunha e sobre comunidades que têm vindo a investir na regeneração ecológica e no turismo de natureza. As medidas de mitigação e compensação apresentadas são insuficientes e não respondem à escala dos danos previstos e não acreditamos que exista mitigação possível para tamanha destruição e artificialização da paisagem em causa. Entendemos por isso que o projeto SOPHIA não representa uma transição energética justa, mas sim um modelo de artificialização do território incompatível com os princípios de conservação, restauro ecológico e coesão territorial.

O que está em causa?

Segundo o EIA, esta central solar ocupará uma área total superior a 3.500 hectares, dos quais cerca de 434 serão diretamente impermeabilizados por painéis solares, caminhos e infraestruturas associadas. O projeto estende-se por três concelhos e integra duas linhas de muito alta tensão (400 kV), com cerca de 22 km cada, para ligação à subestação do Fundão. Estas linhas atravessam zonas agrícolas, povoamentos florestais e vales de ribeiras que mantêm ainda uma conetividade ecológica relevante.

Reconhece-se ainda que a área de implantação abrange e marginalmente intercepta zonas classificadas, nomeadamente a Zona Especial de Conservação (ZEC) da Serra da Gardunha (Rede Natura 2000) e a Área de Paisagem Protegida Regional da Serra da Gardunha. O limite sul do projeto aproxima-se também do Geopark Naturtejo Mundial da UNESCO, inserido numa paisagem de alto valor natural e patrimonial. Foram identificados portanto sete tipos de habitats naturais de elevado valor ecológico, incluindo montados de Quercus de folha perene, carvalhais, salgueirais, freixiais e florestas aluviais, ecossistemas protegidos pela legislação nacional e comunitária.

O mesmo estudo regista 231 espécies de vertebrados na área em causa, das quais 30 com estatuto de ameaça. Entre as espécies mais sensíveis estão a Cegonha-preta (Ciconia nigra), o Abutre-preto (Aegypius monachus), a Águia-imperial (Aquila adalberti) e várias espécies de quirópteros, anfíbios e répteis protegidos. No domínio florístico, foi confirmada a presença de Bufonia macropetala, endemismo ibérico raro e indicador de solos mediterrânicos intactos. Espécies frágeis, com estatutos de conservação preocupantes e habitats disponíveis já reduzidos e fragmentados.

O estudo confirma ainda que a construção implicará a desmatação e abate de árvores legalmente protegidas, nomeadamente azinheiras e sobreiros isolados, com impacto qualificado como negativo e significativo. As medidas compensatórias propostas, como a conversão de 135 hectares de eucalipto em azinheiras e sobreiros, num total de 228 hectares de compensação ecológica, não demonstram ganhos líquidos de biodiversidade e não eliminam a perda irreversível de habitats locais. Não podemos continuar a substituir habitats complexos, bem estabelecidos e com influência num enorme número de espécies com populações estabelecidas por novas plantações que demorarão muito tempo a chegarem a esse estado de funcionalidade. A análise técnica confirma também a interrupção dos corredores ecológicos designados “Raia Norte” e “Raia Sul” (PROF Centro Interior), fragmentando áreas críticas para deslocação e reprodução de fauna selvagem. Numa altura em que falamos na necessidade urgente de criar e reforçar corredores ecológicos que permitam movimentos de fauna pela paisagem, um corte a meio num desses corredores é incoerente, perigoso e injustificável.

A nossa posição contra este projeto assenta por isso em três pilares: biodiversidade, comunidades e visitação:

  • BIODIVERSIDADE

A natureza precisa de espaço e conectividade para prosperar e o projeto SOPHIA ignora esse princípio de forma flagrante, ao implantar uma megaestrutura solar num mosaico de habitats que funciona como corredor ecológico regional, cortando a continuidade entre áreas naturais da Gardunha, Raia e Malcata, e criando assim uma barreira física e ecológica difícil de reverter.

A fragmentação e impermeabilização do solo comprometem a mobilidade de mamíferos de grande e média dimensão, como o lobo-ibérico (Canis lupus signatus), entre  outros, e afetam espécies frágeis e a flora mediterrânica adaptada a solos pobres, como a rara Bufonia macropetala. A destruição destes habitats e comunidades vegetais, reconhecida pelo próprio EIA como um impacto negativo e significativo, prejudica polinizadores, aves insectívoras e a cadeia trófica nesta região. 

Esta postura contraria compromissos nacionais e europeus de proteção de habitats prioritários, que continuam a ser ignorados em situações como esta e nos quais falhamos metas sucessivamente, incorrendo em constantes multas que continuam a ser pagas como o preço de uma inação nacional difícil de compreender.

A chamada “transição verde” não pode justificar a repetição de erros de fragmentação da paisagem que a conservação e muitas entidades neste sector lutam por corrigir há décadas, com dificuldades e muitas vezes em contexto de subfinanciamento.

  • COMUNIDADES

A Rewilding Portugal sublinha que as comunidades locais afetadas por este projeto estão a ser duplamente penalizadas pela sua interioridade: sofrem o impacto direto desta instalação e, apesar das promessas genéricas de retorno económico e de mitigação de impacto, não têm garantido qualquer benefício tangível ou proporcional aos custos ambientais e sociais que estarão a suportar. A ausência de processos verdadeiramente participativos para as comunidades, revela uma falta de transparência que não pode ser aceite em projetos de tamanha dimensão e risco. 

Importa referir que as populações locais serão confrontadas com: perda de áreas agrícolas e florestais, ruído e poeiras durante a construção, alteração irreversível da paisagem rural até do ponto de vista visual, desvalorização de propriedades e limitação de usos tradicionais da terra e principalmente: a perda das paisagens biodiversas e ricas que são muitas vezes o motivo da sua continuidade no território. Os territórios da Beira Interior têm uma forte identidade rural e ecológica, hoje dinamizados por pequenos negócios de turismo, agricultura biológica e iniciativas de restauro ecológico com impacto positivo na paisagem em que se inserem. A sua substituição por uma megaestrutura de painéis solares representa um choque cultural e económico.

É inaceitável que a transição energética seja feita à custa dos territórios de menor densidade populacional, destruindo-lhes o maior ativo que ainda existe e perpetuando assim desigualdades históricas e contrariando o princípio de justiça ambiental que devia imperar.

  • VISITAÇÃO

A Beira Interior tem vindo a afirmar-se como destino emergente de turismo de natureza e conservação. A Serra da Gardunha, a ZEC adjacente e o Geopark Naturtejo oferecem uma combinação única de paisagem, biodiversidade e património cultural. O impacto visual deste projeto, com intrusão paisagística e reflexos visíveis a grandes distâncias vai impactar de forma irreversível a perceção de “natureza intacta” que ainda persiste neste território e que o torna tão atrativo.

Este tipo de impacto ameaça diretamente o turismo de natureza, que tem crescido consistentemente nos últimos anos, assente num modelo de desenvolvimento sustentável que tem pautado a estratégia recente destes territórios e da qual temos sido promotores, vendo agora todo o trabalho realizado a ser colocado em causa.

Muitos dos nossos parceiros da Rede Côa Selvagem, que têm criado novas oportunidades e emprego local baseado na natureza, em comunhão com o território e garantindo novas estratégias de atração para esta região, enquanto contribuem também para o restauro ecológico destes espaços naturais, vão ser diretamente ou indiretamente afetados por este projeto: ou porque operam também no território afeto ao projeto ou porque, mesmo estando em localizações limítrofes como é o caso do Grande Vale do Côa, sentirão também os inevitáveis impactos negativos do projeto principalmente no que diz respeito à severidade com que o mesmo afetará a biodiversidade e ecossistemas locais, podendo criar uma descontinuidade profunda na paisagem.

Um modelo de desenvolvimento como este que agora nos é apresentado, destrói a paisagem e a biodiversidade e elimina assim o próprio ativo que sustenta a economia verde da região: o próprio verde da paisagem.

Posto isto, 

A falta de transparência neste processo é um aspeto grave que já devia sido endereçado mais cedo. A falta de clareza quanto às origens e intenções do investimento suscita dúvidas legítimas sobre o seu enquadramento estratégico e ambiental. Uma transição energética justa exige transparência total: quem ganha, quem perde e como são tomadas as decisões.

Rejeitar o SOPHIA não significa rejeitar a energia solar. Significa exigir planeamento responsável, transparência e justiça ecológica. Existem muitas outras áreas já artificializadas, abandonadas após uso e intervenção humana, ou mesmo a cobertura de edifícios públicos e outras faixas, que permitiriam a produção desta mesma energia sem implicar a destruição de habitats e a criação de uma monocultura tecnológica. Exista coragem para tomar essas decisões, porque centrais solares de grande escala, se mal localizadas, substituem ecossistemas vivos por superfícies mortas, criando desertos ecológicos num país que precisa de se renaturalizar, reconectar e restaurar.

Propomos por isso ao Governo e às entidades competentes que promovam: o mapeamento de áreas artificializadas disponíveis para este tipo de instalações; incentivos fiscais robustos à colocação de painéis em edifícios públicos, logísticos e industriais; e a criação de um programa de Transição Energética com Natureza, que assegure que cada megawatt produzido contribui também para restaurar ecossistemas, e que é produzido sem os colocar em causa.

Perante os factos expostos e a gravidade dos impactos reconhecidos pelo próprio EIA, a Rewilding Portugal apela à rejeição integral do projeto SOPHIA e das LMAT associadas.

Acreditando que o futuro da energia deve caminhar lado a lado com uma recuperação da biodiversidade e de ecossistemas completos e funcionais, a Rewilding Portugal defende ainda que Portugal deve liderar uma verdadeira transição ecológica, e não apenas energética. A crise de biodiversidade e climática a que estamos a assistir exige decisões corajosas, não susceptíveis a pressões externas e fins meramente económicos. 

Não existe mitigação possível para se cortar um corredor ecológico ao meio, criando novas barreiras a uma natureza já por si tão obstruída e fragmentada. Se o preço a pagar é a própria biodiversidade, não lhe chamem energia verde.

O artigo foi publicado originalmente em Gazeta Rural.


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