Henrique Pereira dos Santos

Em louvor do fogo

Há semanas que ocorre um debate num grupo que se interessa por questões florestais sobre o uso do fogo na gestão do território.

A maior parte do debate tem de um lado as pessoas que gerem concretamente terrenos com alguma dimensão, e que, com variações, admitem o uso do fogo, tendo uma ideia muito clara de que a opção não é entre arder ou não arder, mas entre arder da forma que se entende, nos sítios que se entende, nos tempos em que se entende, com as melhores condições para controlar os efeitos potencialmente negativos do fogo, ou arder descontroladamente quando calha e nas condições que potenciam os efeitos negativos do fogo.

O outro lado tem uma série de pessoas que nunca conseguem explicar que áreas gerem – há um pequeno grupo que gere áreas agrícolas, não áreas marginais, que alinham neste lado do debate – e que têm ideias definitivas sobre o fogo, tendo a absoluta certeza de que é possível eliminar o fogo dos sistemas naturais que ocorrem nas nossas condições.

Até aqui, nada de anormal, a discussão entre quem se baseia no “honesto estudo, com longa experiência misturado” e aqueles que jamais deixarão que os factos influenciem as suas ideias é um debate eterno (e útil, é fundamental que os primeiros avaliem os argumentos dos segundos e consigam dar-lhes resposta racional porque nenhum dos grupos alguma vez terá todo conhecimento).

O que mais me espanta não é a existência destes dois grupos na discussão, o que me espanta são os poucos que seguramente praticam o “honesto estudo com longa experiência misturado” mas se fixam num aspecto do problema, esquecendo todos os outros e as relações entre os diferentes factores envolvidos em processos complexos.

São os que sabendo muito, reconhecendo que os outros podem saber muito de fogo, decretam que não sabem nada de ecossistemas e vegetação, para concluir que não se percebe por que razão alguém perde tempo a queimar giestais quando os giestais beneficiam com o fogo.

É bem verdade que os giestais se dão bem com vários padrões de fogo e é bem verdade que são dos principais beneficiários do padrão de fogo dominante actualmente em Portugal, os grandes fogos de Verão, com frequências que em média andarão pelos doze a quinze anos de intervalo, situação que, aparentemente, em muitas circunstâncias, conduz a um bloqueio da sucessão ecológica, com dominância esmagadora do giestal.

Quando um giestal se instala – e instala-se facilmente porque a giesta está especialmente adaptada a este tipo de fogos, comportando-se como uma invasora muito agressiva, só não sendo considerada uma espécie com comportamento invasor porque a definição de espécie invasora implica que não seja uma espécie autóctone – o tempo relativamente longo até ao fogo seguinte, os tais dez ou quinze anos, permitem o domínio quase total do giestal, que forma uma massa densa de giestas que impede a insolação do solo, dificultando enormemente a germinação do banco de sementes que possa existir no meio desse giestal.

Quando ocorre um fogo intenso de Verão – e ocorre sempre, mais cedo ou mais tarde – a camada superficial do solo é profundamente afectada, o banco de sementes que exista é destruído, a matéria orgânica existente na camada superficial do solo é calcinada, ao mesmo tempo que as sementes da giesta beneficiam de todo o processo por estarem preparadas para essas circunstâncias, a dormência das suas sementes é quebrada pelo fogo, sendo beneficiárias desse fogo intenso.

O resultado é a rápida reinstalação da dominância do giestal, momentaneamente quebrada pelo fogo, retomando a evolução que mantém o giestal denso como esmagadoramente dominante.

A questão a que aparentemente alguns ecólogos, que se recusam a estudar a ecologia do fogo, parecem não dar importância é que ao mexer nas características do fogo – frequência e intensidade – é possível quebrar o processo de auto-perpetuação do giestal.

Ao fazer um fogo controlado – o giestal arde muitíssimo bem nos fogos intensos de Verão, mas é dos sistemas mais difíceis de queimar com fogos prescristos porque, não havendo continuidade de combustiveis no solo, a propagação tem de ser feita através de um fogo de copas no giestal, com riscos muito elevados de ultrapassar a intensidade pretendida, aproximando-se de um fogo de Verão, nas suas consequências – não há afectação da camada superficial do solo, não há afectação do banco de sementes de outras espécies que existam e a vantagem das giestas face a outras espécies é bastante menor que a que existe em fogos intensos de Verão, abrindo oportunidades à germinação e sucesso reprodutivo de muitas outras espécies.

Ainda assim, se se mantiver a frequência de fogos de dez/ quinze anos, é natural que o giestal vá retomando a sua anterior preponderância, mesmo que com maior dificuldade dada a presença de outras espécies que competem pela luz, nutrientes e água.

Mas se se encurtar a frequência de fogo para quatro ou cinco anos, repetindo o fogo controlado – o segundo fogo será muito mais fácil que o primeiro dado que a continuidade de combustíveis no solo é maior e não será preciso fazer um fogo de copas para assegurar a progressão da chama – quebram-se as vantagens competitivas do giestal e a evolução vai tomando outro caminho.

Claro que todo o processo pode ser acompanhado por outras medidas de gestão entre fogos que garantam a progressiva perda da dominância do giestal, aumentado a diversidade ecológica e, sobretudo, mudando a agulha na evolução dos sistemas naturais, fugindo ao beco sucessional do giestal denso.

A solução ideal é juntar a este processo o pastoreio, por razões que não vou agora explicar (seria outro post tão igualmente extenso como este e com provavelmente tão poucos leitores interessados como este), mas nem sempre isso é possível.

O que me interessa é mesmo esta dificuldade que todos temos de pensar de forma diferente em assuntos que conhecemos muito bem: já olhámos para eles tantas vezes, já os estudámos tanto, como é possível que haja uma coisa básica que nos tenha escapado?

Não só é possível, como acontece frequentemente, como até é o mais natural que aconteça, é por isso que a democracia, isto é, o governo das pessoas comuns, de maneira geral é bastante mais eficiente, no longo prazo, que a tecnocracia, isto é, o governos dos técnicos.

Uma pessoa que sabe que não sabe está, por definição, muito mais disponível para admitir que talvez haja outra maneira de ver um assunto que o maior especialista nesse assunto.

Max Planck sintetisou bem a coisa ““A new scientific truth does not triumph by convincing its opponents and making them see the light, but rather because its opponents eventually die, and a new generation grows up that is familiar with it.”

por henrique pereira dos santos, em 13.04.21

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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