Como o Douro enfrenta o novo clima

A vitivinicultura está numa corrida para se adaptar a um clima cada vez mais agreste, ao mesmo tempo que reduz o seu impacto no Ambiente. Há uma revolução em curso na produção de vinho, que passa por recorrer a ciência de ponta, ao estudo de vinhas velhas em busca de castas mais resistentes e, sobretudo, por fazer da Natureza sua aliada. Viagem a um Douro – a maior região vitivinícola de montanha do mundo – que se reinventa para se tornar mais sustentável, em todas as aceções da palavra

Tão perto e tão longe. As águas frescas do Douro parecem rir-se de nós lá de baixo, enquanto calcorreamos os socalcos de terra seca da Quinta de São Luiz debaixo de um sol implacável, sem que corra sequer o sopro piedoso de uma leve brisa. Aparentemente alheias a esta canícula rematada a pó, uma dúzia de mulheres e homens, mais novos e menos novos, conversam sobre coisas mundanas, enquanto cortam cachos com gestos rápidos e seguros, sem tirar os olhos das tesouras.

Ainda falta uma semana para agosto se finar, mas a vindima já arrancou aqui e noutras vinhas da região. “Faz-se cada vez mais cedo”, comenta o enólogo Márcio Nóbrega, responsável de viticultura dos vinhos tranquilos da Sogevinus, empresa que detém a Quinta de São Luiz, no concelho de Tabuaço. “Há 50 anos, começava um mês mais tarde. Outubro era mês de vindima.”

Enquanto ainda há quem discuta, hoje, se o clima está assim tão diferente, na agricultura em geral e no setor vitícola em particular há muito que as alterações climáticas são um dado adquirido e um problema crescente. “A questão não é 1 ºC de temperatura média a mais, mas sim o número de dias acima de 35 ºC”, explica Márcio Nóbrega. “No ano passado, em julho, já íamos em 20 dias acima de 35 ºC.” A partir dessa temperatura, a planta entra em stresse e deixa de fazer a fotossíntese.

Vinhas velhas A solução para enfrentaras alterações climáticas está (também) no passado. Na Quinta do Monte Travesso, preservam-se videiras com quase 100 anos, de castas mais resistentes ao calor e à seca

A redução das emissões de gases com efeito de estufa, para travar o aquecimento global e mitigar os seus efeitos, continua a ser uma prioridade. Mas, no campo, já se percebeu que o tempo não volta atrás – e quem não se adaptar não sobreviverá. As alterações climáticas são um desafio para a vitivinicultura incomparavelmente maior do que todas as doenças e pragas da vinha juntas, do míldio ao oídio, da traça-da-uva à cigarrinha-verde.

Mas a adaptação já começou. E boa parte dessa adaptação parte de um novo paradigma: a vinha moderna quer-se integrada num ecossistema natural, não isolada dele.

Vinha boa é vinha com muito bicho
Durante um passeio pelo meio da quinta, Márcio Nóbrega aponta um termómetro digital de infravermelhos, em forma de pistola, para o chão nu, no caminho ao lado da vinha. O visor marca 50 ºC. Depois, aponta para o talhão entre as videiras, coberto de erva seca, meio metro ao lado: 36 ºC. É a prova de que a vegetação, mesmo depois de seca, refresca o solo, o que faz dela mais uma arma contra as altas temperaturas, enquanto ajuda a reter humidade. “Há 20 anos, era herbicida em todo o lado”, recorda o enólogo.

A ideia de que uma vinha com erva era uma vinha desleixada entrou em desuso. “Hoje, procura-se um equilíbrio e aposta-se na produção integrada [um modo de agricultura sustentável, com parâmetros definidos pela Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e certificado por entidades reguladas pelo mesmo organismo].”

Videiras para mitigar as emissões?

A vinha tem um grande potencial para auxiliar no combate às alterações climáticas. Uma meta-análise publicada em dezembro na revista científica Journal of Cleaner Production calcula que um hectare de vinha absorva 7,53 toneladas de CO2eq (dióxido de carbono equivalente) por ano. Ou seja, dois hectares de vinha compensam as emissões de três portugueses. O mesmo estudo conclui que práticas que potenciem esse sequestro de carbono podem contribuir para a mitigação do aquecimento global, dados os 74,5 mil quilómetros quadrados de vinha no planeta (o equivalente a quatro quintos do território de Portugal). Quanto mais “natural” e biodiverso for o ecossistema da vinha, maior a capacidade de retenção de CO2.

A produção integrada não se esgota nas ervas que se semeiam nos talhões (leguminosas para fixar azoto, gramíneas para conservar mais dióxido de carbono). Esta é só uma pincelada num mosaico verde, que conta também com taludes cobertos de vegetação natural para aumentar a biodiversidade e ajudar a segurar as terras, prevenindo a erosão, e com corredores ecológicos, que ligam as filas de videiras a manchas de matagais e bosques mediterrânicos, nas encostas.

Por estranho que pareça, o objetivo é atrair bicharada, tanto aqui como noutras explorações vitivinícolas, e de uma forma planeada ao pormenor. Doze quilómetros para leste da Quinta de São Luiz, Pedro Maria Barbosa, diretor de viticultura da Quinta da Aveleda, serpenteia pela vinha da Quinta Vale D. Maria, no concelho de São João da Pesqueira, apontando para árvores e arbustos de todos os tamanhos e feitios. “Aqui, plantámos rosmaninho; ali, medronheiro; acolá, temos bordaduras com oliveiras e ciprestes. Extratos de vegetação de diferentes alturas e que dão flor em alturas distintas, para trazer diferentes espécies de insetos e répteis.”

Em média, dois hectares de vinha compensam as emissões anuais de três portugueses

Nada é inocente. Se a vinha for uma monocultura, as suas pragas não têm competição nem predadores. Num ecossistema equilibrado, uma espécie não ganha primazia sobre as outras. Vêm então os morcegos, que funcionam como inseticida natural contra a temida traça-da-uva (um morcego chega a comer, numa só noite, o equivalente a um terço do seu peso corporal em insetos – e a traça é notívaga). Vêm as libélulas, que também predam insetos potencialmente nocivos para as uvas, e que é, até, uma das mais eficazes caçadoras do mundo animal, com taxas de sucesso acima de 90 por cento.

“Abdicamos de área de vinha para criar um equilíbrio”, continua Pedro Maria Barbosa. “A prazo, é um bom investimento financeiro. Um contabilista achará que sou tolo, porque estou a desperdiçar espaço que podia aproveitar para produção. Mas um sistema agrícola equilibrado vai ter menos pragas e ajuda a produzir vinho de melhor qualidade.”

A solução (também) está no passado
O tempo meteorológico é, por definição, inconstante e instável. Previsivelmente imprevisível. Mas entretanto tornou-se mais extremo e, simultaneamente, menos estático. É esta combinação que está a dar dores de cabeça aos produtores de vinho. “A diluição das estações é um facto, e não é positivo”, avisa Pedro Maria Barbosa. “As videiras dependem de uma dinâmica: frio para fazer a dormência, calor para a maturação. Se janeiro ou fevereiro forem mais quentes, temos um abrolhamento precoce da planta, que depois fica exposta a uma geada de março. Sinto esse nível de risco maior. Por outro lado, este ano, julho foi anormalmente fresco, o que pode atrasar a vindima e deixá-la exposta à chuva, […]

Continue a ler este artigo na Visão.


Publicado

em

, , ,

por

Etiquetas: