O isolamento do vírus do mosaico do tabaco marcou o nascimento da fitopatologia e veio a contribuir, mais de 130 anos depois, para a descoberta do novo coronavírus, o SARS-CoV-2.
Em 1964, June Almeida, uma investigadora do St. Thomas Hospital, em Londres, observou e descreveu o primeiro coronavírus, a partir da amostra B814 de uma paciente engripada, utilizando técnicas para observação ao microscópio electrónico. Tendo falecido em 2007 com 77 anos, acabou por se tornar uma daquelas figuras de excepcional visão e antecipação, mas que, ao contrário de um qualquer jogador de futebol dos nossos dias, caiu no esquecimento. Até agora.
Cerca de 100 anos antes, por volta de 1880, o primeiro vírus tinha sido isolado e caracterizado por três cientistas, trabalhando independentemente, Adolf Mayer (1886), Dmitri Ivanovsky (1892) e Martinus Beijerinck (1898). Mayer tinha sido alertado por agricultores holandeses de que as folhas da planta de tabaco sofriam de uma doença peculiar, com manchas esbranquiçadas em “mosaico” – um fenómeno aliás conhecido, numa versão estriada, no século XVII pelos holandeses nas suas famosas túlipas, uma característica que as valoriza imensamente. Sabemos hoje que este fenómeno é causado pelo vírus do mosaico da tulipa (“tulip breaking virus”).
Como o triturado das folhas de tabaco afectadas – filtrado por filtros especiais, os filtros Chamberland, que retinham as bactérias, os seres patogénicos mais pequenos conhecidos nessa altura – era capaz de induzir novamente a doença, ao esfregar-se a suspensão filtrada em folhas saudáveis, estes misteriosos novos agentes patogénicos ficaram conhecidos como “vírus filtráveis”.
Tratava-se do vírus do mosaico do tabaco (tobacco mosaic virus), que apenas seria cristalizado em 1935, por Wendell Stanley (o “pai” da virologia vegetal), e observado pela primeira vez, com um microscópio electrónico, em 1939 por Helmut Ruska (irmão de Ernst Ruska, criador do primeiro microscópio electrónico e prémio Nobel de Física). Será graças a este microscópio, com uma ampliação e poder de resolução muito superior aos dos microscópios ópticos, que todos os vírus, incluindo os coronavírus, passarão a ser visualizados.
Mas só em 1955 (H. Fraenkel-Conrat) foi possível finalmente decifrar o misterioso vírus do mosaico do tabaco e compreender que era constituído por ácido ribonucleico (ARN) e por uma pequena cápsula de proteína (o capsídeo). Curiosamente quem contribuiu também de forma definitiva para a elucidação do vírus, em 1958, foi Rosalind Franklin, que se tinha tornado famosa pelas suas imagens de difracção de raios-X da hélice dupla do ADN, descrita por Watson e Crick em 1953. Ela apresentou um modelo do vírus do mosaico do tabaco na Feira Internacional de Bruxelas de 1958, modelo esse que se mantém, no geral, válido até hoje.
Como sucedeu em diversas circunstâncias, tem sido a biologia relacionada com as plantas que tem antecipado importantes descobertas na área animal e humana. Basta recordar a descrição das primeiras “células” em tecido de cortiça, por Robert Hooke em 1665, no seu famoso livro Micrographia, ou a observação do núcleo celular em orquídeas por Robert Brown em 1833, e que foram as clássicas experiências de Mendel com as ervilheiras, em 1865, que iniciaram a genética. E só após o vírus do mosaico do tabaco ter sido descoberto por volta de 1880 é que foi identificado o primeiro vírus animal, em 1897, por Loeffler e Frosch, o vírus da febre aftosa nos animais (foot and mouth disease virus), e o primeiro vírus humano, da febre-amarela, em 1901 por Walter Reed e James Carroll.
As plantas também ficam doentes, e esse fenómeno é conhecido desde os tempos bíblicos. Na Babilónia era já conhecido o “carvão” do trigo (um fungo do género Ustilago), que destruía quantidades significativas desse cereal. Em Roma, vários séculos antes de Cristo, os romanos temiam as frequentes situações de trigo “avermelhado”, causado por outro fungo, a ferrugem dos cereais Puccinia graminis. De tal modo que, todos os anos, sacrificavam aos deuses Robigo e Robigus, animais de cor avermelhada, para os apaziguar. Pior ainda era outra maldição, agora no centeio, que conhecemos como “cravagem” (ergot, em inglês) causada pelo fungo Claviceps purpurea, e cuja toxina, que inevitavelmente integraria os alimentos, se tornava fatal. A doença ficou conhecida como “fogo sagrado” ou “fogo de Santo António” na época medieval.
A Irlanda de 1850 sofreu a sua maior calamidade natural, que se chamou “míldio” da batateira, causado pelo fungo Phytophtora infestans, que destruiu a quase totalidade da área de produção deste tubérculo. A batata constituía então a cultura base da alimentação irlandesa. Por causa do míldio, e também pela negligência da Inglaterra vitoriana, mais de dois milhões de irlandeses morreram e outro milhão emigrou para os Estados Unidos.
Poderíamos citar dezenas de outros exemplos catastróficos que arruinaram a agricultura (e também as florestas) a nível mundial, agravado em décadas recentes com a intensa globalização e movimentação de pessoas e mercadorias, que constantemente transportam patógenos de um lado para o outro. Recomendo a leitura do recente artigo na Nature “The global burden of pathogens and pests on major food crops”.
As Nações Unidas, através da sua agência agronómica dedicada à luta contra a fome, a FAO (Food and Agriculture Organization), decretou 2020 como sendo o Ano Internacional da Sanidade Vegetal (International Year of Plant Health). A FAO estima que todos os anos o mundo perde cerca de 40% da produção agrícola para as doenças e pragas das plantas. Competimos com esses seres (insectos, fungos, bactérias, vírus e nematodes fitoparasitas) para a biomassa alimentar. Juntamente com as alterações climáticas, as actividades humanas têm contribuído, para além da perda de biodiversidade, para o desenvolvimento e a expansão cada vez maior das pragas e doenças das plantas. O papel da investigação em protecção de plantas, nomeadamente na prevenção e na utilização de uma estratégia ecológica, é essencial para reduzir os elevados custos económicos e sociais da humanidade. É a mensagem que as Nações Unidas nos transmitem em 2020.
Manuel Galvão de Melo e Mota
Professor do Departamento de Biologia e responsável pelo Laboratório de Nematologia da Universidade de Évora