Agricultura perdeu cem mil mulheres desde chegada da troika

[Fonte: Diário de Notícias]

Mecanização de trabalhos agrícolas é a razão do abandono. Em seis anos desapareceu metade da força de trabalho feminina

A crise deu à agricultura um estatuto de boa alternativa de vida para os desempregados. Mas a realidade é bem assim. Apesar de ter sofrido altos e baixos desde 2011, ano da chegada da troika, a mão-de-obra agrícola está a baixar, contrariando a melhoria dos números do emprego em Portugal. E as mulheres estão a ser as mais penalizadas: saíram 101,4 mil mulheres (-51%) da agricultura nos últimos seis anos – são agora 96 800. É a primeira vez que a fasquia fica abaixo das cem mil.

“Com o desenvolvimento industrial e depois dos serviços, a maior parte da população não se encontra já no setor primário. A população empregada na agricultura está a diminuir no nosso país; é um sinal de progresso”, explica Amarilis de Varennes, presidente do Instituto Superior de Agronomia (ISA). O aumento do emprego dos últimos anos foi, na verdade, feito muito à custa das contratações nos serviços, comércio, hotelaria e restauração, à boleia do boom do turismo.

Amarilis de Varennes explica que “cada vez mais a agricultura é realizada por máquinas, por vezes sem necessitar sequer de condutor. A apanha da uva ou azeitonas, por exemplo, pode ser hoje totalmente mecânica, para não falar de culturas de cereais. Assim, cada vez são necessárias menos pessoas, mas muito mais qualificadas. Vão cada vez mais controlar máquinas através de aplicações informáticas em vez de se dedicarem a duro trabalho manual”. No caso das mulheres, o problema foi amplificado Em 2011, as mulheres eram 40,9% dos trabalhadores agrícolas; em 2017, representavam 31,8%.

Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal, considera que a quebra da mão-de-obra é uma realidade comum aos países desenvolvidos, onde a mecanização e as inovações tecnológicas estão cada vez mais associadas à produção. “Apesar de atravessarmos um período de recuperação da atividade, considerando que nos anos mais recentes se tem verificado um particular desenvolvimento da maquinaria dedicada às colheitas (olival, vinha, pomares, etc.) e que é precisamente esta a área de atividade agrícola que emprega mais mulheres, é possível que as estatísticas reflitam essa realidade”, conclui. E o facto é que a redução da mão-de-obra agrícola em nada tem comprometido a produção agrícola, que até tem aumentado, bem como as exportações, que estão a subir acima dos dois dígitos – 11,7% em 2017.

João Dinis, dirigente da Confederação Nacional de Agricultura, assinala ter sido determinante “o desaparecimento de milhares de pequenas explorações agrícolas no país, de agricultura familiar, que se repercutiu em quem nelas trabalha, que são as mulheres”. Acrescenta que, no ano passado, “houve o efeito da seca e dos incêndios que pode ter contribuído para o afastamento da atividade”.

Para o futuro não há uma tendência definida. No ISA, 60% dos alunos são do sexo feminino. “A profissão ao mais alto nível atraiu mulheres e temos um crescente número de alunas com licenciatura ou mestrado a tornarem-se empresárias na área da agricultura lato sensu, incluindo enologia, produção sem terra, etc. Portanto, não há desinteresse das mulheres pela área, mas não querem ser cavadoras… e não precisam de o ser”, considera Amarilis de Varennes.

Ana Paula Vale, diretora da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima, relata uma situação diferente: “Aqui na escola, predominam os homens.” E prossegue: “A agricultura familiar, muito dependente da mulher, está a desaparecer e, pelo contrário, estão a surgir muitas empresas, mais inovadoras e mecanizadas, geridas por homens.”

Mas o declínio da população agrícola não se traduz necessariamente no abandono de terras. “É mais nas zonas rurais longínquas, porque, nas zonas periurbanas, há falta de terras”, refere Ana Paula Vale. E dá o caso de Ponte de Lima, onde foi preciso criar uma bolsa de terras, para acudir à procura de jovens agricultores. Apesar das dificuldades, a terra ainda é um sonho para muitos.

“Preço da carne não compensa”

Licenciada em Engenharia Agrícola e com mestrado em Engenharia Agronómica, Teresa Gonçalves tornou-se empresária agrícola em 2001, em Vila Pouca de Aguiar, com produção de leite de vaca, que depois evoluiu para a criação de vacas da raça maronesa. Neste ano, vendeu o negócio. Apesar da sua “paixão” pela agricultura, sempre teve necessidade de ter outra atividade: “Não consigo viver como gostaria.” O que a levou a afastar-se? “Foram as dificuldades por nunca poder ter férias nem fins de semana, o clima terrível e esse efeito reflete-se em maiores gastos, a burocracia com a sanidade animal e o custo das rações e dos combustíveis – o preço da carne não compensa -, tudo isso pesou na decisão.”

“Não se vive apenas do campo”

Aos 31 anos, Sílvia Martins é produtora de mirtilos, na aldeia de São Cristóvão, perto de Viseu, mas como a plantação só dá rendimento durante quatro meses por ano, e “quando tudo corre bem”, tem outras ocupações. Mudou-se para Coimbra, onde estuda e trabalha, e reserva os fins de semana para a agricultura. É técnica de segurança no trabalho, coordena a formação da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em Coimbra, e está a concluir a licenciatura em Agricultura Biológica. “Não há condições para viver só da agricultura, mesmo recorrendo à mão-de-obra familiar, como é o meu caso. Não consegui emprego em Viseu. Tenho de ser multifunções, mas ainda acredito na agricultura.”

“Só é rentável com apoios”

Dez anos de farmacêutica, em Lisboa, não a convenceram. Um mestrado em Empreendedorismo mudou-lhe o rumo da vida. Maria Milheiro regressou ao Fundão e integrou uma empresa do pai, dedicada maioritariamente à produção de milho. Agora, está no início de um projeto de um cerejal. Em nome individual tem uma exploração biológica de oliveiras. Vive da agricultura. “Sim, é possível, mas é ingrato e só é rentável com apoios, sobretudo os cereais”. Ingrato, “porque há coisas que não dependem de nós, como o tempo”. E deu o exemplo do cerejal onde, “numa das quintas, 90% não vingou, atrasando a produção num ano, com todos os custos inerentes. Já no milho, o preço depende da bolsa”.


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