Um terço dos alimentos produzidos no mundo é desperdiçado

Produzir alimentos para quase 10 mil milhões de pessoas e, ainda assim, reduzir as metas de carbono e manter o planeta sustentável é o grande desafio para as próximas décadas. Reduzir o desperdício alimentar, procurar sistemas alimentares sustentáveis e alimentação alternativa são as principais armas.

A produção de alimentos é, ao mesmo tempo, a maior alavanca de crescimento da humanidade e um dos maiores desafios que o planeta enfrenta para se manter sustentável. Segundo as previsões, em 2050 o mundo terá de conseguir disponibilizar alimentação a 9 ou 10 mil milhões de pessoas, mais de 2 mil milhões de seres humanos face aos existentes atualmente. A grande questão é como fornecer a esta crescente população dietas saudáveis, acessíveis a todos e a partir de sistemas alimentares sustentáveis. É que, enquanto por um lado aumentam os problemas do consumo excessivo de calorias, com todos os problemas de saúde e mortes associados – a doença cardíaca continua no topo da mortalidade -, por outro há ainda 820 milhões de pessoas a passar fome.

Se as estas juntarmos toda a população que vive em situação de má nutrição e insegurança alimentar, este número ascende a cerca de 2 mil milhões, cerca de um quarto da população atual, segundo dados da FAO – Food and Agriculture Organization, organismo do universo da Organização das Nações Unidas (ONU).

Dietas não saudáveis representam, segundo o relatório EAT – Lancet Comission, um risco de morbilidade e mortalidade maior do que o álcool, as drogas, o tabagismo e os comportamentos sexuais de risco combinados. “A produção global de alimentos ameaça a estabilidade do clima, a resiliência dos ecossistemas e é a maior impulsionadora da degradação ambiental. É necessária, com urgência, uma transformação radical e do sistema alimentar global”, pode ler-se no documento da EAT, plataforma sem fins lucrativos constituída por diversos especialistas e cientistas mundiais com o objetivo de apoiar a transformação dos sistemas alimentares.

“Alimentar e dar qualidade de vida a tanta gente vai ser o maior desafio de sempre para a humanidade. O planeta está no seu limite; na verdade parece que até já o ultrapassou no passado dia 29 julho, segundo o overshoot earth day. As alterações climáticas já se manifestam com toda a força, são as cheias na Europa e na China, o frio no Brasil, as ondas de calor e os fogos na Turquia, na Grécia e na Califórnia”, refere, a propósito, Isabel Sousa, professora do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e coordenadora do centro de investigação LEAF (Linking Landscape Environment Agriculture and Food), uma rede composta por mais de 130 investigadores nas temáticas da agricultura e alimentação.

Para esta especialista, esta é uma questão muito complexa e adianta que “a desertificação avança e a terra arável diminui. A água irá tornar-se, muito em breve, um bem tão escasso que, infelizmente, poder-se-á tornar numa arma política. A produção de alimentos, tal como está, e a mobilidade, são as grandes contribuições para o aumento dos gases com efeito de estufa. E a resposta para isto já todos sabemos: vamos ter de mudar os nossos hábitos alimentares e o modo como nos deslocamos habitualmente”.

O Pacto Ecológico Europeu é o resultado do reconhecimento da situação grave em que o mundo se encontra e os seus objetivos vão ser ainda mais reforçados pela catástrofe que se abateu sobre a Alemanha, onde morreram 180 pessoas nas últimas cheias. “O lugar da alimentação neste pacto é central – do prado ao prato, está no coração do Green Deal – e Portugal está alinhado com estas políticas de tornar a Europa um continente neutro em carbono, isto é, sem adicionar mais gases de estufa ao ambiente, em 2050”, refere Isabel Sousa.

Susana Fonseca, da direção da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, não poderia estar mais de acordo. “Temos de fazer alterações estruturais e conseguir encontrar uma dieta alimentar que tenha o mais baixo impacto ambiental possível, e isso consegue-se com uma alimentação mais próxima da base”, explica.

Reduzir o desperdício alimentar é fundamental para alimentar o mundo

Segundo o último relatório divulgado pela ONU, designado de “The State of Food Security and Nutrition in the World”, um dos impactos indiretos da pandemia de covid-19 é o aumento da fome no mundo. A tendência de descida que se fazia sentir foi invertida e, em 2020, registaram-se mais 118 milhões de pessoas em situação de subnutrição face ao estimado em 2019. “Se o mundo continuar no caminho atual, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de acabar com a fome até 2030 será perdido por uma margem de quase 660 milhões de pessoas”, pode ler-se neste relatório. Reconhecendo a urgência da temática, a ONU vai realizar, já no próximo mês de setembro, em Nova Iorque, a United Nations Food Systems Summit 2021, onde serão discutidas todas as situações que envolvem a disponibilização de alimentos.

Segundo o relatório da UNEP – Programa Ambiental das Nações Unidas, o mundo já produz alimentos suficientes para 10 mil milhões de pessoas, mas cerca de 17% desta produção é perdida. A perda e o desperdício alimentar, no seu conjunto, chegam a atingir um terço dos alimentos gerados em todo o planeta. Convém aqui explicar que se utiliza o termo perda de alimentos (food loss, em inglês) na fase da produção, envolvendo agricultores e fornecedores até chegar ao ato da venda, e que desperdício alimentar (food waste, em inglês) se refere a alimentos esbanjados a partir do ponto de venda, sejam lojas, supermercados, restaurantes ou já em casa do consumidor. Estima-se, aliás, que só na União Europeia cerca de 88 milhões de toneladas de alimentos sejam desperdiçados anualmente, ascendendo a um gasto de 143 mil milhões de euros. Deste montante, mais de metade (53%) é desperdício doméstico, ou seja, ocorre na cozinha das famílias.

No mundo, os números são astronómicos: são mais de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos perdidos e desperdiçados, num custo estimado de 2,3 biliões de dólares americanos (cerca de 2 biliões milhões de euros). Mas desengane-se se pensa que apenas os países mais ricos contribuem para esta perda: segundo a FAO, a percentagem é idêntica nas zonas de maior rendimento e nas de baixo rendimento. A única diferença é que nos países mais ricos este desperdício está no fim da cadeia de valor, no consumidor, e nos países mais pobres a perda está ao nível produção, junto dos pequenos produtores agrícolas, que não conseguem muitas vezes salvar colheitas ou canalizá-las corretamente para o consumo. O relatório da UNEP revela que, em média, são desperdiçados 74 quilogramas per capita de alimentos, anualmente, de forma semelhante entre países mais ricos e países mais pobres, havendo muita margem para melhorias.

Em […]

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