Em ano de pandemia, as marcas de retalho alimentar reforçaram compras nacionais de frescos, carne, peixe, vinho e queijos. Foi um aumento até 28%. Cadeias passaram a trabalhar com mais produtores.
A pandemia chegou, durante meses fechou restaurantes, cafés e mercados regionais e muitos produtores viram-se a braços com quilos de queijo, carne e fruta e sem forma de os vender. Para muitos, o retalho alimentar foi a alternativa. Os números das cadeias de super e hipermercados variam, mas no ano passado as compras à produção nacional terão aumentado até 28%. Só o Continente, o maior retalhista alimentar nacional, garantiu 206 mil toneladas (+28%) e investiu 365 milhões de euros (+22%). No Lidl as compras subiram 12% em valor e no Auchan comprou-se 7451 toneladas – mais 1200 (19,2%). No Intermarché investiu-se 264 milhões, mais cinco do que no ano anterior. O El Corte Inglés comprou mais 8,28%.
A covid-19 aterrou em Portugal há um ano e provocou corridas aos supermercados, deixou prateleiras vazias e causou receios de que a cadeia de abastecimento não conseguisse responder à pressão. “Os ministérios da Economia e da Agricultura, em abril, criaram um grupo de trabalho para as relações na cadeia alimentar, juntando à mesma mesa transportadoras, produção e retalho para garantir que a cadeia de abastecimento não estava interrompida. Toda a cadeia conseguiu assegurar que não faltassem bens alimentares nas prateleiras”, lembra Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED). No grupo, todas as semanas eram “sinalizados os problemas de escoamento de produtos ou de excesso de produção em várias áreas; nesse momento, a exportação caiu e o Horeca deixou de funcionar. Muita produção agrícola de carne e queijo, de áreas muito específicas como pequenos ruminantes, raças autóctones ou charcutaria, viram-se a braços com excesso de produção”.
Ajudar a escoar
Com a Páscoa a ser celebrada em casa e os pequenos produtores impedidas de vender, até o governo se chegou à frente para pedir que o setor ajudasse a escoar. “Houve resposta do retalho alimentar nacional que, tendo um racional económico, tentou acolher toda a produção nacional que se encontrava em dificuldades. Foi válido para muitos meses, campanhas em vários segmentos, de raças autóctones até às flores”, reforça o responsável da associação que representa cadeias como Continente, Pingo Doce, Lidl, Auchan e Intermarché.
Os números consolidados desta aposta na compra do agroalimentar nacional não são conhecidos, mas a ronda feita pelo Dinheiro Vivo junto dos retalhistas indicia um aumento efetivo das compras de bens nacionais. “Em 2020, o Continente comprou 206 mil toneladas de bens aos membros do Clube de Produtores Continente, ou seja mais 28% do que em 2019. São 365 milhões de euros em compras e uma evolução de 22% face ao ano anterior”, adianta Ondina Afonso, presidente do Clube. A cadeia da Sonae trabalha com mais de 240 produtores nacionais, alguns deles recentes. “Para ajudar no escoamento dos produtos e colheitas, em plena fase de emergência nacional, integrámos, em apenas duas semanas, mais de 40 novos membros no Clube”, diz.
Um reforço transversal ao setor e que obrigou os novos fornecedores a reagir. “Com possibilidade de entrar na distribuição, com as exigência de higiene e segurança alimentar, na rotulagem, nas embalagens, houve uma melhoria dos processos e das exigências que obrigou estas pequenas produções – vocacionadas para Horeca e mercados regionais – a investir, muitas vezes em conjunto com a própria distribuição, para poderem entrar nos supers”, descreve Lobo Xavier.
Cerca de 30 novos fornecedores de queijo regional de ovelhas, azeite e vinhos, por exemplo, passaram a vender no Pingo Doce, com mais de 100 na área de frutas e legumes a fazer parte do sortido. A cadeia do grupo Jerónimo Martins não adianta qual o valor global das compras nacionais ou a injeção de capital que isso representou na fileira, mas garante ter reforçado. “O Pingo Doce alargou as suas compras aos pequenos produtores regionais portugueses, de forma a contribuir para o escoamento da produção. Reforçámos, assim, o apoio aos produtores nacionais daqueles produtos cujo escoamento foi mais afetado pelo encerramento de hotéis, restaurantes e cafés e pela quebra nas exportações, com especial incidência nas categorias de ovinos e caprinos, vitela e vitelão e bovino da raça Angus, fruta e legumes, peixe fresco, queijo e enchidos, azeite e vinho”, adianta fonte oficial.
Resultado? Em talho, compraram “mais de 200 mil borregos, cabritos e cordeiros a fornecedores nacionais”, incrementaram “compras de novilhos da raça Angus nacional em mais de 20%” e as de vitela e vitelão a fornecedores nacionais em mais de 25%. Estabeleceram ainda, nesse campo, compromissos com as associações de carne barrosã, mirandesa, minhota e arouquesa. Nas frutas e legumes, com o reforço de mais 100 fornecedores nacionais, a cadeia teve um “incremento superior a dez pontos percentuais no peso de origem nacional”; e no peixe fresco intensificaram o investimento nos projetos de aquicultura nacional de dourada da Madeira e no robalo de Sines – “estes dois projetos totalizaram mais de mil toneladas em 2020” – e continuando a apostar no peixe-espada preto. No queijo regional de ovelha, de azeite e vinhos contactaram com cerca de 50 novos produtores regionais, adicionando cerca de 30. Feitas as contas: “No acumulado do ano acabámos por crescer nestas categorias em mais de 80 toneladas de queijo, mais de 800 mil litros de azeite e mais de 200 mil litros de vinho.”
Cerveja e exportações
“Estrutural” é como classifica Bruno Pereira o apoio do Lidl à produção nacional. O que resultou em que, em 12 meses, as compras tivessem aumentado “cerca de 12% em valor”, com as de produtores nacionais a representar “cerca de 55% do total de compras”. Com reforço do número, passaram “a trabalhar com seis novos fornecedores de queijo de vários pontos do país, disponibilizando dez novos artigos nas nossas lojas”, adianta o administrador de compras do Lidl Portugal. Trabalho que ainda continua. Já a fechar 2020, lançaram o projeto Da Minha Terra, desafiando produtores nacionais a apresentar os seus produtos para serem colocados à venda nas lojas. “Em apenas um mês, esta iniciativa reuniu um total de 180 candidaturas nas áreas da charcutaria, queijos, doces e bolos secos. Selecionámos cerca de 70 produtores que, por cumprirem os critérios predefinidos e revelarem potencial dos produtos propostos, foram convidados a apresentá-los de forma presencial num formato de pitch. Estamos agora a efetuar testes de degustação dos produtos, bem como a avaliar as potencialidades de cada produtor e respetivos artigos”, adianta Bruno Pereira. Quem passar à fase seguinte juntar-se-á ao lote de fornecedores da cadeia que, globalmente, no ano fiscal de 2019 (março desse ano a fevereiro de 2020) trabalhava com cerca de 240 fornecedores nacionais – mais 30 do que no ano fiscal anterior – e tinha no sortido cerca de 850 produtos portugueses.
Com o Horeca – canal importante de vendas para as cervejas – fechado, o Lidl acertou ainda uma parceria com a Praxis, empresa sediada em Coimbra e mais antiga produtora de cerveja artesanal em Portugal, “para desenvolver para o verão três variedades de cervejas artesanais exclusivas”.
A cadeia deu ainda uma mão às exportações no agroalimentar. “Fizemos questão de manter a via da exportação, ajudando os nossos parceiros a manter os canais de fornecimento, ao mesmo tempo que impulsionámos a produção nacional para os vários mercados onde temos presença”, recorda Bruno Pereira. Foi o caso da “exportação de limão do Algarve para a Alemanha, em março; o aumento de 30% na exportação de frutas e legumes, em março e abril face ao período homólogo; e o início das exportações de atum de Santa Catarina para Alemanha, Grécia e Bélgica”.
Num ano atípico, “o Intermarché totalizou um volume de compras de mais de 86 600 toneladas a produtores nacionais”, revela Martinho Lopes, administrador da cadeia de supermercados de Os Mosqueteiros. “A aposta da insígnia nas compras a produtores nacionais representou, em 2020, um investimento total de mais de 264 milhões, o que significa um aumento de 5 milhões de euros no volume de compras face ao ano anterior”, continua. Ou seja, mais 2%. “O peso das compras de produtos nacionais na secção tradicional representa, atualmente, um peso de 56%”, diz ainda o responsável da rede de 254 lojas, que desenvolve há vários anos o programa Origens, apoiando cerca 700 produtores, incluindo associações e cooperativas, contribuindo para a plantação de mais de 18 mil hectares e a criação de mais de 500 postos de trabalho.
Na Auchan, houve igualmente um reforço das compras nacionais. No ano passado foram “mais 1200 toneladas de produtos frescos adquiridos a fornecedores nacionais do que em 2019”, adianta fonte oficial. Nesse ano, o retalhista tinha comprado 6251 toneladas (+13,2% em relação a 2018), o que significa que em 2020 compraram 7451 toneladas, mais 19,2%. “Em 2020, 85% de todas as compras de mercadoria da Auchan Retail Portugal foram realizadas a fornecedores nacionais” que, no que respeita aos frescos – com destaque para frutas e verduras, peixaria, queijaria LS – pesaram 92% nas compras de produto fresco da empresa. “Estamos a falar de perto de 550 fornecedores nacionais, entre os quais mais de 150 locais, pequenos produtores, num raio de proximidade de 50 km, cujas entregas são feitas loja a loja.” Dos 200 produtos de produção controlada, provenientes de mais de 100 fileiras à venda nas lojas, 90% vêm de produtores portugueses.
No El Corte Inglés comprou-se mais “8,28% a fornecedores nacionais, tendo o nosso mercado aumentado 7,44%”, diz fonte oficial. A maioria das compras alimentares foi feita a nacionais, 82,31%, “o que demonstra a clara aposta no mercado local em todas as categorias de produto”. Compraram a 888 empresas, mais 28 do que em 2019. “Mais do que nunca, é essencial promover os fornecedores portugueses, especialmente na alimentação. Desde sempre, a nossa estratégia passou por comprar o mais possível cá dentro e uma vez que temos vindo aumentar o sortido de frescos e produtos de conveniência, em especial em áreas como fruta e legumes, cada vez mais compramos nacional”, assegura Acácio Santana. “Em 2020 a variação do volume de compras foi proporcional ao aumento das vendas, ou seja, superior a dois dígitos”, adianta o diretor-geral da Coviran Portugal – uma subida em volume de compras que se refletiu na mesma subida superior a dois dígitos em valor. As compras nacionais têm um peso superior a 80%, com a empresa a trabalhar com cerca de 300 fornecedores.