Genes associados com a resiliência a alterações climáticas em pequenos ruminantes

A adaptação é uma característica complexa que envolve muitos processos biológicos e genes que influenciam os carateres morfológicos e produtivos, cada um tendo um efeito pequeno e cumulativo na expressão geral do fenótipo. As raças adaptadas localmente são mais resilientes do que raças exóticas, tendo maior capacidade de lidar com as alterações climáticas.

A deteção de loci que afetam características economicamente importantes como a resiliência dos animais ao aquecimento global representa um dos principais desafios da genética animal. Um dos pontos de partida neste desafio que, embora planetário, terá de ser encarado de forma séria ao nível local, depende da identificação de diferenças genéticas (polimorfismos de uma única base, SNPs) entre os indivíduos. Uma vez encontrados marcadores que possam ser associados a carateres como o aumento da eficiência alimentar, com o consequente aumento de produção de leite/carne/lã e diminuição da produção de gases com efeito estufa, ou a resistência ao stress térmico, poder-se-á caminhar em duas frentes que são verdadeiramente desafiantes para a manutenção e sustentabilidade dos sistemas de produção de pequenos ruminantes no futuro: por um lado, a mitigação das alterações climáticas e, por outro, o aumento da resiliência das diferentes raças a essas alterações.

Portugal, devido à sua posição geográfica, é um dos países em que se preveem fortes impactos sobres os sistemas de produção de ruminantes devidos às mudanças climáticas em curso: aumentos nos níveis atmosféricos de dióxido de carbono, temperaturas mais altas, mudanças na quantidade, sazonalidade e distribuição da precipitação e aumentos em eventos climáticos extremos. Estas mudanças climáticas afetam os sistemas pecuários devido aos seus impactos diretos na fisiologia (produção e reprodução), no comportamento, na saúde e no bem-estar animal e indiretamente na disponibilidade, composição e qualidade dos alimentos (Figura 1). A redução da precipitação e o alargamento da estação seca no sul e centro interior do país, leva à diminuição da produção e da qualidade das forragens e das pastagens e a alterações do tipo de vegetação dominante, com aumento das espécies arbustivas em relação às herbáceas associados ao aumento dos níveis de CO2 [1]. Neste contexto, criadores até agora exclusivamente de bovinos poderão vir a substituí-los nas suas explorações, parcial ou totalmente, por pequenos ruminantes, mais adaptados ao pastoreio em zonas marginais.

Os ovinos e caprinos são geralmente menos suscetíveis ao stress térmico do que outros ruminantes domésticos, apresentando características únicas, como a capacidade de conservação de água, maior taxa de sudação e taxa respiratória e menor produção de calor basal[3], o que se reflete na sua distribuição pelas regiões mais quentes e secas da Terra (Figura 2), nas quais se encontram aproximadamente 50% da população mundial de ovinos e caprinos[4]. No entanto, a exposição contínua dos animais ao stress térmico leva a perdas reprodutivas e de produção de leite e carne que podem ser explicadas, em parte, pelo menor consumo de alimento, mas também são influenciadas por alterações metabólicas e endócrinas reguladas geneticamente.

Mecanismos de adaptação dos pequenos ruminantes às mudanças climáticas

A capacidade de um animal em mitigar os efeitos do aumento da temperatura ambiente difere dentro e entre as espécies. A resiliência ao stress térmico assenta em mudanças fisiológicas (comportamentais, parâmetros hematológicos e sinais vitais), bioquímicas (níveis metabólicos e hormonais sanguíneos) e moleculares (expressão génica), muitas vezes fruto de adaptação seletiva das populações ao longo de gerações. Alguns dos mecanismos adaptativos dos pequenos ruminantes ao stress térmico estão resumidos na Figura 3. Avanços na área da biologia molecular e da bioinformática permitiram nos anos recentes fazer a sequenciação dos genomas e dos transcriptomas de raças ovinas e caprinas distribuídas por todo o mundo, muitas delas selecionadas, natural ou artificialmente, ao longo de milénios em ambientes extremos de temperatura e de altitude.

A comparação dos genomas destes animais vem lançar luz sobre as vias moleculares que estão subjacentes aos processos adaptativos que lhes permitem viver e produzir leite, carne e fibras em tais ambientes e bem assim identificar marcadores valiosos na luta contra as alterações climáticas. Várias assinaturas de seleção em diferentes regiões cromossómicas foram detetadas em diferentes raças ovinas[6–12, 12–15] e caprinas[6, 16–22, 22], grupos subgeográficos, grupos fenotípicos e climáticos. Seguidamente descrevem- -se de maneira sucinta alguns dos genes candidatos, identificados em pequenos ruminantes, como possíveis marcadores de diferentes respostas adaptativas (ver resumo no Quadro 1). O foco será dado a adaptações observadas nos animais das regiões desérticas, áridas e semiáridas, caracterizadas pela ocorrência de radiação solar intensa, elevadas temperaturas e escassez de água e alimento, enfrentando períodos de escassez alimentar devido à menor produção de pastagens em consequência do aumento da estação seca, condições que tendem a ser cada vez mais frequentes no sul e interior de Portugal.

Respostas genéticas ao stress térmico Estudos comparativos entre os genomas das raças ovinas selecionadas europeias (clima temperado), e de raças autóctones do norte de África (clima subtropical seco), do este de África (clima tropical de altitude) e do oeste asiático (clima subtropical) permitiram evidenciar a suas diferenças genéticas (Figura 4)[23]. Através deste tipo de análises, é possível encontrar os alelos dos genes candidatos que, uma vez presentes em indivíduos das nossas raças, possam ser selecionados para as tornarem mais resilientes às alterações climáticas que já estão a enfrentar. A adaptação ao stress ambiental em zonas áridas é complexa e desenrola-se em várias frentes, algumas das quais reguladas por genes comuns, outras com especificidades próprias.

O stress alimentar, característico destas zonas onde a água e o alimento são escassos, levou à seleção adaptativa de genes que regulam o metabolismo dos nutrientes em geral (BMP7, TSPAN1, AKR1A1 e MMACHC), e especificamente o metabolismo dos carbo-hidratos (EIF2B3, CMPK1, DCK, PCK1, AKR1A1 e RAE1), das proteínas (CHEK2, HPDL, ASNSD1 e HIBCH) e dos lípidos (ACAA2, PIK3R3, PDP1, FAAH e ASXL1). O tecido adiposo tem um papel importante na regulação da homeostase metabólica sistémica em resposta à deficiência/excesso de nutrientes, à termorregulação ou ao estado fisiológico dos animais, sendo que algumas raças desenvolveram características morfológicas como sejam a cauda gorda, que lhe permitem armazenar gordura em épocas de abundância para serem usadas em épocas de escassez alimentar ou de grandes necessidades energéticas (resistência ao frio ou lactação). Genes que regulam o comportamento alimentar nos animais adultos (DMBX1), a morfogénese das glândulas salivares, o desenvolvimento do trato digestivo e da dentição (BMP7 e COL3A1) evoluíram provavelmente com a necessidade de os animais se adaptarem a dietas mais fibrosas/lenhosas, ricas em compostos antinutritivos (taninos e compostos fenólicos) e com adaptações físicas da vegetação contra os animais, como sejam os espinhos.

Nestes ambientes, a escassez de água e a qualidade da mesma (salinidade) são pontos que levaram à seleção de genes relacionados com a regulação osmótica do organismo e do stress associado aos níveis de sal (MKNK1), bem como ao desenvolvimento e função renal (BMP7). Por exemplo, a importância do gene BMP7 fica clara quando se sabe que as funções renais, como sejam a vasodilatação renal, o transporte transmembranar, o metabolismo água-sal, a absorção de bicarbonato, a retenção/reabsorção de água, são fundamentais para a adaptação aos ambientes áridos[24]. A resposta ao stress térmico é, por sua vez, mediada por genes que levaram ao desenvolvimento de adaptações ao nível da resposta celular ao calor (EIF2B3, MSTN, TP53INP1 e POLR2D) e à radiação gama/UV (ERCC3, TP53INP1, CHEK2, RAD54L, COL3A1 e RAD54L), do desenvolvimento da pele, queratinização, diferenciação de células capilares, morfogénese do folículo capilar, ciclo de crescimento e renovação das fibras capilares (NAB1, COL3A1, COL5A2, ERCC3, MYO6 e TGM3) e cor da pelagem (IRF4, EXOC2, RALY, EIF2S2, KITLG, MITF e ASIP), a qual é determinada por vários genes que influenciam a ocorrência, atividades bioquímicas e distribuição dos melanócitos[25]. É interessante notar a complexidade dos mecanismos de regulação orquestrados pelos diferentes genes.

No caso do gene KITLG, sendo responsável pela produção dos melanócitos, influencia a cor da pelagem, mas ao mesmo tempo também regula carateres reprodutivos como sejam o tamanho da ninhada[6]. O gene ASIP, promove a síntese de feomelanina nos melanócitos do folículo piloso, sendo um forte gene candidato responsável pelo controlo dos padrões de cor da pelagem em cabras[22] e ovelhas[9]. A duplicação deste gene é responsável pelas cores branca e preta das ovelhas[26]. Devido à proliferação por vários órgãos, entre eles o fígado, os rins, o coração e o tecido adiposo, especula-se que este gene pode também estar envolvido na regulação da homeostase energética[27]. Outro carater importante na termorregulação dos ruminantes e de interesse económico é o tipo de lã/pelo. Nos caprinos, os primeiros genes relacionados com a produção, o diâmetro e o comprimento das fibras de caxemira foram os genes da PRL (prolactina)[28], gene também associado com a produção, a qualidade e a aptidão tecnológica do leite[29] e do POU1F1[30], o qual codifica um membro da família dos fatores de transcrição POU que regulam o desenvolvimento corporal e a produção de leite em ruminantes[31].

Outro dos aspetos importantes para aumentar a resiliência dos animais às alterações climáticas é a plasticidade da sua resposta imunitária. Esta dependente de genes bem conhecidos como o interferão gama (IFNG), os genes do complexo de histocompatibilidade (MHC), e as interleucinas (IL), cujos níveis plasmáticos in vivo aumentam em situação de stress térmico, mas também de genes específicos envolvidos na resposta de defesa contra os nematodes gastrointestinais e as infeções bacterianas (CD53, DENND2D, CHIA, CHI3L2 e OVGP1) [11], além de muitos outros em ovinos (ZBP1, KIF3B, COL3A1, VPS16, L3MBTL3, TAL1, PLSCR4, PRDX1, MAST2, LURAP1, RAE1, SCL40A1, …)[23]. Em caprinos foram descritos ainda outros genes, associados à infeção parasitária e à imunossupressão (SERPINB3, SERPINB4, CD1B, COL4A4, BPI, MAN2A1 e CD2AP) [32], bem como com à resistência a doenças (CHIA, CHI3L2, PRDM2 e KDM5B).

Sob stress térmico, as células ativam respostas celulares que provocam o aumento das vias de sinalização e reprogramação génica dos mecanismos homeostáticos[33], modificando o rácio CD4+ /CD8+ e aumentando as secreções plasmáticas in vivo de citocinas pró-inflamatórias, como as interleucina IL-6 e IL-1β em ovelhas[34]. Tanto a IL-1β quanto a IL6 do soro podem ser consideradas indicadores confiáveis da magnitude da ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, a qual, em situação de stress foi associada à redução da produção de leite e ao aumento da predisposição para o desenvolvimento de mamites[34], muito por via da alteração dos genes do eixo somatotópico (GH/IGF-1/STAT5). Em períodos de stress térmico o fator de transcrição de choque térmico 1 (HSF1) desempenha um papel central na indução de numerosas proteínas de resposta ao choque térmico (HSPs: HSP60, HSP70, HSP90, …) que ativam a proteção da homeostase celular[35].

Efetivamente, o aumento da expressão do gene HSP70 nas membranas das células imunitárias durante o stress térmico é considerado um dos mecanismos de resposta associados ao aumento da tolerância ao calor[35]. O fornecimento de dietas ricas em antioxidantes, como a vitamina E e o selénio, ao modular a expressão das HSPs, das citocinas pró-inflamatórias e a transcrição do NF-κB no músculo esquelético de ovelhas em stress térmico, pode ser uma possível estratégia para aumentar a tolerância ao calor[36] e assim a resiliência dos ovinos em situações de alterações climáticas.

Conclusões e perspetivas futuras

Do exposto anteriormente, fica claro a profusão de genes implicados na adaptação/resiliência dos pequenos ruminantes às alterações climáticas. Face a esta informação, é fácil perceber que a existência de grande variabilidade genética é um ponto-chave no sucesso futuro das raças autóctones, a qual ainda não foi perdida apesar de terem sido objeto de algum esforço de melhoramento. Um exemplo dessa variabilidade genética foi constatado por estudos realizados no INIAV sobre os genes do eixo somatotópico nas raças ovinas e caprinas autóctones portuguesas, onde se verificou a existência de inúmeros polimorfismos, alguns dos quais específicos de determinadas raças.

Em relação ao gene da hormona do crescimento (GH) foi possível ainda verificar a existência de fortes associações genótipo × ambiente (exploração), com efeitos significativos na produção de leite das ovelhas Serra da Estrela[37]. A prossecução de estudos do genoma e do transcriptoma, ainda incipientes nas raças portuguesas, é premente, mas também a associação destes estudos com dados fenotípicos fidedignos, que permitam encontrar os animais mais adequados à produção de leite/carne/lã usando eficientemente os recursos alimentares disponíveis [aumento da eficiência alimentar com redução das produções de metano (CH4) e de óxido nitroso (N2O)] em condições edafoclimáticas específicas e cada vez mais exigentes, contribuindo assim para atingir o objetivo de reduzir emissões de metano em 30% até 2030 (comparativamente com 2020) assumido no Compromisso Global do Metano (“Global Methane Pledge” assinado por mais de 100 países, incluindo Portugal, durante a cimeira do clima, COP26), ou adaptar os animais aos efeitos dessas mudanças.

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Por: Marques, M.R. Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV)

O artigo foi publicado originalmente em Rede Rural Nacional.


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