Três litros de leite por meio litro de água?

Na semana passada, fui com o meu filho Pedro e com o Hugo, nosso funcionário, “montar a rega” no “campo da mangueira furada”  😊 (a explicação para o nome está num texto anterior),  que fica alguns quilómetros afastado de casa. “Montar a rega” significa colocar o motor no poço e fazer as ligações elétricas e de “canalização”, o que implica puxar mangueiras que quase sempre estão na bordadura dos campos, presas no meio das ervas que cresceram durante o inverno e primavera.

Não estava muito calor mas estava um tempo abafado, por isso fui comprar água a um café próximo. Quando voltei, na pequena pausa para refrescar, comentei: “Tive de vender três litros de leite para pagar cada uma destas garrafas de meio litro de água!  Perante o seu ar de espanto (vosso também?), lembrei que vendemos o leite a 30 cêntimos e que paguei 90 cêntimos por cada garrafa.

Não digo que seja caro pagar 90 cêntimos por uma água num café. Percebo que num café ou restaurante não estamos a pagar apenas a água mas também o serviço. Com o consumo daquela água eu podia ter-me sentado à mesa e passar lá o dia a ver televisão, aproveitar o aquecimento ou ar condicionado e usar a casa de banho. Curiosamente, se pedisse meia de leite ou um galão, com outro valor nutritivo e que dá mais trabalho a preparar, pagaria um valor aproximado.

O problema aqui é o preço do leite, que ficou congelado (o que significa desvalorização tendo em conta a inflação) ao longo dos últimos 30 anos, tanto para o consumidor como para o produtor. Com efeito, desde que Portugal aderiu à União Europeia, se o preço do leite tivesse atualizado ao nível da inflação, o consumidor pagaria hoje 1,20€ por litro de leite, mas só se paga isso por “leites especiais”. As marcas brancas andam quase todas entre 40-50 cêntimos e as marcas próprias à volta dos 60 cêntimos e há sempre várias marcas em promoções, de modo que às vezes pode-se comprar leite UHT abaixo de 40 cêntimos por litro, mas as pessoas não bebem mais leite por causa disso. Os consumidores limitam-se a mudar de loja ou de marca para comprar a promoção dessa semana, ou comprar e armazenar o leite preferido quando está em promoção. Alguma coisa correu mal para chegarmos a esta “desvalorização do leite” que não acompanhou a evolução do preço do café, do pão e até da água engarrafada, mesmo aquela que é comprada no supermercado, naturalmente mais barata do que num café.

A desvalorização do leite UHT em Portugal não justifica tudo, mas é uma parte do problema que é preciso analisar e resolver. Para além do custo do leite ao produtor, há o custo dos transportes  entre vacaria – fábrica – armazém – supermercado, o custo da embalagem, da pasteurização e do restante processamento conforme o caso. Mas de uma fábrica ou de um supermercado saem também produtos lácteos, alguns bem valorizados. É com os “produtos de valor acrescentado” que as indústrias e os supermercados equilibram as suas contas e compensam a margem nula das marcas brancas de primeiro preço que usam como isco para o consumidor… e que apresentam como justificação para o baixo preço ao produtor. Além disso, o leite entra na fábrica com um teor de gordura médio de 3,7%, e para fazer “leite magro” e  “leite meio gordo” retira-se muita nata que tem um valor elevado no mercado.

Nota: Com exceção desta retirada de gordura, não há qualquer “desdobramento do leite”, como já me perguntaram. Um litro de leite crú que entra na fábrica para transformar dá um litro de leite UHT ou pasteurizado ou aproximadamente 1 kg de iogurte; E são precisos 10 litros de leite inteiro para fazer um kg de queijo. Sobra o soro e, se for queijo magro, sobra também a nata. Uma das melhores manteigas do mundo é feita no litoral minhoto a partir da nata retirada ao leite para fazer queijo magro…

#carlosnevesagricultor

O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.


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