investigação agroalimentar

Investigação aposta na valorização de produtos e subprodutos agrícolas

Escolhemos cinco projetos de investigação, que receberam Bolsas de Ignição, no âmbito do Programa INOV C 2020, para ilustrar a aposta que muitos centros nacionais de investigação fazem cada vez mais na área agroalimentar. Desde o aproveitamento do soro das queijarias para bebidas fermentadas, ao potencial terapêutico das folhas de mirtilo na Esclerose Múltipla, passando pelo mel em pó, o uso de casca de arroz em betão leve ou de extrato de uma alga na conservação da maçã, os estudos são diversos mas todos promissores.

A produção agroalimentar e as universidades e institutos andaram de ‘costas voltadas’ durante muito tempo, mas nos últimos anos os investigadores apostaram cada vez mais na valorização de produtos e subprodutos agrícolas, por iniciativa da Academia ou a pedido da produção.

Os cinco projetos que escolhemos foram contemplados com Bolsas de Ignição no âmbito do Programa INOV C 2020, mas estão em fases diferentes de evolução: um já tem uma startup e marca de produto, outros estão numa segunda fase de investigação para melhoria de processos, com vista à viabilização económica e posterior comercialização e há também quem ainda esteja na fase inicial de investigação.

Daniela Costa e Rita Santos são, talvez, quem está mais adiantado, pois criaram já uma startup que detém a marca Toal Ecobebidas. Numa parceria entre a Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e a Escola Agrária da mesma cidade as duas mestrandas apostaram no aproveitamento do soro da indústria queijeira para fazerem concentrado de soro a partir do qual são fabricadas bebidas fermentadas.

Ecobebidas de soro que queijo

Falámos com Daniela Costa – porque Rita Santos estava em Silicon Valley, uma viagem resultante de um dos vários prémios que este projeto já conquistou – que nos explica que “a Toal Ecobebidas utiliza um dos maiores subprodutos da indústria queijeira, o soro de leite que resulta do fabrico do queijo”. A investigadora adianta que “em 2017, foram subproduzidas mais de 549 mil toneladas de soro de leite cujo tratamento resulta em elevados custos económicos, que legalmente é obrigatório, além de serem fonte de desperdício alimentar e contaminação ambiental”.

Assim refere que “o objetivo da nossa startup é transformar o soro de leite numa matéria-prima para a formulação de bebidas originais e nutritivas. Neste momento, temos a Toal Proteína (garrafa da tampa vermelha) e a Toal Energia (garrafa da tampa verde), ambas ricas em antioxidantes e probióticos, com 0% de gordura, 0% de glúten e isentas de lactose, conservantes e edulcorantes”. Daniela Costa salienta que “a sua produção é 100% sustentável indo ao encontro da nossa missão: ‘levar saúde através da alimentação’”.

Com o projeto que ganhou a Bolsa de Ignição o objetivo é “otimizar o processo de tratamento do soro”, que usa uma enzima para degradar a lactose, procurando agora recuperar a enzima “para que possa ter mais utilizações, tornando o processo mais viável para a indústria e reduzindo os custos”. A investigadora diz-nos que há várias empresas interessadas em fazer parte deste projeto mas a redução dos custos é fundamental.

Inovador e sustentável

Uma das principais inovações deste projeto é a proposta de utilização industrial de uma tecnologia já existente, o processo de ultrafiltração e osmose inversa. O objetivo da equipa de investigação é melhorar esta tecnologia para tratamento do soro, de forma a aplicá-la na indústria queijeira sem que esta tenha a necessidade de se readaptar, pois já possui os instrumentos necessários. Ao valorizar o soro de queijo, atualmente um excedente industrial, numa matéria-prima, será possível utilizá-lo no fabrico de outros produtos nutricionais, a custos mais reduzidos.

O projeto pretende assim conduzir ao fabrico de bebidas fermentadas a partir de proteínas do soro (CPLS) e permeados de ultrafiltração concentrados (PUFC). O total aproveitamento do soro evita que este se transforme num poluente da indústria queijeira, evitando consequências ambientais como o seu despejo em águas e solos, que conduzem à eutrofização (desenvolvimento de camadas espessas de algas nas águas, comprometendo a fauna) e à biomagnificação (transferência de poluentes ao longo da cadeia alimentar).

Daniela Costa salienta que “esta tecnologia permite a transformação imediata do soro em bebidas proteicas ou energéticas, sendo de fácil aplicação para as pequenas e médias empresas, que ao nível nacional são responsáveis por metade do volume excedentário de soro. Ao contrário das grandes unidades industriais no setor de lacticínios, são estas empresas que mais se debatem com o problema de eliminação do soro. Adicionalmente, estamos a ir ao encontro das recomendações da FAO para a redução da pegada ecológica na indústria alimentar”.

Extrato de alga aumenta conservação da maçã

 Numa segunda fase de investigação está o projeto ‘Ctomentosum’, que visa dar seguimento ao projeto AlgaeCoat, de 2016 e 2107, sobre uma solução à base de algas que prolonga a conservação das maçãs embaladas e fatiadas, concebido pelo Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do Instituto Politécnico de Leiria (Mare-IPL) e a empresa hortofrutícola Campotec, de Torres Vedras, e que deu origem a uma patente, detida em conjunto pelo IPL e a Campotec.

Susana Silva, investigadora responsável pelo projeto, revela à VIDA RURAL que “o ‘Ctomentosum’, visa determinar o tempo de prateleira do extrato de alga – codium tomentosum –, que é o ingrediente chave do revestimento, e pesquisar a aplicabilidade de um processo de desidratação mais económico que contribua para a competitividade do extrato”.

Ajudar a preservar maçãs embaladas com extratos de algas é o objetivo do projeto ”Ctomentosum’

A investigadora explica que após a investigação inicial, que teve início em 2013, “foi patenteada uma formulação à base de extratos funcionais de macroalgas comestíveis da Costa de Peniche, cuja ação foi validada à escala laboratorial” sendo depois validado o processo de extração da macroalga e da funcionalidade do revestimento à escala piloto, através do projeto ‘AlgaeCoat’, apoiado pelo COMPETE 2020.

Tempo de prateleira e desidratação são desafios

 Mas como “alguns desafios ficaram por ultrapassar”, nomeadamente a determinação do tempo de prateleira do extrato, a pesquisa da aplicabilidade de um processo competitivo de desidratação e a “elucidação da composição e mecanismo de ação do extrato, passo essencial para o pedido da inclusão deste na lista europeia de aditivos alimentares”.

Perguntas que estão agora à procura de resposta através deste novo projeto (as duas primeiras questões) e do projeto de doutoramento da bolseira Ana Augusto, financiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia (FCT), numa coorientação Universidade de Reading, Mare/IPL e Centro para o Desenvolvimento Rápido e Sustentável do Produto do IPL.

Numa nota de janeiro deste ano, o Instituto referia que “a aplicação de revestimentos de conservação comestíveis, desenvolvidos a partir de compostos de origem natural, sustentáveis e eficazes constituem uma enorme vantagem competitiva para produtores de produtos hortofrutícolas que, desta forma, conseguem manter inalteradas as características dos produtos, minimamente processados, como é exemplo a maçã que, quando cortada, oxida rapidamente”.

Betão leve com casca de arroz

Também numa segunda fase está o projeto de incorporação de casca de arroz em betão leve. O responsável do ITeCons – Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Construção, Energia, Ambiente e Sustentabilidade, da Universidade de Coimbra, por este projeto, João Soares de Almeida, adianta-nos que numa fase inicial “fizemos um levantamento de vários subprodutos agrícolas da região do Baixo Mondego que tivessem potencial de serem utilizados, sendo agora alvo de vários projetos de investigação e valorização, sendo a casca de arroz um deles, uma vez que, nesta altura, apenas é vendida para camas de animais, a valores residuais”.

Como explica João Almeida “o betão é um dos materiais de construção mais utilizados. No entanto, a sua produção tem impactes ambientais significativos, relacionados com a extração de matérias-primas, consumo de energia e emissões de CO2. Este projeto procura, assim, tirar partido da incorporação de subprodutos da atividade agrícola do Baixo Mondego, definindo novas soluções construtivas de elevado desempenho e sustentabilidade, tais como painéis de revestimento de fachadas, barreiras acústicas e outros elementos de arquitetura urbana”.

O coordenador do projeto salienta, todavia, que “por ser um material leve mas que ocupa muito espaço temos de ter em conta o custo de transporte, pelo que interesse que a transformação seja o mais perto possível da produção”.

Já é possível produzir betão leve a partir de casca de arroz

As características que a casca de arroz confere ao betão estão também a ser estudadas, nomeadamente avaliando se mantém a durabilidade e resistência de outros materiais. João Almeida diz à VIDA RURAL que “já percebemos que este subproduto confere mais condutividade térmica e acústica ao betão, podendo assim ser usado para usos específicos onde estas caraterísticas sejam uma mais-valia”.

O responsável do projeto defende que “a incorporação deste subproduto em materiais de construção irá contribuir para potenciar a capacidade económica da região centro, ao mesmo tempo que disponibiliza alternativas ambientalmente viáveis para a utilização da casca de arroz. Considerando o elevado volume de betão que continua a ser produzido anualmente, a incorporação deste tipo de resíduos e o desenvolvimento de soluções pré-fabricadas podem contribuir para melhorar a sustentabilidade global dos produtos”.

Beatriz Marques, também do ITeCons, refere que, como há outros projetos onde os investigadores do instituto estão a usar este subproduto, “temos comprado a casca de arroz já em alguma quantidade a uma indústria de descasque da Figueira da Foz, a Álvaro Alves Borges Lda”.

José António Borges diz-nos que “por agora, os volumes vendidos no âmbito destes projetos são muito reduzidos e ainda não há um processo final mas temos bons indicadores”. O gerente da fábrica defende que “estes projetos têm todo o interesse porque hoje este é um produto quase sem valor e se forem encontradas utilizações alternativas será bom para a indústria a para a lavoura, já que atualmente a casca de arroz é vendida apenas para cama de animais”, em aviários e explorações de bovinos.

Mel em pó para novas utilizações

No trabalho anterior desenvolvido no Instituto Politécnico de Leiria (obtenção de mel liofilizado) o produto final foi conseguido com recurso à adição de alginato de sódio como encapsulador, contendo assim uma elevada quantidade de sódio.

Assim a coordenadora do projeto, Maria Manuel Gil, salienta que “o objetivo deste novo projeto é otimizar o processo de obtenção de mel em pó, com recurso a encapsuladores que possam originar um produto similar sem esse constrangimento, assegurando a sua estabilidade, qualidade e segurança, e permitindo a sua comercialização”.

A investigadora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do Instituto Politécnico de Leiria (Mare-IPL) refere que “o mel é tradicionalmente comercializado em Portugal, no seu estado líquido ou sólido. No entanto, a crescente procura por parte das empresas do aumento de valor acrescentado dos produtos alimentares, leva à necessidade de desenvolver novas formas de comercialização do mel. A produção de mel em pó já é uma realidade fora de Portugal. No entanto, para a obtenção de mel em pó são vulgarmente utilizados agentes encapsulantes à base de amido, levando a que o produto final não apresente as benéficas características nutricionais do mel puro. A nova solução em estudo aposta na substituição dos agentes encapsulantes utilizados, por soluções com baixo valor energético, sem sabor distinguível e baixo teor de sódio”.

Investigação aposta na valorização de produtos e subprodutos agrícolas

Produzir mel em pó para obter produtos de valor acrescentado é o foco da investigação do Politécnico de Leiria

Para os investigadores a produção de mel em pó constitui uma oportunidade para obtenção de novos produtos de valor acrescentado, com grande impacto na economia e imagem do setor. Por outro lado, favorece o consumidor, na medida em que permite explorar outras aplicações na sua alimentação, como substituto de açúcar no café, chá ou até mesmo para utilização no setor da panificação e pastelaria.

Maria Manuel Gil não quis, todavia, revelar muitos detalhes do projeto uma vez que a patente já foi adquirida por um empresário. Falámos com o detentor da patente, Tiago Vargas, que nos disse apenas que “estamos ainda numa fase de projeto, não há produto, pelo tem de haver ainda muitos desenvolvimentos”.

Folhas de mirtilo podem ajudar Esclerose Múltipla?

Uma pergunta a que quer responder o último projeto que escolhemos – ‘O potencial terapêutico de folhas senescentes de Vaccinium corymbosum L. (mirtilo) na Esclerose Múltipla: valorização de um subproduto agrícola regional’.

Este projeto está a ser desenvolvido por uma equipa de investigação multi e interdisciplinar, com vasta experiência em bioquímica, biotecnologia, farmácia e neurologia, coordenada por dois investigadores (Sofia D. Viana e Flávio Reis) do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental e do Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em parceria com uma equipa da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto.

Sofia Viana explica à VIDA RURAL que “embora o mirtilo seja um fruto cada vez mais apreciado e incluído na dieta, dadas as suas reconhecidas propriedades antioxidantes, existem outras partes do arbusto igualmente ricas em compostos bioativos (por exemplo, compostos polifenólicos) que permanecem nas terras de cultivo sem o devido aproveitamento. Em particular, as folhas colhidas entre meados de setembro-novembro (período pós-frutificação) apresentam uma composição fitoquímica muito promissora do ponto de vista terapêutico, não afetando o ciclo biológico da planta e a colheita do fruto, a atividade económica mais rentável deste segmento agrícola”.

Assim, a investigadora adianta que “esta proposta visa a otimização de um processo biotecnológico inovador face às tradicionais infusões para o processamento das folhas senescentes de mirtilo, tendo em vista a obtenção de uma biomassa enriquecida em compostos bioativos. Pretende-se, pois, gerar um novo produto nutracêutico com potencial aplicação terapêutica em doenças neurodegenerativas, como é o caso da esclerose múltipla, uma doença com incidência crescente em adultos jovens e para a qual as atuais terapêuticas são claramente escassas, tornando imperativo a procura de novas estratégias.

Valorizar produto local em parceria com produtores

Dado que a cultura do mirtilo na Região Centro é uma área com impacto significativo na dinamização da economia local, este projeto assenta fortemente na valorização de um recurso endógeno natural regional (e também nacional), aproveitando um subproduto da planta (folha senescente) que neste momento é totalmente desperdiçado nos diversos cultivares de mirtilo. “Neste sentido, o nosso grupo de investigação conta com a colaboração da Mirtilusa (Sever do Vouga) e da COAPE (Cooperativa Agro-pecuária dos Agricultores de Mangualde), parceiros estratégicos na área da produção e comercialização do mirtilo”, refere Sofia Viana.

A responsável frisa que “o estudo está na sua fase inicial, de isolamento e caracterização dos compostos, passando depois à fase de experimentação animal, num modelo de esclerose múltipla em murganho. Objetiva-se que os primeiros resultados sejam passíveis de alcançar no presente ano civil” e adianta: “caso se verifique sucesso nas premissas subjacentes à proposta, é objetivo da equipa transferir os resultados obtidos para estruturas de apoio à criação e desenvolvimento de empresas, impulsionando a sustentabilidade social e económica da Região”.


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