Com recurso a inteligência artificial, robôs ou imagens por satélite, as soluções desenvolvidas por empresas tecnológicas e startups florestais em Portugal podem contribuir para melhorar a gestão florestal e dar uma resposta mais eficaz a desafios do sector, incluindo a prevenção de incêndios rurais. Conheça alguns projetos promissores e tendências do capital de risco que investe nesta área.
Os ecossistemas florestais enfrentam diversos desafios. Das alterações climáticas aos incêndios rurais, passando por novas pragas e doenças e a necessidade de uma gestão ativa das florestas, muitas são as frentes de ação para aumentar a resiliência dos espaços florestais. As novas tecnologias podem ser aliadas na gestão e proteção inteligentes das florestas. Tal como noutros domínios, falar de inovações é também falar de startups florestais – até porque estes projetos empresariais de base tecnológica podem trazer, além da tecnologia, novos modelos de negócio e oportunidades ao sector.
Nos principais centros de startups em todo o mundo, existem pelo menos 1413 dedicadas à indústria da energia e ambiente, área que inclui as ideias de negócio centradas na revolução digital do sector florestal. Estas ideias de serviços e produtos inovadores, aplicáveis a diversos tipos de florestas, mostram que é possível aliar tecnologia de última geração, potencial económico e proteção dos recursos naturais.
Em termos de investimento, no entanto, é interessante notar que, entre os projetos inovadores ligados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, as startups e empresas ligadas ao ODS 15: Proteger a Vida Terrestre (que abrange, entre outros, a promoção da gestão sustentável de todos os tipos de floresta, a restauração destes ecossistemas e o apoio a esforços de florestação e reflorestação) são das que menos captam a atenção dos investidores institucionais (capital de risco).
A informação vem da Capital Monitor (dados entre 2018 e 2020) e indica que a principal barreira apontada pelos investidores é a falta de dados relacionados com os ecossistemas florestais. Ao contrário das emissões, por exemplo, faltam standards internacionais para o capital natural e a questão da propriedade das áreas florestais é, muitas vezes, complexa e um entrave ao investimento.
Ainda assim, e apesar do risco financeiro, há uma evolução positiva a assinalar em matéria de investimento nas startups florestais. Apesar de, no total, as empresas cujos objetivos se alinham com o ODS 15 não angariarem tanta verba como outras áreas de intervenção relacionadas com os ODS, a verdade é que esta registou o maior crescimento no investimento em capital de risco: um aumento de 275% entre 2018 e 2020, de 170 milhões para 638 milhões de euros (comparativamente, em 2020, as startups ligadas ao Objetivo 13: Ação Climática – o ‘campeão’ na captação de investimento – mobilizaram 15,8 mil milhões de euros). Esta tendência de subida, a manter-se, pode englobar boas perspetivas de investimento para projetos inovadores ligados à floresta.
No panorama mundial, a norte-americana Terraformation é citada frequentemente como exemplo entre as startups florestais, com um modelo de negócio capaz de atrair elevado fluxo de capital. Em junho de 2021, a empresa fechou uma ronda de investimento de 30 milhões de dólares para o desenvolvimento de sistemas capazes de dar escala global a projetos de reflorestação, com base em soluções modulares de hardware e software.
E em Portugal?
O sistema nacional de startups está avaliado na 27.º posição do Global Startup Ecoystem Index Report 2021. É considerado um “líder regional em inovação” e destaca-se particularmente nas áreas de Hardware & IoT (Internet of Things, a conectividade dos objetos do quotidiano à internet), Energia & Ambiente e Foodtech (tecnologia aplicada à indústria alimentar e restauração). Já o relatório Startup & Entrepreneurial Ecosystem, da consultora IDC, apresenta Portugal como 13% acima da média da União Europeia em número de startups per capita, com um total de 2159 startups portuguesas e uma captação de 434,5 milhões euros de investimento em capital de risco.
Não sendo dos principais sectores de atividade, existem diversos exemplos de startups florestais – ou que desenvolvem soluções que podem ser aplicadas também às florestas. Conheça algumas das startups nacionais e outros projetos de inovação empresarial que prometem contribuir para melhor conhecer, gerir e conservar as florestas portuguesas.
4 exemplos de soluções com origem em tecnologias e startups florestais em Portugal
Num país com registo de severos incêndios rurais e perante a ameaça de uma nova era de incêndios, não é de estranhar que o tema dos incêndios rurais seja central a muitas das startups e soluções de inovação tecnológica de âmbito florestal. Desde a monitorização, mapeamento do risco e de intervenções no terreno para prevenir o fogo até sistemas inteligentes de vigilância e previsão da evolução de cada incêndio, estes são alguns dos projetos inovadores que podem apoiar entidades públicas e privadas a gerir de forma mais eficiente os espaços florestais e a torná-los mais resilientes.
1. Cosmos Pics
Em 2017, o ano de maior área ardida de que há registo em Portugal, a búlgara Ekaterina Stambolieva chegou ao nosso país. O impacte dos incêndios rurais levou-a a colocar o seu conhecimento em computação e inteligência artificial ao serviço da prevenção do fogo. Esta foi a génese da Cosmos Pics, uma startup incubada na Casa do Impacto, que conquistou, em 2020, um investimento da Portugal Ventures, sociedade de capital de risco do Banco Português de Fomento.
A empresa desenvolveu e disponibiliza uma plataforma multifuncional de análise de imagens de satélite que permite, de forma remota, monitorizar o estado dos espaços definidos como faixas de gestão de combustível. O recurso à plataforma de análise para fazer esta monitorização tem duas vantagens essenciais: aumentar o nível de prevenção contra incêndios rurais e reduzir significativamente os custos: “Podemos facultar uma análise completa do estado destas faixas de gestão de combustível, para um determinado município, região ou país, remotamente e de forma automática, e com uma poupança estimada em cerca de 70%, quando comparamos esta nossa solução com a monitorização in loco da mesma área”.
Sem necessidade de uma deslocação ao terreno – com base em imagens de satélite –, a plataforma avalia o estado das faixas de gestão de combustível a partir de indicadores como o estado de saúde da vegetação e a sua densidade, a identificação de materiais combustíveis, a temperatura do solo e o clima (vento, humidade e temperatura do ar). Desta forma, as autoridades podem confirmar se o estado das faixas respeita as obrigações legais ou se é necessário proceder a uma intervenção no terreno. A deteção mais atempada do estado das faixas e respetiva gestão dos materiais combustíveis reduz o risco de propagação de fogo.
Atualmente, a Cosmos Pics está a desenvolver um caso prático de aplicação da tecnologia no município de Santa Maria da Feira, com responsáveis da Proteção Civil da Área Metropolitana do Porto. Este tipo de entidades – municípios e respetivos organismos de proteção civil encarregues da monitorização das faixas de gestão de combustível – são aqueles que mais poderão beneficiar da utilização da plataforma. Ainda assim, a startup refere que a tecnologia pode ser usada por qualquer outra entidade pública ou privada que beneficie de análise de imagens de satélite na sua atividade. Até porque, para aceder e usar a plataforma da Cosmos Pics, não é preciso ser especialista. “Na génese do desenvolvimento da plataforma está a democratização da utilização destas imagens, tornando-as acessíveis e manuseáveis por utilizadores não necessariamente especialistas”.
2. Tesselo
As imagens de satélite também são o ponto de partida da Tesselo para apoiar o mapeamento e sinalização de áreas de risco ambiental. Através da aplicação de inteligência artificial a imagens provenientes da rede europeia Copernicus e do arquivo histórico da NASA, a startup consegue construir modelos ambientais rigorosos, sinalizar alterações ao longo do tempo em territórios específicos, detetar áreas de risco, monitorizar o estado da vegetação atual e avançar cenários preditivos sobre o território.
Na prática, a tecnologia desenvolvida gera inteligência de apoio à tomada de decisão ambiental para autoridades, proprietários e empresas, com um grau de detalhe tal que é possível obter informação relevante árvore a árvore. Especificamente no sector florestal, os dados gerados permitem avaliar, para cada área em análise, o risco e impacte dos incêndios rurais, prever a evolução do coberto florestal (tendo em conta o histórico de alterações no território), monitorizar plantações e até detetar pragas e doenças. O primeiro cliente nacional da Tesselo foi a CELPA – Associação da Indústria Papeleira.
Financiada pela Portugal Ventures, a Tesselo ganhou destaque como uma das finalistas da primeira edição (2020) do programa global Free Electrons, iniciativa que permite às startups apresentarem os seus projetos inovadores às grandes empresas do sector da energia.
A Tesselo foi cofundada em 2017 por Rémi Charpentier (também cofundador da consultora em inteligência artificial Zendag.ai e ex-presidente da associação de startups Le French Tech em Portugal), Daniel Wiesmann e Micahel Flaxman, que decidiram estrategicamente lançar o projeto em Lisboa. A startup tem ainda uma parceria de longo prazo com o Instituto Pedro Nunes.
3. SafeForest, da Ingeniarius
A prevenção de incêndios rurais é o foco da empresa de engenharia Ingeniarius, através do projeto SafeForest. O seu objetivo é desenvolver um sistema de identificação e eliminação de combustíveis florestais que possa assegurar, de forma autónoma, uma intervenção no terreno. O sistema consiste num robô móvel de grande porte assente numa carregadeira (bulldozer) equipada com um desbastador florestal (ferramenta capaz de triturar a vegetação), cuja ação de mapeamento é complementada com veículos aéreos autónomos (drones).
Ao contrário das carregadeiras tradicionais, o robô de grande porte, Ranger, não necessita de um operador humano, com o trabalho realizado de forma autónoma ou em alternativa, pode ser teleoperado.
Assim sendo, como se consegue, na prática, a tão desejada autonomia na intervenção no terreno? O feito é ambicioso até porque, segundo revela o CEO da Ingeniarius, Micael Couceiro, ao Florestas.pt é “algo ainda não alcançado por nenhum outro projeto, com o nível de maturação tecnológica pretendida”.
Para tal, o Ranger foi equipado com câmaras multiespectrais, térmicas e de profundidade, assim como com outros sensores adicionais. Estes são equipamentos que permitem ao robô ter uma perceção artificial da envolvente e, assim, identificar que vegetação deve ser eliminada (combustível) e que vegetação deve ser mantida.
Na base desta tomada de decisão está também um processo prévio de “ensinamento”, estruturado sobre uma base de dados devidamente categorizada, de acordo com diversas tipologias de terreno. É ela que apoia a plataforma robótica na identificação de novos dados em tempo real (comparando-os com os dados categorizados já existentes).
Para já, a empresa recorre a profissionais da área florestal para validar e categorizar a informação de terreno, recolhida pelo Ranger, mas – devido à morosidade deste processo – está também a desenvolver um simulador realista para extrair dados já categorizados (sem necessidade de envolver profissionais no processo) e alimentar esta “biblioteca” de informação essencial para treinar o sistema.
A expetativa da Ingeniarius é que possa ter um demonstrador pronto no início de 2022 apenas com o Ranger e, no final desse ano, “atingir os resultados pretendidos com os drones”, avança Micael Couceiro, desde que o desenvolvimento e testes decorram como pretendido. Segue-se a maturação do sistema robótico e a formalização de um plano de negócios, com o objetivo de entrar no mercado até 2025 (com o sistema completo, incluindo drones, ou apenas com o Ranger).
Com uma capacidade de intervenção em 2500 metros quadrados por hora (estimada tendo em conta a capacidade das carregadeiras que servem de base ao robô), a equipa responsável pelo SafeForest indica que a tecnologia pode representar um custo-benefício para o cliente de cerca de 40% quando comparada com as alternativas atuais (intervenções com meios mecânicos e humanos, sem automatização).
Além dos aspetos financeiros, a possibilidade de operações sem presença humana tem também a vantagem de uma atividade em contínuo, o que se pode traduzir em mais área gerida e menos vegetação acumulada, com benefícios na diminuição do risco de incêndio.
O SafeForest é um projeto da CMU – Carnegie Mellon University Portugal, liderado pela Ingeniarius e cofinanciado pela CCDRC – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, através do programa Portugal2020. Outras entidades estão também envolvidas, como o ISR – Instituto de Sistemas e Robótica da Universidade de Coimbra, a ADAI – Associação para o Desenvolvimento da Aerodinâmica Industrial e diversas empresas.
4. Bee2FireDetection (Future Compta)
Ao contrário das jovens startups florestais, a tecnológica portuguesa Future Compta já tem quase meio século de existência. Ainda assim, não é a idade que abranda a vontade de inovar em soluções de tecnologia de informação. Do portefólio de projetos da empresa, consta o Bee2FireDetection, solução que chamou atenções mundiais em 2019, ao vencer a competição global da IBM Watson Build.
A proposta inovadora junta inteligência artificial a equipamentos de videovigilância para a deteção precoce de incêndios rurais, numa combinação pioneira a nível mundial. A ferramenta recorre ao supercomputador Watson da IBM (daí a chamada aos prémios da empresa norte-americana) para, a partir da análise de imagens, detetar o fumo nascente nos primeiros instantes dos incêndios, mas também prever como o fogo se vai propagar, em termos de perímetro e velocidade.
Na ação contra os incêndios florestais, a solução permite apoiar três dimensões distintas: a prevenção, a deteção e o combate. Isto acontece através da antecipação da evolução do incêndio e com a disponibilização, no sistema, de mapas com as melhores rotas para as equipas de bombeiros poderem aceder ao local.
O objetivo é dar apoio tecnológico a entidades como proteção civil, sapadores, proprietários e empresas florestais, para que consigam uma resposta mais atempada e eficaz no combate a incêndios.
João Matos, Business Director na Future Compta, explica com maior detalhe: “o nosso Bee2FireDetection pretende ser uma ferramenta de apoio à decisão que faz não só a deteção precoce de incêndios, mas também a criação de mapas de risco que usam matrizes múltiplas de informação para prevenção de incêndios, e que fornece, após a deteção do incêndio, a previsão do comportamento, logo nos primeiros minutos, antecipando a forma como o incêndio se vai comportar e auxiliando a decisão de comando para a melhor forma de combate a adotar”. O Bee2FireDetection consegue ainda analisar termicamente a área recém-ardida para acompanhar possíveis reacendimentos.
O sistema, que ainda está a ser aperfeiçoado pela empresa, conta já com casos de estudo em Portugal, Brasil e Espanha, e começou recentemente a ser implementado em Proença-a-Nova, no âmbito de uma parceria entre o município, a Future Compta e os bombeiros voluntários locais. A solução de deteção automática permite monitorizar, em contínuo, áreas a uma distância até 15 quilómetros.
O artigo foi publicado originalmente em Florestas.pt.