Entrevista | As maravilhas que quatro letras podem fazer

“Pela primeira vez, é fácil e acessível editar o genoma de plantas”

Seja na saúde ou na produção de alimentos, está demonstrado que o CRISPR pode ser a solução para muitos dos desafios atuais. Mas enquanto o uso da tecnologia ficar confinado aos laboratórios vai-se adiando a cura de doenças genéticas e a tão necessária produção de mais alimentos. Será que a atribuição do Prémio Nobel da Química às duas investigadoras que descobriram esta ferramenta é o empurrão que a edição do genoma precisa para ser aceite? É o que espera Paula Duque, investigadora do IGC.

Entrevista: Margarida Paredes / CiB

Fotografia e vídeo: Joaquim Miranda


Assista também a este vídeo, que resume, em três minutos, o conteúdo da entrevista.

Acha que a atribuição do Nobel da Química a quem “inventou” o CRISPR-Cas9 vai contribuir para que a edição do genoma seja transversalmente aceite?

É difícil prever, porque os preconceitos são muitos e estão muito enraizados, mas desde que o Prémio foi atribuído a

e a Jennifer Doudna pelo desenvolvimento de um método de edição do genoma nunca se falou tanto das potencialidades do CRISPR-Cas9. Pelo menos para a divulgação e conhecimento da tecnologia contribui certamente, o que por si só é positivo.

Estamos a iniciar uma nova era na engenharia genética?

Penso que já iniciámos, ainda antes desta descoberta. O CRISPR não é a única ferramenta que permite editar os genomas, existem outras, embora esta seja, de facto, mais simples, mais rápida, mais barata e mais dirigida e, nesse sentido, sim, podemos considerar que estamos a assistir a uma nova era na engenharia genética.

Começando pelo princípio, em que consiste a edição do genoma?

A edição do genoma é um tipo de engenharia genética. Surgiu em meados dos anos 90 do século XX e permite acrescentar, remover ou substituir pedaços de sequências genéticas após corte do DNA em determinado local. Ou seja, permite-nos intervir especificamente na zona que queremos. Enquanto que até então, por exemplo com a tecnologia usada para os tradicionais OGM-Organismos Geneticamente Modificados, podíamos modificar o genoma inserindo nele um gene estranho, mas muitas vezes sem saber muito bem onde é que esse gene ia ‘aterrar’ – com a desvantagem de ser difícil controlar a disrupção de outra informação genética –, com a edição do genoma a modificação genética é feita de forma muito mais dirigida. O CRISPR é um método aperfeiçoado da edição do genoma. Permite modificar o DNA de uma forma de tal maneira controlada que podemos até alterar uma só letra do código genético.

Uma letra de inúmeras sequências e combinações de quatro letras diferentes. Quer explicar?

O genoma é o conjunto da informação genética de um organismo e esta está codificada no DNA. O DNA consiste em sequências enormes de quatro letras diferentes: A, C, T e G, que correspondem, respetivamente, às bases nitrogenadas Adenina, Citosina, Timina e Guanina. Cada gene é um segmento maior ou menor de uma sequência dessas letras combinadas.

Então, a principal vantagem do CRISPR relativamente a outras tecnologias é a precisão com que se insere um gene no genoma de um organismo?

Sim, é podermos chegar, de forma altamente precisa, a uma dessas letras e modificá-la, alterando assim o código genético. Mas não é a única vantagem. Além de precisa, é uma tecnologia mais fácil, mais rápida e menos dispendiosa. Representa um grande avanço nas tecnologias da edição do genoma.

Isso significa que antes do CRISPR ou de outras técnicas de edição do genoma a engenharia genética fazia-se um bocado ‘às cegas’?

Às cegas não, mas as modificações que se realizavam no genoma não eram tão dirigidas. Chama-se engenharia genética a tudo o que seja modificar o genoma. Já nos anos 70 do século XX se podia inserir em zonas alvo do genoma pedaços de DNA estranhos ao organismo. A recombinação homóloga permitia trocar informação genética entre duas moléculas de DNA idênticas ou muito semelhantes. Mais tarde, com o surgimento da edição do genoma, passámos a fazer a modificação genética de uma forma mais dirigida, criando nucleases artificiais, isto é, enzimas que vão cortar o DNA em sítios muito específicos (as chamadas tesouras moleculares). Recentemente, com a descoberta do CRISPR, que é um aperfeiçoamento das técnicas da edição do genoma, podemos mais facilmente modificar genes de uma forma ainda mais dirigida, ou seja, podemos ir à letra que queremos alterar.

O CRISPR é a ferramenta de edição do genoma mais divulgada, no entanto, não é a única. Que outras ferramentas existem? Permitem todas o mesmo resultado?

Sim, é verdade, não é a única. Já existiam tecnologias semelhantes, como ZFN e TALEN, em que basicamente as tais tesouras moleculares são associadas a proteínas que se ligam ao DNA e, portanto, dirigem a atividade de corte para locais específicos do genoma. Com maior ou menor dificuldade e eficácia, sim, as ferramentas de edição de genoma permitem todas o mesmo resultado: modificar o DNA de forma dirigida.

O CRISPR permite, pela primeira vez, editar com facilidade o genoma de plantas. Porque é que era tão difícil fazer edição do genoma em plantas?

É verdade, a edição de genoma em plantas só se passou a fazer facilmente agora com o CRISPR, por ser uma ferramenta muito mais eficiente e acessível. Antes, a única tecnologia que se usava em plantas era a que gera os chamados OGM-Organismos Geneticamente Modificados. É uma ferramenta de engenharia genética, mas não permite a edição precisa do genoma. O CRISPR foi facílimo de adaptar às plantas, de maneira que poderemos conseguir agora por exemplo modificar um T por um A e desenvolver uma planta mais resistente a uma praga ou à falta de água…

Isso significa que poderíamos produzir abacate no Algarve sem gastar muita água? As plantações aí existentes consomem 3,5 milhões de litros de água por dia do aquífero, com prejuízo para outras culturas…

As potencialidades da edição de genoma no melhoramento de plantas são imensas e à partida quase tudo se poderá conseguir. Se conhecermos bem os mecanismos básicos utilizados pelas plantas em geral e o abacateiro em particular na gestão dos recursos hidrícos, poderemos definir uma estratégia de modificação da expressão génica que resulte num menor consumo de água. Isto ilustra bem a importância da investigação fundamental: sem ela não há investigação aplicada nem biotecnologia.

A modificação genética feita na planta através da edição do genoma não é detetável porquê?

Porque não é inserido DNA vindo de outro organismo e a modificação que se fez por edição genética muitas vezes poderia ocorrer espontaneamente na natureza, sem a intervenção humana. Por isso é que não fazem sentido os temores relativamente a esta tecnologia. Melhoramento do genoma das plantas é o que fazemos desde o aparecimento da agricultura, no Neolítico. Fazíamos e continuamos a fazer o melhoramento por técnicas tradicionais – cruzamos duas variedades ou duas espécies para fazer um híbrido que nos permite depois, nas gerações seguintes, selecionar a característica que mais nos interessa. O trigo atual, não tem nada a ver com o trigo que existia há dez mil anos, graças aos processos naturais de melhoramento que o homem foi implementando.

Com a edição do genoma desenvolvemos uma planta com características que poderiam de facto ocorrer como consequência do melhoramento natural. Simplesmente o processo é mais rápido e eficiente.

Os investigadores dizem que o CRISPR pode ser a solução para muitos problemas. Na saúde tem o potencial de tratar e curar doenças. Tem a mesma expetativa?

As esperanças nesta tecnologia são muitas e em áreas diferentes porque as experiências de facto demonstram que tem enormes potencialidades para ajudar a resolver muitos problemas da sociedade atual, entre os quais determinadas doenças. Em princípio, qualquer doença hereditária para a qual se conheça a alteração genética, a mutação, que a causa pode ser tratada com esta tecnologia. Neste momento, cientistas e empresas unem esforços e conhecimentos em ensaios clínicos para que seja possível tratar certas doenças através desta técnica de manipulação do genoma. Desde a cegueira hereditária até às doenças do sangue. Após três décadas de investigação, a terapia génica demonstrou que pode curar doenças genéticas.

Pode ser mais específica?

Experiências com ratinhos ou células humanas em cultura têm vindo a demonstrar que a tecnologia CRISPR pode ser utilizada com sucesso no tratamento de mútiplas doenças, como por exemplo a hemofilia ou a anemia falciforme, que afetam respetivamente a capacidade do sangue coagular ou transportar oxigénio, a distrofia muscular, para a qual não há tratamento disponível, a fibrose quística, que provoca problemas respiratórios sérios, a SCID (do inglês Severe Combined Immune Deficiency], uma imunodeficiência primária em que os pacientes apresentam baixos níveis de células T e B, para mencionar só alguns exemplos… Em todo o caso, apesar do enorme potencial na medicina, ainda não foi aprovado qualquer tratamento utilizando esta ferramenta de edição do genoma.

E a agricultura como beneficiar da edição do genoma?

Como disse, com esta tecnologia poderemos gerar plantas que sobrevivam melhor a vários fatores ambientais, nomeadamente a pragas e doenças, excesso de salinidade no solo, falta de água, etc.. Relativamente à falta de água, a edição genética pode-nos permitir por exemplo desenvolver plantas que têm a capacidade de fechar os estomas mais rapidamente em resposta à seca. Os estomas são pequenos poros nas folhas, por onde a planta perde água por transpiração. Ora, se conseguirmos desenvolver uma variedade, por exemplo de milho, que responda ao sinal de falta de água, fechando os seus estomas mais depressa, a colheita de milho irá crescer melhor apesar de estar inserida numa região afetada pela seca. O mesmo se aplica à salinidade, à falta de nutrientes, às pragas e doenças e a outros problemas. Como vantagem adicional, a tecnologia poderá fazer com que as plantas não necessitem das doses de fitofármacos geralmente aplicadas na produção convencional.

Portanto, é também uma tecnologia favorável ao ambiente…

Sem dúvida. Se bem utilizada, a tecnologia pode ser um grande aliado na solução dos grandes problemas atuais, nomeadamente ambientais. O melhoramento genético de plantas através da edição do genoma poderá não só pode salvar muitas vidas, fazendo crescer mais as colheitas em condições adversas, como também tornar a agricultura mais sustentável e amiga do ambiente, na medida em que poderá exigir menos pesticidas e herbicidas ou menos fertilizantes, se gerarmos plantas com um menor consumo dos recursos naturais dos solos.

Diria que o primeiro e mais importante benefício da tecnologia estará relacionado com a diminuição dos problemas da fome no contexto atual de explosão demográfica. A população mundial está a crescer a um ritmo alucinante. Desde os anos 60 do século XX até agora a população no mundo mais do que duplicou e, embora se preveja que começará a crescer a um ritmo menos acelerado, prevê-se que vá duplicar também durante o século XXI. Vai ser preciso alimentar muito mais gente.

Não é excessivo afirmar que esta tecnologia pode resolver o problema da fome?

Não acho nada excessivo. Se bem usada, poderia salvar milhões de vidas. Não é novidade para ninguém que as regiões no mundo onde as pessoas têm mais fome são aquelas onde as condições para crescer colheitas vigorosas e de qualidade são piores. E nestes cenários a biotecnologia pode fazer ‘milagres’.

Mas então por que é que há tanta resistência em aceitá-las?

Quando se trata de saúde, de curar doenças, a Opinião Pública não se opõe à utilização da biotecnologia, mas na produção de alimentos atribui à biotecnologia um papel demoníaco. Entende este contrassenso?

Não, não entendo, porque não há nenhuma evidência científica de que um Organismo Geneticamente Modificado, mesmo os tradicionais OGM, tenha algum impacto negativo na saúde humana. Há décadas que se fazem insistentemente experiências para tentar revelar algum aspeto negativo dos transgénicos na saúde humana e não há um resultado credível que o indique. Alergias? São tantos os alimentos ditos naturais que provocam alergias… Cancros? Não há evidência alguma de que isso possa ser verdade. Efeitos ambientais nefastos? Se uma planta está muito melhor adaptada às condições adversas do meio onde se insere, é natural que se possa tornar predominante e isso poderá ameaçar a biodiversidade vegetal, mas esse cenário é evitável com regras de contenção e gerando transgénicos que não fertilizem outras plantas.

Então é fácil evitar a perda da biodiversidade?

É. Em todo o caso, permita-me acrescentar que, como compensação, com as novas variedades criadas com a biotecnologia conseguimos gerar uma biodiversidade vegetal que antes não existia e  temos já bancos de várias variedades de feijão, trigo, milho e de outras culturas graças à biotecnologia. É-me por isso difícil de entender por que é que as pessoas têm tanto medo da biotecnologia na produção de alimentos, sobretudo quando esta ferramenta aplicada às plantas pode salvar tantas vidas humanas. É preciso não esquecer o facto de morrerem no mundo incomparavelmente mais pessoas de fome do que de qualquer doença. E acho paradoxal que as pessoas temam mais que se use a edição de genoma em plantas do que em humanos, quando as questões éticas que se podem levantar em humanos são muito mais sérias do que em plantas.

Como assim?

Qualquer tecnologia em si é neutra, não é boa nem é má, o uso que se faz dela é que pode ser muito perigoso. Em humanos, se nas mãos erradas, a edição de genoma poderia ser usada com fins eugénicos, de apuramento da raça, por exemplo, e isso sim, do ponto de vista ético seria muito inquietante. Em plantas não se colocam questões dessa natureza.

A edição do genoma e os OGM ainda são entendidos como sendo a mesma metodologia. São? O que os distingue?

Literalmente, um OGM é qualquer organismo que tenha sido manipulado pelo Homem para lhe modificar o genoma. Portanto, em rigor, tudo o que é edição de genoma é OGM, mas nem tudo o que é OGM é edição do genoma. As poucas variedades aprovadas – na Europa há só uma (milho) e nos Estados Unidos, Brasil e outros países há muitas, entre as quais milho, colza, soja e algodão – foram modificadas por engenharia genética tradicional (modificação não dirigida), ou seja, inseriu-se de forma mais ou menos aleatória uma sequência de DNA estranha à planta (e por isso é que a modificação é facilmente identificada). A edição do genoma das plantas, por exemplo por CRISPR, não a designamos OGM para a distinguir da tradicional engenharia genética, já que é feita de uma forma muito diferente. Como já tive oportunidade de explicar, é muito mais dirigida e pode implicar uma modificação mínima que consista apenas na substituição de uma letra na molécula de DNA sem deixar nenhum vestígio de que a planta foi modificada (e por isso é que é indetetável). Até por esta razão seria expectável que a Opinião Pública entendesse a edição do genoma como um processo quase natural e não como um bicho papão.

Em termos reais, científicos, a grande vantagem é poder fazer modificação genética de forma mais eficiente e ao mesmo tempo mais rápida, fácil e barata, sem introdução de material genético estranho à planta (que é o que acontece na tecnologia dos OGM). O facto de ser uma tecnologia menos dispendiosa entusiasma-me particularmente porque pode permitir retirar o poder absoluto às grandes multinacionais, democratizando a produção de plantas editadas no seu genoma.

Paula Duque dirige atualmente o grupo de Biologia Molecular de Plantas no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras. É licenciada em Biologia de plantas e doutorada em Fisiologia e Bioquímica pela Universidade de Lisboa. Estudou também na Alemanha (Colónia), na Nova Zelândia (Auckland) e, após o doutoramento, nos EUA (Nova Iorque), onde desenvolveu dois projetos de investigação na Rockefeller University e ensinou Biologia Molecular no Queens College. Publicou mais de 30 artigos científicos nas revistas internacionais mais prestigiadas do seu domínio de investigação. Tem ensinado em programas de pós-graduação na Europa e em África e é oradora regular em conferências em Portugal e no estrangeiro. É membro de diversos comités científicos e editoriais internacionais e da European Molecular Biology Organization (EMBO).

O artigo foi publicado originalmente em CiB – Centro de Informação de Biotecnologia.


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