Já perdi a conta aos estudos, artigos e comentários que li nas últimas semanas e que apontam para um crescimento do e-commerce alimentar em muitos mercados. Este fenómeno é obviamente uma consequência da atual pandemia e do dever de recolhimento domiciliário que muitas pessoas têm cumprido.
Em Portugal, confrontados com um incremento súbito da procura nas compras online, os operadores do setor agroalimentar já presentes neste canal de distribuição tiveram que reforçar as próprias cadeias de abastecimento e a respetiva logística. Outros operadores, por gerirem ou fornecerem bares, cafés, restaurantes e cantinas, todos limitados no seu funcionamento normal durante o estado de emergência, lançaram-se, compreensivelmente, nas vendas online quase de um dia para outro. Nesta conjuntura de confinamento muitos consumidores portugueses têm-se familiarizado, pela primeira vez, com as compras alimentares através de websites, apps e até redes sociais. Neste contexto, parece também ter sido ultrapassada aquela atitude de relutância que os consumidores geralmente têm para a compra de produtos frescos que não possam examinar presencialmente.
Face ao cenário acima descrito, é expectável que os hábitos de consumo desenvolvidos durante o recolhimento se consolidem na atual fase de desconfinamento e, subsequentemente, se mantenham depois do fim da pandemia. Assim sendo, é provável que, depois desta experiência, muitos operadores do setor agroalimentar acabem por integrar o e-commerce nas próprias estratégias comerciais a médio e longo prazo.
Desta perspetiva, é importante recordar que o e-commerce alimentar é uma atividade que constitui alvo de regulamentação específica a nível europeu e nacional, além de estar sujeito à disciplina normativa que se aplica às vendas online no geral e a outros contratos celebrados com o consumidor à distância. Trata-se, portanto, de uma atividade sujeita a fiscalização, realizando a própria Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) controlos regulares sobre as vendas de géneros alimentícios online e existindo um bom nível de cooperação entre os países da União Europeia (UE) para o acompanhamento dos casos de incumprimento com relevância internacional.
As regras europeias e nacionais acima referidas prendem-se especialmente com a informação que deve ser fornecida ao consumidor antes da conclusão da venda, sendo, de modo geral, essa informação a mesma que tem de figurar na embalagem ou acompanhar o produto no momento da sua entrega no domicílio do consumidor. A este respeito, é oportuno realçar que se trata de regras que se aplicam aos alimentos pré-embalados bem como aos não pré-embalados, categoria que inclui também alimentos, pratos e refeições preparados nos estabelecimentos da restauração coletiva. Naturalmente que esses produtos terão que cumprir igualmente todas as regras de segurança e qualidade alimentar que lhes se apliquem (por exemplo, o respeito de boas práticas de conservação aquando do transporte de alimentos refrigerados ou congelados). Da mesma forma, terão que assegurar a observância das demais diligências administrativas (por exemplo, a obrigação de notificação às entidades competentes da comercialização de suplementos alimentares e de outros produtos para que a lei preveja obrigações semelhantes).
Neste sentido, especialmente os operadores que se lançaram há pouco tempo no e-commerce alimentar, na perspetiva de um regresso progressivo à normalidade, devem ter consciência que há um conjunto de regras relativamente complexo a cumprir no que diz respeito a esta modalidade de venda.
Mesmo a simples comercialização de produtos de outros fabricantes em sítios ou plataformas web envolve responsabilidades jurídicas para o online seller, cabendo a esse último assegurar a presença e a exatidão na net das informações sobre os produtos alimentares que são exigidas pela lei. Assim, quem venda produtos de outras marcas em modalidade e-commerce terá que ficar atento às alterações que os produtos que adquire e comercializa possam vir a sofrer ao nível da rotulagem com vista a refletir essas mudanças na informação disponibilizada online. Ao mesmo tempo, quem forneça operadores que praticam e-commerce terá que manter um olhar vigilante nos vários websites ou plataformas para evitar possíveis riscos de danos à própria imagem e reputação profissional.
Além do dever geral de due diligence que compete a cada operador do e-commerce alimentar, a maneira como a informação é apresentada, a disponibilização de informações adicionais, a acessibilidade e legibilidade das mesmas constituem fatores que, à medida que o e-commerce alimentar se consolidar, acabarão inevitavelmente por influenciar as decisões de compra e as preferências dos consumidores. Aliás, os primeiros estudos realizados nesta área concluíram que existem atualmente sítios de e-commerce alimentar mais user-friendly de que outros, relevando para este efeito, entre outros, o número de cliques necessários para que o consumidor consiga visualizar a informação que lhe deve ser facultada por lei. Deste ponto de vista, a aplicação de soluções digitais inovadoras nesta vertente será, portanto, um dos elementos diferenciadores em que os operadores de e-commerce alimentar deverão apostar na definição das respetivas estratégias comerciais, podendo contribuir para o sucesso das mesmas.
Doutorado em direito europeu pela Universidade de Bolonha, especialista em direito agroalimentar e Diretor dos assuntos jurídicos e regulamentares da Arcadia International, antena Ibérica, Lisboa