Tomás Roquette Tenreiro

Semeia no pó e não tenhas dó – Tomás Roquette Tenreiro

Não será certamente fácil alargar o horizonte das nossas previsões quando existe ainda tanta poeira no ar mas não devemos por isso deixar de tentar semear o futuro no meio de tanto pó.

A Europa enfrenta um nível de incerteza que compromete a sobrevivência da própria União Monetária. Pessoalmente não rejeito esse cenário por muito negativo que seja. A esta hipótese não lhe associo um pessimismo bloqueante, impróprio de qualquer agricultor, mas a consciência de que enfrentamos a possibilidade, cada dia menos incerta, de um cenário de recuperação económica em forma de “L”.

De acordo com o relatório publicado pelo Boston Consultancy Group (BCG) Center for Macroeconomics no dia 14 de Março de 2020 – ‘Strategic and tactical impact scenarios for the COVID-19 crisis and recovery’, não devemos descartar a hipótese de que o choque macroeconómico siga uma geometria em forma de “L”. Empiricamente, sabemos que todas as grandes crises macroeconómicas que a humanidade viveu em consequência de pandemias seguiram geralmente uma geometria de resposta em forma de “V” (i.e. um decréscimo linear mas acentuado do PIB, seguido de uma recuperação compensatória promovida por um pico de consumo que antecede um reajustamento dos mercados e termina com o mesmo indicador regressando ao nível médio em que se encontrava antes do choque). Uma geometria de resposta em “V” corresponde na verdade a uma instabilidade vivida a curto-prazo mas que relativamente rápido recupera os níveis de estabilidade iniciais, verificando-se uma compensação económica quando integramos no tempo a evolução do PIB.

A probabilidade de tal cenário depende naturalmente da elasticidade da própria economia, ou seja, da capacidade de recuperar perdas comerciais após o choque. Em economias como a portuguesa, fortemente dependentes do sector terciário (como o turismo) ou secundário (como as industrias do calçado, têxtil, cortiça e papel), a probabilidade de uma resposta em “V” é significativamente reduzida para que se possa desde já, e apesar da poeira no ar, semear com confiança a hipótese de que não viveremos esse cenário.

Surge ainda num plano intermédio a possibilidade de que enfrentemos uma recuperação em forma de “U” (i.e. numa primeira fase um decréscimo da nossa actividade económica, que perde intensidade com a efectividade de medidas de apoio à liquidez das empresas e do consumo, seguida de uma fase de recuperação do PIB aos níveis iniciais, apesar de não existir um efeito compensatório quando se integra no tempo este indicador). Teoricamente, este cenário seria possível. É precisamente sobre este cenário que a Europa parece centrar a sua política financeira, e aparentemente, Portugal também. Mas não nos enganemos! Existe na Europa um forte gradiente de probabilidade de que a recuperação siga uma forma em “U” e que se agrava dos países do Norte para o Sul da Europa. A Europa que quis ser Europa manteve as contas públicas equilibradas e uma importância relevante dos sectores primário e secundário no PIB. Esta Europa apresenta uma probabilidade de enfrentar cenários de resposta em “U” que em pouco ou nada são comparáveis com o que caracteriza a condição portuguesa. Poderá surgir pelo meio uma fronteira com um efeito absolutamente fracturante para a União Monetária ou até para a própria União Europeia. Essa fronteira poderá bipolarizar a Europa em dois mundos social e politicamente tão distintos entre si que a poderiamos comparar a um novo muro de Berlim. A Europa poderia ser um bom projecto, se respeitasse a diferença das Nações, se não teimasse na via para o Socialismo e se assumisse a sua matriz judaico-cristã. Mas não será assim, vão ocorrer rupturas.

A situação que vivemos em Portugal é a mais clara prova de que nos situamos num dos extremos desse respectivo gradiente de probabilidade. Após um mês de bloqueio, a efectividade das medidas do Governo é nula. Os pacotes de apoio à tesouraria e fundo de maneio, anunciados pelo Governo e disponibilizados através da banca, são burocráticamente pesados e apresentam condições limitativas de acesso para uma grande parte das empresas do sector agrícola. O mesmo se aplica à ideia citadina de que a vida se gere à distância e de que o fantástico ‘layoff’, alavancado pelas próprias empresas, nos garante comida na mesa. De momento, a única compensação materializada resulta indirectamente do baixo preço do petróleo mas, até nesse caso a colaboração do governo português é mínima, porque a desproporcionalidade entre a redução do custo do petróleo e a redução do preço dos combustíveis mantém-se elevada. Como se tal não bastasse, a resposta financeira apresentada pelo Ministério da Agricultura refugia-se essencialmente no IFAP alargando prazos e atrasando tempos de resposta. A liquidez do sector primário está em risco desde já porque os mecanismos de financiamento da agricultura portuguesa, que em condições de “bonança” mal funcionam, são agora apresentados como falsa tábua de salvamento. Todos sabemos que nas condições críticas em que nos encontramos não é da ampliação de prazos de candidaturas ao PDR que precisamos. Na verdade, nada disto é mais que o resultado de um país cujas instituições perderam em absoluto a capacidade técnica e financeira. Portugal vive de mão estendida com o actual regime, sempre viveu! O problema é que nos esquecemos que só corre água na torneira enquanto há água na barragem.

Infelizmente em Espanha, o nosso único vizinho terrestre e principal parceiro económico, a situação não é melhor. A recessão económica é um cenário cada dia mais evidente, assim como a incapacidade de seguir uma resposta em “U”. A queda de Itália poderá eventualmente ser amparada pelo eixo Austriaco, Alemão, Holandês e Belga. Mas o mesmo não creio que aconteça com o náufrago sócio-cultural em que se tornou França, ou com a realidade Ibérica. É aqui que reside a minha atenção, é aqui que destaco a necessidade de semear no pó, desde já, sem dó.

Devemos por isso considerar desde já que caminhamos com uma probabilidade significativa e crescente para um cenário de resposta em “L”. Uma geometria de choque em forma de “L” é o que caracteriza uma alteração no longo-prazo da curva de evolução do PIB. Neste cenário, podemos considerar alterações estruturais (não temporárias) do paradigma sócio-económico nacional (como por exemplo, o colapso da moeda, problemas de segurança alimentar dada a nossa dependência da importação de cereais e outros bens básicos, e mais preocupante ainda, respostas sociais e imprevisíveis fruto da ruptura da urbe). Neste cenário, acabam-se obviamente as distracções com os falsos ambientalismos e as políticas anti-fileiras produtivas em que temos vivido, e o país semeia no pó sem dó para comer. Os impactos estruturais que resultam de uma resposta em “L” exigem uma total reforma dos contratos sociais que permita flexibilizar as dinâmicas de emprego e impedir o total bloqueio do país. Nesse cenário, a “gestão do vírus” e o confinamento da população passam imediatamente para um segundo plano de importância.

Se empiricamente seria de esperar um cenário de recuperação em “V” ou em “U”, porque é que agora enfrentamos um risco tão elevado de uma ruptura estrutural do nosso sistema económico (“L”)? Na verdade, sabemos que vivemos no passado respostas em “V” ou em “U”, tanto com a Gripe Espanhola em 1918, como com as pandemias H2N2 em 1957-58, H3N2 em 1968, ou a SARS em 2003. No entanto, os países apresentavam níveis de autonomia nos sectores primário e secundário pouco comparáveis à situação actual. Também a elasticidade das suas economias nesses mesmos sectores era diferente, dado o menor grau de dependência de macro mercados tanto a nível de matérias primas como de mão de obra (recordemos apenas de onde vem a actual mão de obra agrícola na Europa). A própria insustentabilidade das zonas urbanas não era tão considerável como hoje, considerando os níveis de dependência energética e alimentar que têm do exterior. Vivemos hoje por incapacidade das medidas de mitigação, uma probabilidade significativa e crescente de atingirmos um nível de intensidade do choque económico com efeitos directos e muito impactantes na micro-economia das empresas e das famílias. Enquanto que o relatório do BCG indica como provável um cenário de resposta em “V” para os Estados Unidos da América (tendo em conta o seu histórico de recuperação económica pós-pandemias), considero com maior probabilidade uma evolução diferente a nível Europeu, nomeadamente um cenário em “U” no eixo germânico, que se complicará em França em consequência do impacto de um hipotético cenário em “L” ibérico.

Muitos poderão contra-argumentar que um cenário em “L” necessitaria uma quebra disruptiva não apenas ao nível do capital e da produtividade mas também da mão de obra. Teoricamente, dados os números desta pandemia e os conhecidos grupos de risco, poderíamos recusar impactos na disponibilidade de mão de obra causados pela própria doença. Mas infelizmente dado o contexto social em que vivemos, a elasticidade da resposta laboral será fortemente condicionada, ao ponto de comprometer também aí a ruptura do funcionamento micro-económico que um cenário em “L” supõe. O mesmo se passou no Japão com a epidemia de Hong Kong (1968-69), em que o claro desequilíbrio demográfico entre o urbano e o rural resultou numa resposta em “L” por colapso indirecto das dinâmicas laborais em sectores essenciais.

Observo portanto o alinhamento de várias condições para que ocorra uma alteração permanente do paradigma sócio-económico Europeu:

– Probabilidade de ocorrerem geometrias de choque distintas em cada país;

– Níveis excessivos de endividamento e taxas de juros extremamente reduzidas, limitando o poder do banco central para estimular a economia;

– Divisões políticas internas nos países que aumentam a probabilidade de conflitos sociais e rupturas;

– Uma crescente potência mundial (China) que desafia a potência mundial existente (os EUA) causando conflitos externos e instabilidade;

A durabilidade e a intensidade do choque esperado permitem-nos identificar riscos muito concretos:

– Economia de sobrevivência (perda de níveis de confiança);

– Prioridade à obtenção de liquidez (perda de visão estratégica e de investimentos a longo-prazo);

– Problemas de ‘cash-flow’ (endividamento e ruptura de créditos);

– Falta de liderança (perda de propostas políticas, perda de associativismo, perda de fileiras);

– Colapso institucional (perda de mecanismos dos quais o sector depende fortemente como a PAC);

Em contrapartida, alguns destes riscos permitem-nos também identificar oportunidades:

– Reconstrução de novos e fortalecidos níveis de confiança (consumo local, menor dependência de crédito em transações comerciais, redes de confiança reforçadas);

– Num cenário de um possível colapso da União Europeia, ou apenas da União Monetária, o reforço das redes de confiança pode, deve e tem de ocorrer num primeiro plano com Espanha, criando-se assim uma oportunidade para uma maior integração económica e financeira ibérica que permitiria a prazo reforçar a sua presença no espaço Atlântico;

– Maior independência de sistemas burocráticos bloqueantes, reorientação de prioridades num Mundo cujo epicentro se reforça a curto-prazo na Ásia, e a médio e longo-prazo em África (sob o poder da China) e na América (orientado pelo Brasil e pelos EUA);

– Profunda reforma institucional e constitucional em Portugal;

No entanto, é importante estarmos bem atentos, como agricultores e como pessoas ligadas ao mundo rural, aos perigos que podem surgir em lugar de tais oportunidades. O sector agrícola é apontado como um dos sectores mais incertos no que respeita à evolução pós-pandemia COVID-19. Nesse sentido identifico riscos sérios que não devem ser tomados de forma passiva:

– Aumento e centralização do poder do Estado;

– Perda de direitos essenciais (e condições elementares para uma agricultura que alimente) como o da propriedade e da iniciativa privada;

– Perda de liberdades como a de opinião e/ou de acção, a de actividade empresarial, liberdade de comércio, liberdade de circulação;

– Agravamento dos custos energéticos;

– Estagnação tecnológica;

– Redução de segurança pública nas zonas rurais;

De uma forma ou de outra muitos destes direitos encontram-se hoje hipotecados. Garantir o seu restabelecimento requer marcar posições desde já. Não nos esqueçamos de quais são e do que implicam as ideologias que actualmente governam em Portugal e em Espanha. A agricultura não parou porque a vida não pode parar. Mas se quiserem parar a vida, a assistência passiva e conformista a que nos querem condenar revela perigos muito evidentes. 

Por isso semeia no pó e não tenhas dó. O tempo de resposta que ganhamos depende da nossa capacidade de ver além, mesmo quando a poeira é tanta que aparente cegar!

Referências para mais leitura:

  • Amador, J., & Soares, A. C. (2012). A concorrência na economia portuguesa medida através da elasticidade dos lucros. Boletim Económico.
  • BCG. (2020). Strategic and tactical impact scenarios for the COVID-19 crisis and recovery. Boston Consultancy Group Center for Macroeconomics.
  • Bendavid, E., & Bhattacharya, J. (2020). Is the Coronavirus as Deadly as They Say? Wall Street Journal (24 March).
  • Bendavid, E., Mulaney, B., Sood, N., Shah, S., Ling, E., Bromley-Dulfano, R., … & Tversky, D. (2020). COVID-19 Antibody Seroprevalence in Santa Clara County, California. medRxiv.
  • Connor, D. J., & Mínguez, M. I. (2012). Evolution not revolution of farming systems will best feed and green the world. Global Food Security, 1(2), 106-113.
  • Dalio, R. (2020). The Changing World Order – an online series by Ray Dalio. Published online (29 March).
  • Daniel, D., & Chin, V. (2020). Governing in the Time of Coronavirus. Boston Consultancy Group Center for Macroeconomics.
  • Deloitte. (2020). COVID-19 – Impacto y Escenarios de recuperación en Consumo y Distribución. Deloitte Monitor (Madrid, 27 Marzo).
  • Li, R., Pei, S., Chen, B., Song, Y., Zhang, T., Yang, W., & Shaman, J. (2020). Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science.
  • Fischer, R. A., & Connor, D. J. (2018). Issues for cropping and agricultural science in the next 20 years. Field crops research, 222, 121-142.
  • Foster-McGregor, N., Poeschl, J., & Stehrer, R. (2016). Offshoring and the elasticity of labour demand. Open Economies Review, 27(3), 515-540

Tomás Roquette Tenreiro

Eng.º Agrónomo, investigador no CSIC e PhD-candidate em Hidrologia Agrícola pela Universidade de Córdoba

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