Henrique Pereira dos Santos

1 079 sobreiros – Henrique Pereira dos Santos

Vai por aí uma grande agitação porque foi aprovado o abate de 1079 sobreiros para a instalação de uma central solar em Gavião.

Não conheço o processo em concreto (casualmente, em conversa, falaram-me destes 1079 sobreiros como o que sobrou de uma negociação sobre o projecto inicial que previa o abate de mais de 8 mil, e que por cada sobreiro abatido serão plantados mais de 15 sobreiros, mas não fui verificar estas informações, que são praticamente irrelevantes para o post).

O que me interessa é mesmo a irracionalidade da actual legislação de protecção do sobreiro e da azinheira, uma legislação que tem as suas raízes no Estado Novo e na sua vontade de assegurar o abastecimento da indústria de cortiça, que passou por um fomento da cultura do sobreiro – ao contrário da vulgata que circula, mesmo em meios informados, a campanha do trigo dos anos 30 teve um efeito relevante no aumento da área de montado, mas e mais tarde que há uma política forte do Estado Novo no apoio à expansão da cultura do sobreiro -, mas também por regras administrativas aplicáveis ao abate (questão com alguma relevância face à segunda fase de mecanização da agricultura alentejana, a partir do fim da segunda guerra mundial) e ao descortiçamento, que visavam preservar o recurso económico.

Mais tarde, alguém viu na legislação que resultou desta preocupação com o abastecimento da indústria a oportunidade para legislar sobre a conservação dos montados, e tratou de encaminhar a lei para a protecção das árvores, agora já com a azinheira.

E o ponto a que chegámos, do ponto de vista legal, é completamente absurdo, quer porque dá uma suposta protecção ao sobreiro e azinheira que não dá a outras quercus (que inclui todos os carvalhos, quer os mais vulgares, quer os mais raros, como o de Monchique), quer porque proibir o abate de árvores não é a melhor forma de garantir a conservação de conjuntos de árvores, como os montados, quer porque as excepções se tornam regra, embora com um enorme custo de ineficiência evitável, quer porque é evidentemente impossível impedir um proprietário mandar para o galheiro milhares de árvores, sem as abater, se estiver empenhado nisso.

E, por fim, porque quer o sobreiro, quer a azinheira, estão em expansão, portanto não precisam de protecção nenhuma para se conservar a espécie (que, com milhões de exemplares, estão muito longe de ter quaisquer sinais de ameaça à sua conservação).

O resultado prático disto é que a protecção do sobreiro e da azinheira é um mero expediente usado para propaganda e para contestação a alterações de uso do solo de que se discorda.

Não sei se esta conversa ocorreu mesmo, ou se me foi relatada por um dos intervenientes como parábola, mas a situação raramente é mais bem descrita:

CEO da Navigator, para o CEO da Corticeira Amorim: “estou farto de levar pancada e ser tratado como criminoso, gostava era de trabalhar com uma árvore de que toda a gente gosta, como tu”. Resposta do CEO da Amorim: “pois eu preferia depender de uma árvore que toda a gente detesta, mas planta, a depender de uma árvore de que toda a gente gosta, mas ninguém planta”.

É raro haver uma legislação economicamente tão estúpida como a da protecção do sobreiro de tal forma que o principal agente económico beneficiário da existência dessa árvore acabe preocupado com a legislação que a protege. Porque acaba a concluir que não há proprietários interessados na sua cultura: os proprietários não querem deixar as suas propriedades com um ónus que os impeça, a eles ou aos seus herdeiros, de as usar de forma economicamente racional, em cada altura, num mundo em permanente mudança.

Poder-se-ia argumentar que o retorno em conservação de valores sociais intangíveis, como a biodiversidade, a qualidade da paisagem e etc., compensariam esse incómodo económico.

Só que nem isso não é verdade, com ou sem essa legislação o montado com interesse de conservação está protegido pela legislação de conservação – quando tem interesse de conservação elevado, que é o que interessa – e o montado com interesse económico – que tem importantes benefícios sociais associados, incluindo a biodiversidade e a qualidade da paisagem – está protegido pelo interesse económico do proprietário.

Não há qualquer interesse de conservação específico em impedir o abate de 1 079 sobreiros sem grande interesse numa propriedade que, provavelmente, estaria ao abandono, ou sub-gerida, por falta de retorno associado ao custo de gestão útil do montado.

A ideia de que são os funcionários do Estado (os meus colegas do Instituto de Conservação da Natureza) que defendem melhor o sobreiro e a azinheira que os proprietários, tendo o poder para determinar se, quando e como se podem fazer um conjunto de operações de gestão necessárias para a boa saúde dos valores em presença, é uma ideia sem qualquer fundamento teórico, e muito menos com fundamento empírico.

Penso que basta olhar para os tempos de decisão da administração pública para perceber que é muito mais útil tratar os proprietários como pessoas normais e de bem – reconhecendo que há sempre quem fuja do padrão, quer do lado dos proprietários, quer do lado dos funcionários – que partir do princípio que são todos umas bestas gananciosas que, se não tiverem rédea curta nas mãos de funcionários mal pagos e desmotivados, destroem tudo à sua volta.

Governo autoriza abate de 1.079 sobreiros em Gavião e Quercus manifesta-se contra

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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