Há três ou quatro dias faziam-se cá em casa rabanadas e, depois de desligar o tacho em que borbulhava já no ponto certo o molho de açúcar e canela, verti sobre este, religiosamente, os cálices de vinho do porto à maneira das minhas tias-avós. Digo religiosamente porque não nos limitámos a culinária: fizemos todos um brinde, experimentando na ponta da língua, sem beber, a excelência envolvente dum tawny superlativo. Espalhou-se por toda a boca, perfume de história, essências exóticas, no rótulo dez anos, que nos fez comungar de moléculas seculares e da sabedoria que o apurou. O rótulo estaria errado: de certeza seria um superior a caminho da raridade. Iniciado da melhor maneira este período do ano em que se fazem balanços e propósitos.
Há grande expectativa sobre quais serão os números de 2021, consolidados, de consumo e comércio de vinhos. 2022 está aí, tendo havido já decisões pelas empresas. Fizeram-no, tendo em atenção os objectivos e com base nas estimativas e dados internos. Decisões de gestão a exigir perícia, sensatez e capacidade de lidar com a incerteza com que todos os anos se começa, a da imprevisibilidade da vindima que virá, acrescentada com a prudência que implicam os factos preocupantes que se estão a desenrolar em todo o mundo: grandes variações de procura, irregularidade nos circuitos, dificuldades nos prazos de entrega, inflação a generalizar-se. Neste cenário, a importância dos números de 2021 será enorme para decisões que terão de ser tomadas sem euforia e com pragmatismo.
2022 será um ano que colocará vários dilemas, poderá evoluir mesmo para um problema e o regresso de ameaças que pareciam solucionadas – e tê-lo-ão estado noutro tempo – mas que de novo terão de ser equacionadas. Houve imenso progresso nas últimas décadas, passou tempo sobre medidas, estão aí novos desafios, com denominadores comuns: o preço das uvas – insustentável de tão baixo nalgumas regiões e categorias – , a falta de mão de obra, o exigente cumprimento de novas normas. Embora ocorrendo em todo o país, ou quase, estes problemas colocam-se de forma acentuada no Douro pelas particularidades da sua viticultura. A sua não discussão é perigosa e está a dar espaço a, na minha humilde opinião, erradas concepções.
Há quem creia que o Douro singra numa dicotomia, quiçá numa dialética, entre produção e comércio. Em numerosos discursos, análises, artigos e entrevistas se topa com esse pensamento subjacente e que gera raciocínios que, depois, redundam em conclusões improdutivas ou, até, destrutivas, para o negócio. Há muito pensamento, repito, isto na minha humilde opinião, voltado para o passado, para soluções boas noutro tempo mas inúteis agora. Pensamento demasiado redutor.
O Douro singra, isso sim, numa virtuosa articulação entre produção e comércio cujo potente rebocador são as empresas e que, se não é mais frutuosa, se deve a uma falta de foco institucional. Há uma necessidade vital de foco no futuro e no público consumidor. O Douro tem tido articulação interprofissional mas não basta: tem de ter mais cooperação institucional, mais promoção do aumento da procura pelo vinho do porto, do douro e de Portugal. Uma operação sustentada e contínua de publicidade e marketing para que os vinhos se valorizem, se vendam e se consumam para que aumente o preço pago pelas uvas. Cooperem os agentes de comércio externo, de política interna e de acção no território. Ampliem-se mercados. Inove-se na promoção e consumo. Já está a ser feito? Em parte, já. Mas tem que ser feito muito mais. Provocar um aumento da procura e mantê-lo, é vital para o futuro.
Os vinhos que Portugal produz são extraordinários na sua diversidade. Têm melhorado muitíssimo na sua qualidade média, adquirido mais notoriedade, valor e quota de mercado. Muitas marcas têm-no conseguido, algumas regiões têm sobressaído de forma colectiva positivamente, como a dos Vinhos Verdes, seria injusto que não o assinalasse, e também outras. Até aqui tudo isto é já lugar-comum. Mas o Douro tem obrigações históricas de dar o exemplo e de ser um dínamo. O vinho do porto sempre pôde, pode e deve ser uma bandeira para benefício de si e dos outros. O rio, a RDD e as suas cidades e vilas, as quintas, o vinho, o território, o turismo, Porto, Gaia, muito mais. Motivo de orgulho e de exclusividade que podem e devem ser vendidos.
Porque é um privilégio ter na mão um cálice de vinho do porto. O grande privilégio de o sentir despertar segundo a segundo, nos lábios, na ponta da língua, no nariz, em toda a boca, a vontade dum brinde com rabanadas, com bolo-rei, com filhós ou queijo, sozinho ou em companhia, numa busca de olhares ou semicerrando-nos sonhando, formulando o nosso desejo para a nossa vida. O bacalhau com azeite, o polvo, o perú, o leitão, os ovos moles ou as fatias douradas, acompanhe com um dos muito bons vinhos de Portugal, verde, maduro, espumante, tinto ou branco, da gama que preferir. Mas para me acompanhar nos votos de que tenhamos um excepcional 2022, temos que ser excepcionais, com um cálice de porto!
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021.