Viagem pela nossa gastronomia através de 28 pedaços do melhor que Portugal tem para oferecer. De norte a sul, sem esquecer as ilhas, saboreemos as histórias destes produtos genuínos, alguns em vias de desaparecerem para sempre. Por isso, torna-se urgente defender e preservar uma herança rica em sabores tão diversos como as nossas origens
Azeite de Trás-os-Montes
O ouro das oliveiras centenárias
As inúmeras medalhas conquistadas refletem a qualidade do azeite da região transmontana, responsável por 15% da produção nacional de azeitona para azeite, em explorações bem mais pequenas do que as congéneres alentejanas. Distingue-se por ser equilibrado, com cheiro e sabor a fruto fresco, por vezes amendoado, a oscilar entre os toques de doce, verde, amargo e picante. Para obter a Denominação de Origem Protegida, tem de ser virgem extra ou virgem, feito a partir das variedades de azeitona verdeal transmontana, madural, cobrançosa, cordovil e outras. Pela Terra Quente, não são raras as oliveiras centenárias – há registos do século XVI sobre a plantação de olivais – protegidas como um tesouro pela população.
Broa de milho de Arcos de Valdevez
Em vias de extinção
É um dos raros produtos portugueses com o reconhecimento da Slow Food Foundation for Biodiversity e está a desaparecer. Joaquim Dantas, especialista em sustentabilidade alimentar, tem sido o guardião da broa de milho de Arcos de Valdevez. É dos poucos que continuam a cultivar o milho regional, com menos casca e um sabor completamente diferente das variantes transgénicas. Há uma cultura e um património associados à broa, desde os espigueiros aos moinhos de água a que este pequeno produtor continua a recorrer para fazer a sua farinha. Quanto à receita, usa três partes de farinha de milho e uma de centeio para fazer a liga, além da levedura tradicional, tudo misturado na masseira. A cozedura, em forno a lenha, também tem a sua arte, para a côdea ganhar aquele tom castanho-dourado.
Carne barrosã
Dos pastos verdes
A armadura imponente em forma de lira distingue a raça bovina autóctone do planalto do Barroso, entre Montalegre e Boticas. Nas populações rurais, desempenha um papel importante na agricultura, em que só animais adaptados às condições peculiares da montanha e da meia-encosta conseguem trabalhar as leiras de pequena dimensão, fazendo a fertilização das mesmas com o estrume que produzem. Para a alimentação da barrosã, recorre-se não só a prados e lameiros como também a baldios, misturando-se forragens verdes e conservadas (erva, palha, feno e, às vezes, silagem de milho), além de suplementos como milho, centeio e batata. A carne de cor rosada a vermelho-escura é tenra, suculenta e muito saborosa – algo explicado pelo marmoreado, ou seja a forma como a gordura está uniformemente infiltrada. Nos últimos anos, tem sido consecutivamente premiada em concursos nacionais e internacionais.
Bísaro transmontano
Um porco à solta nos soutos
Costuma dizer-se que o porco sabe ao que come. No caso do bísaro transmontano, falamos de suínos criados no tradicional sistema semiextensivo, ou seja em explorações com áreas para pastagem, onde a alimentação é diversificada – uma mistura de cereais, complementada com produtos hortícolas, fruta e até castanhas, quando andam livremente pelos soutos. “No sabor, distingue-se perfeitamente de um porco industrial. É uma carne mais rosada, marmoreada, com infiltração de gordura, o que lhe dá uma tenrura e suculência diferentes”, aponta Pedro Fernandes, da Associação Nacional de Criadores de Suínos da Raça Bísara, sediada em Vinhais. É desta carne que são feitos, precisamente, o fumeiro (azedo, butelo, chouriça de carne e doce, salpicão e alheira) e o presunto de Vinhais, produtos com Indicação de Origem Protegida, que nesta região, de invernos longos e frios e verões quentes e curtos, possui condições excelentes de cura.
Alheira de Mirandela
A importância do carimbo
Alheiras há muitas, mas as de Mirandela possuem características que lhes garantiram, em 2016, a Indicação Geográfica Protegida pela Comissão Europeia, ou seja: só as feitas neste concelho, obedecendo a um processo de produção específico, se podem gabar da proveniência. A origem judaica, essa, ainda é mais discutível. Distinguem-se, isso é certo, pelo aroma e paladar levemente fumados, pelo sabor a alho e a azeite e pela textura da massa, feita de pão regional de trigo, cozido especificamente para as alheiras, e de bons pedaços de carne, de porco bísaro ou de aves. Há outras particularidades, como a massa incorporar a água de cozedura das carnes ou o facto de só se usar tripa natural salgada de vaca. O toque final é a fumagem em lume brando, com lenha da região (carvalho e oliveira), durante aproximadamente oito dias. É o enchido regional mais consumido e conhecido no País.
Pão de Ló de Ovar
A escorrer gula
A documentação a atestar a confeção do doce remonta a 1781. A Casa São Luiz, a mais antiga de Ovar, continua a ser gerida por descendentes da família Arrota, depositária da receita que se crê ser de origem conventual. O método de produção é delicado, tanto na avaliação do ponto ótimo da massa como na forma como se trata o pão de ló dentro do forno, com uma cozedura muito precisa. “Mantemos o secretismo na confeção”, diz Maria de São Luís, a 12ª geração à frente da Casa São Luiz. Conta-se que alguns membros da família exerciam a atividade de fragateiros no Tejo e, partir das oferendas a clientes nas épocas festivas, acabaram por divulgar e expandir as vendas do pão de ló. Entretanto, outras famílias passaram a dedicar-se à confeção do doce regional, de massa leve e fofa, com uma fina côdea acastanhada, designada “ló”, e o interior a escorrer ovos, popularmente conhecido como “pito”. Os de Ovar, legítimos, têm uma Indicação Geográfica Protegida.
Enguias de Aveiro
Ao vivo e aos saltos
Mesmo sem se apreciar a iguaria que cresce na ria de Aveiro, vê-la à venda nos mercados da região, de Ílhavo à Murtosa, ainda viva, numa atividade frenética, é um espetáculo digno de registo. Talvez essa seja a prova de que se compram exemplares nacionais, já que os pescadores estão a virar-se para outras espécies mais rentáveis, como explica António Rocha, da região de Aveiro: “A enguia deixou de ser abundante e agora vem da Europa.” No entanto, a Anguilla anguilla continua a ser um ex-líbris deste canto de Portugal. Peixe migrador, nasce no mar dos Sargaços, no Atlântico Norte, mas procura, nas águas calmas da ria, alimento durante a sua fase juvenil, abrigando-se no meio da vegetação submersa ou nos fundos. Com a procura que elas sempre suscitaram, criou-se a famosa caldeirada à moda de Aveiro, mas também é comum apreciá-las fritas, em escabeche ou em conserva.
Camarão de Espinho
Sabor a mar bravo
Nos anos 1960, o comerciante Alberto Maia abeirava-se dos pescadores, acabados de recolher a rede da arte xávega, e comprava, por meio-tostão, os camarões pequeninos, aqueles que escapavam pelos buracos e que todos desprezavam. Cozia-os, temperava-os e mandava-os, por comboio, para outros cantos do País. Para que não se perdessem, levavam uma etiqueta a dizer “Espinho” – assim nasceu esta designação. Mas o tempero é que faz a diferença, segundo explica Emídio de Almeida, da Confraria do Camarão de Espinho: “Devem ser cozidos em água do mar, com um bocadinho de piripíri, e apenas durante três ou quatro minutos. A seguir, há que pô-los em água gelada com o mesmo tempero.” O bicho quase desapareceu das águas frias e agitadas desta praia e agora existe mais longe da costa e noutras praias nas redondezas. O seu preço, nos restaurantes, pode chegar aos 90 euros o quilo.
Conservas de peixe
Dentro da lata
Não é por já ter havido 400 conserveiras e por agora elas não chegarem a 20 que o peixe conservado em Portugal perdeu o encanto. Antes pelo contrário – mais de metade da produção vai para o estrangeiro, graças à fama que este produto tem lá fora. A concentração em poucas unidades fabris faz com que se aposte sobretudo em três peixes (atum, sardinha e cavala), embora haja 28 espécies à venda, num design mais apelativo e na diversificação das receitas, indo para além do azeite ou do óleo (podem juntar-se algas, gengibre, caril ou pimenta dos Açores, por exemplo). Se os estrangeiros já estão rendidos a esta forma de comer peixe, os portugueses ainda optam pelas versões mais baratas, pois abrir uma lata está associado a uma refeição rápida e sem primor. Por isso, a associação do setor tem-se esforçado em sensibilizar para a excelência da indústria e a superioridade do pescado nacional.
Castanha dos Soutos da Lapa
O pão de outros tempos
“Os castanheiros levam cem anos a chegar ao estado adulto. Cem anos a crescer, cem no seu ser, e cem a morrer. Que importa? Os homens de boa vontade perpetuam-se nos filhos e vindouros…” Este é um excerto de Geografia Sentimental, de Aquilino Ribeiro, e testemunha a importância económica, alimentar e cultural do castanheiro na região, ao qual chamavam “árvore de pão”, que não precisa de solos muito férteis nem de exposição solar para progredir. O autor era natural de Sernancelhe, um dos concelhos produtores da castanha dos Soutos da Lapa, cuja denominação de origem protegida abrange ainda Armamar, Tarouca, Tabuaço, S. João da Pesqueira, Moimenta da Beira, Penedono, Lamego, Aguiar da Beira e Trancoso. Falamos das variedades Longal (de cor castanha avermelhada e muito brilhante) e Martaínha (castanha-clara com brilho médio), conhecidas por serem macias, pouco farinhentas e com um paladar suave e doce.
Maranhos da Sertã
Um enchido peculiar
Diz-se que os maranhos terão aparecido há mais de 200 anos, por altura das invasões francesas, embora tenham granjeado fama sobretudo durante o século XX, quando eram habituais em dias de festa. Saiba-se que a base deste prato substancial é a carne de cabra e/ou ovelha, animais que existem em abundância no concelho da Sertã, a que se juntam presunto, chouriço, hortelã, arroz, sal e vinho branco. Desde maio, foi-lhe “conferida, ao nível nacional, proteção à denominação Maranho da Sertã como Indicação Geográfica”, mas o processo de proteção ainda não terminou: já deu entrada um pedido de reconhecimento enquanto produto com Indicação Geográfica Protegida, na União Europeia.