Estatuto da Agricultura Familiar: Não bate a bota com a perdigota! – Alfredo Campos

A CNA aprovou no seu 7º Congresso, em Novembro de 2014, a Proposta de Estatuto da Agricultura Familiar Portuguesa e,  em Junho de 2017,  reuniu numa Conferência Nacional, muitos agricultores familiares e um diversificado leque de especialistas que, com os seus contributos, engrandeceram a iniciativa da CNA, tornando ainda mais evidente a importância e a transversalidade em toda a vida social e económica, que tem a Agricultura Familiar, multidisciplinar e multifuncional, ao proporcionar uma alimentação saudável e de proximidade às populações, na preservação da biodiversidade, na ocupação do território, no desenvolvimento das economias local e nacional e na nossa soberania alimentar e que, por isso a Agricultura Familiar deve ser reconhecida e apoiada.

Ainda na anterior Legislatura, a CNA apresentou a todos os Grupos Parlamentares as Conclusões do 7º Congresso, bem como a proposta do Estatuto da Agricultura Familiar Portuguesa. A cordialidade com que a CNA foi por eles recebida, em pouco se traduziu, já que apenas o PCP apresentou na Assembleia da República um Projecto de Resolução para que o Governo  implementasse o Estatuto, o que foi rejeitado pelos partidos defensores da actual PAC, Projecto novamente apresentado no início da actual Legislatura e que, no quadro dos acordos que têm permitido ao PS governar em minoria, dava esperança que a votação fosse diferente mas, o certo é que o partido do Governo voltou a votar ao lado dos mesmos, defraudando as espectativas de que este Governo desse mais atenção à Agricultura Familiar.

Somente em Fevereiro de 2017, em audiência com o Primeiro Ministro, a CNA obteve o compromisso de que o Governo acolhia a sua proposta de Estatuto da Agricultura Familiar Portuguesa e decidiu criar uma Comissão interministerial para elaborar uma proposta legislativa.

O projecto de Decreto Lei do “Estatuto da Pequena Agricultura Familiar” que, três anos depois da proposta da CNA, o Governo apresentou à discussão pública mereceu críticas diversas, nomeadamente porque não há uma “pequena” e uma “grande” Agricultura Familiar (a não ser que se quisesse limitar o número de membros do agregado familiar a trabalhar na “pequena” exploração agrícola) e, também, porque os parâmetros para o reconhecimento do Agricultor Familiar apenas contemplavam o segmento mais débil da Agricultura Familiar.

De facto, o projecto do Governo excluía do acesso ao Estatuto a grande maioria da Agricultura Familiar com um papel determinante na necessária mudança da produção de alimentos que, esta sim, pode contrariar a política de sucessivos governos do “produzir para exportar”, arredando a produção intensiva, particularmente em áreas gigantescas e deslocalizada, esgotante dos recursos naturais e muitas vezes à custa de mão de obra imigrante e quase escravizada, praticada pelo grande agronegócio internacional da indústria, a montante e a jusante da produção, e, crescentemente, do negócio transnacional da grande distribuição (e dos seus monopólios com explorações agro-pecuárias próprias, para aumento dos lucros e mais fácil manipulação do mercado).

Contrariando o modo de produção intensivo e monocultural, um crescente número de governos e instituições internacionais, entre as quais a ONU e a FAO, apontam para a necessidade de pôr fim a este tipo de negócio das multinacionais que, sem resolver os graves problemas da fome no mundo, criou novos problemas como o da obesidade e o da subnutrição, degrada o ambiente, esgota recursos naturais, elimina espécies, substituindo-o por uma agricultura sustentável, estruturada, alicerçada na Agricultura Familiar, promotora das sementes e das produções autóctones, respeitadora da biodiversidade e dos recursos naturais, próxima das populações, dinamizadora das economias regionais, defensora da soberania alimentar de cada povo.

Na intervenção que proferiu no 8º Congresso da CNA, em Abril de 2018, o actual Ministro da Agricultura anunciou que o Governo tinha acolhido muitas das propostas de alteração ao Projecto inicial, nomeadamente a eliminação da expressão “pequena” e estaria para breve a publicação do Decreto Lei que consagraria o Estatuto da Agricultura Familiar, o que aumentou as espectativas de que, finalmente, o Governo iria focar a sua política no apoio à Agricultura Familiar e à produção nacional para, em primeiro lugar, atender às necessidades de consumo da nossa população, afastando-se assim do negócio puro e duro que enriquece uns poucos à custa dos produtores e dos consumidores.

A publicação, em Agosto de 2018, do Decreto-Lei nº 64/2018 de 7 de Agosto, que consagra o Estatuto da Agricultura Familiar, aconteceu somente quase quatro anos depois da proposta da CNA.

Este diploma, que continua a traduzir a visão redutora que o Governo tem da Agricultura Familiar, não corresponde, na prática, ao entendimento que globalmente é feito sobre a necessidade e importância da Agricultura Familiar, não teria sido publicado noutro quadro governativo, conhecido que é o alinhamento do PS com a PAC que, apesar de alguma maquilhagem, não disfarça a sua orientação preferencial para a agro indústria e a compra de commodities noutros continentes, muitas vezes de qualidade inferior à que nos obriga, em prejuízo das Agriculturas Familiares europeias.

Este diploma contém as limitações, insuficiências e restrições, como ao impor um tecto de cinco mil euros no conjunto das ajudas PAC inscritas no PU e particularmente por ignorar por completo a Mulher Agricultora. Numa agricultura a tempo parcial, largamente predominante entre as explorações agrícolas portuguesas, em que muitas vezes pelo menos um membro do agregado familiar tem que trabalhar fora da exploração, ou imigrar, porque grande parte do valor do que produz vai para o bolso da indústria e da distribuição e o rendimento do trabalho não lhe permite viver com um mínimo de dignidade é, na maioria das situações, a Mulher Agricultora que trabalha a tempo inteiro e é, muitas vezes, a responsável efectiva da exploração familiar, sem que tal lhe seja reconhecido e muito menos a titularidade das terras.

Apesar de tudo a CNA registou como positiva a publicação do Decreto-Lei. O facto de envolver nove Ministérios, dava ideia de que o Governo estaria empenhado em mudar algo no rumo da nossa agricultura.

O passo seguinte seria, logicamente, que cada um dos nove Ministérios metesse mãos à obra e começasse a desenhar as medidas concretas de cada um, para que o Estatuto saísse do papel e fosse de facto um instrumento de desenvolvimento da Agricultura Familiar nas suas múltiplas vertentes, mas tal não aconteceu até hoje, o que não espanta ninguém já que o Governo não inscreveu qualquer medida no OE19 e recusou mesmo uma proposta do PCP para reserva de uma verba que permitisse  ir avançando na concretização do Estatuto.

Ao invés disso, o MAFDR publicou a Portaria nº 73/2019 de 7 de Março, para regulamentar o procedimento para a “atribuição do título de reconhecimento do Estatuto da Agricultura Familiar”.

Ao invés de garantir um processo simplificado, esta Portaria revelou-se mais uma carga burocrática a cargo da DGADR (quando o IFAP dispõe já de grande parte dos elementos necessários de cada candidato e, havendo apoios de ordem financeira, terão de passar necessariamente por este Instituto), com uma nova plataforma informática, única porta de acesso dos candidatos, ignorando (ou talvez não) que a idade média dos nossos agricultores ronda os 65 anos, o grau de analfabetismo duma população envelhecida, a dificuldade de acesso à rede em muitas regiões, particularmente aquelas em que, para o caso, mais seria necessária. Registe-se até que o título será apenas uma palavra passe, que, obviamente, para a esmagadora maioria dos agricultores não tem qualquer préstimo. E mais uma vez lá vem aquela doentia ideia governamental dos abusos e que primeiro é preciso policiar, com o controlo, a revogação, as obrigações.

Com isto, o Governo começou a obra pelo telhado!

Muitos agricultores que participaram na elaboração da proposta da CNA e muitos outros que a ela se dirigem procurando saber quais os benefícios do Estatuto, exclamam incrédulos: Então para que serve termos o título de Agricultor Familiar, se não sabemos para que serve? Se não é conhecida uma única medida, seja a nível do MAFDR, ou das políticas fiscais, ou a nível da Segurança Social, ou do Ministério da Economia, ou do Ambiente, ou qualquer outro dos nove Ministérios, então para que servirá ter o Estatuto de Agricultor Familiar? Sem serem conhecidas as medidas de incentivo, o Estatuto continua vazio e por isso desmotivador, desacreditando o que o Governo disse que iria fazer.

Mas para além do obstáculo para a Agricultura Familiar que é a burocracia e a obrigatoriedade da plataforma informática, o mais grave são os limites impostos, particularmente:

  • O tecto de 5.000 € decorrentes do conjunto das ajudas da PAC incluídas no pedido único, o que é facilmente ultrapassado por muito Agricultor Familiar que, por exemplo, produza raças autóctones. Tal critério, a existir, deveria ser 5.000 € de Ajudas Directas;
  • O tecto do 4º escalão do IRS (25.000 €) de rendimento colectável total do agregado familiar mesmo que apenas uma parte provenha da actividade agrícola e é fácil que numa agricultura a tempo parcial a maior parte do rendimento provenha de outras actividades e ultrapasse aquele limite, o que não significa que essa agricultura não seja útil e necessária.

Estes limites são ilustrativos da visão que o actual Governo (mas também os anteriores) tem da nossa agricultura e dos nossos agricultores. Não terá sido por acaso que o Ministro da Agricultura, na conferência de imprensa em 7 de Junho de 2018, dia em que o Governo aprovou o Decreto-Lei, disse que o Estatuto iria abranger cerca de 100 mil agricultores, coincidentemente ou não, número não muito diferente do dos pequenos e médios agricultores que a PAC, orientada para o grande agronegócio, foi marginalizando e excluindo. Também a notícia publicada na página oficial do Governo, sobre esta conferência de imprensa, refere a aprovação do “Estatuto da Pequena Agricultura Familiar”, o que dá a entender que, se retirou do texto do DL essa palavra “pequena”, ela não saiu da cabeça do Governo nem da orientação de continuar a centrar os seus objectivos de apoio prioritário às grandes empresas da agricultura industrializada, em prejuízo da vastíssima maioria das explorações agrícolas familiares, das mais pequenas e mais tradicionais, às mais modernas e dinâmicas.

A Agricultura Familiar é não apenas aquela pequena parte (cerca de 1/3) que na linha política do Governo precisa de medidas assistencialistas.

As explorações mais pequenas da Agricultura Familiar, muitas vezes de proprietários de avançada idade, mas que continuam a cuidar da terra e a produzir (a que, depreciativamente, chamam de subsistência), mas que à sua escala intervêm no mercado, particularmente o local, e recebem a preferência dos consumidores porque conhecem, de toda a vida, como cuidam dos alimentos que produzem, merecem todo o respeito e apoio, da sociedade e dos governos, por continuarem a produzir, porque uma vida de trabalho mal pago e as magras pensões de reforma não lhes permitem deixar de trabalhar, muitas vezes em zonas muito difíceis, porque são eles que insistem em contrariar a desertificação humana, porque são eles que conhecem as terras, os ventos, as águas e os montes, porque são eles que com as suas sementes e a sua produção agro-pecuária e florestal preservam a biodiversidade, porque são eles que com o seu saber empírico de gerações (coisa que não se aprende nas escolas), com as suas práticas, a sua história e tradições, são o pilar da nossa cultura popular, a alma portuguesa.

A Agricultura Familiar são também os muitos filhos e filhas de agricultores a quem os pais entregaram as terras, os muitos que com os seus pais trabalham em economia familiar, os muitos que, normalmente oriundos de outras áreas, por necessidade ou vocação abraçam o trabalho no campo como forma de vida, qualquer destes grupos, em grande parte, com formação específica, com novas ideias, sensíveis ao desastre ambiental que a agricultura industrial está a provocar, abertos ou mesmo defensores de práticas sustentáveis, como a agroecologia.

Este segmento da Agricultura Familiar, por exemplo uma família de 4 pessoas mais a mão de obra assalariada (até 50%), tecnologicamente apetrechada e mais tecnicamente preparada, pode ser a alavanca da mudança, pode e deve ter um papel determinante no futuro da sustentabilidade da agricultura portuguesa, no abastecimento alimentar às populações e instituições públicas, no equilíbrio da nossa balança alimentar e da nossa soberania alimentar.

Existe todo o potencial para mudar de política agrícola, falta o Governo ser coerente entre o que diz ou assina e o que faz.

É muito importante o discurso e o compromisso político do Governo ao votar na ONU a favor da “Declaração dos Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham nas Zonas Rurais”, assim como foi importante o MAFDR ter-se feito representar no Congresso Internacional “Global Peasants’ Rights”, preparatório desta Declaração, em Março 2017, na Alemanha, a convite da Via Campesina, da FIAN Internacional e outros promotores.

Igualmente importante é o Governo ter assinado as “Directrizes para o Apoio e Promoção da Agricultura Familiar nos Estados-Membros das CPLP” e promovido a Reunião de Alto Nível da CPLP sobre a Agricultura Familiar, onde foi aprovada a “Carta de Lisboa pelo Fortalecimento da Agricultura Familiar”, que a CNA subscreveu em representação da Plataforma Camponesa do MSC da CPLP.

É importante que o Primeiro Ministro tenha sido sensível à proposta da CNA e tenha decidido mandar dar início ao trabalho interministerial de que veio a resultar o Estatuto da Agricultura Familiar, apesar das concepções e limites referidos.

Mas continua a faltar o principal, falta tirar o Estatuto da Agricultura Familiar do papel!

Falta adequar o Estatuto ao anseio da Agricultura Familiar, ao direito da população e do abastecimento das cantinas das instituições públicas a uma alimentação de qualidade e proximidade, falta criar os instrumentos organizativos e financeiros para dar sentido ao que diz a Justificação de Motivos do DL que consagra o Estatuto, sobre  a Agricultura Familiar e as suas actividades “determinantes em grande parte do território nacional”, “visando responder aos principais desafios e reforçar as potencialidades desta importante modalidade de organização de actividades produtivas, de gestão de ambiente e de suporte da vida social nos espaços rurais do nosso país”,  que “assumem, assim, relevância na produção, no emprego, na biodiversidade e na preservação do ambiente através, nomeadamente, do incentivo à produção e ao consumo locais, que por sua vez minimizam as perdas e os desperdícios alimentares, garantindo também uma presença em muitas áreas do interior, o que torna imperiosa a promoção de políticas públicas que reconheçam e potenciem essa contribuição da agricultura familiar”.

Em coerência com o que diz, o Governo só pode seguir o caminho de, rapidamente, em diálogo com a Agricultura Familiar e suas estruturas, cumprir o prometido.

Se assim fizer, sabe que pode contar com a disponibilidade da Agricultura Familiar.

Mas se estiver a pensar em adiar o prometido, sabe que contará com a luta firme da Agricultura Familiar até que os seus direitos, o direito a produzir e ter o seu trabalho justamente recompensado, sejam uma realidade que a todos interessa.

6.Maio.2019

Alfredo Campos

Direcção da CNA


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