E quando julgávamos que nada poderia ser pior que a pandemia e o impacto da Covid-19 nas nossas vidas, em Portugal, na União Europeia, e a nível global, eis que estamos a entrar no segundo mês de uma guerra em plena Europa e no século XXI. As consequências apresentam-se ainda mais dramáticas e imprevisíveis.
As crises humanitárias dos refugiados, a par da evolução política mundial, conduzirão a um alinhamento geoestratégico difícil de prever em toda a sua plenitude. Certo é que nada ficará como antes. No plano económico, a alta dos preços dos combustíveis, energia e matérias-primas estão numa escalada nunca vista e influenciam (e de que maneira) o dia-a-dia de todos nós. Atualmente, a incerteza da escassez de alimentos, o aumento do custo de vida, as dificuldades que acrescem às que já vinham de trás, terão certamente impactos numa economia débil como a nossa, fortemente endividada.
Para além da incerteza, volatilidade, tensão e ansiedade provocada por uma Guerra, sempre desumana, que não pode deixar ninguém indiferente e que nos entra em casa todos os dias através da comunicação social, temos ainda os efeitos da seca na produção agrícola e pecuária, numa tempestade mais que perfeita.
Apesar das chuvas dos últimos dias, que são muito bem-vindas, parte da produção agrícola, sobretudo as culturas de outono/inverno, estará comprometida e reina a incerteza quanto à campanha de primavera, sobretudo o milho, essencial para a alimentação animal.
Com as contas de cultura a duplicar pelos aumentos dos custos de todos os inputs – de resto o mesmo acontece com as produções animais – é muito difícil a tomada de decisões de curto prazo, assim como é muito complicado, num cenário de agravamentos sucessivos de preços, tomarmos decisões ao nível do abastecimento de matérias-primas para a alimentação dos animais.
Os mercados precisam de estabilidade e de previsibilidade.
Infelizmente, ainda estamos muito longe de prever o fim da guerra e o regresso à normalidade possível, pelo que receamos que a volatilidade dos preços e a consequente especulação possam conduzir a uma instabilidade social. Desta forma, é importante manter a coesão e coerência na defesa de posições, porque os próximos anos vão ser de grandes desafios.
Sem perder as convicções e os valores em que acreditamos, devemos lutar em Portugal e no plano da União Europeia para defender a soberania alimentar, a segurança e os pilares que marcaram a construção europeia a seguir à Segunda Grande Guerra.
Porque a comunicação social tem dado conta das preocupações do Setor e amplificando, de algum modo, as nossas mensagens-chave, não deixa de ser relevante analisar o futuro Governo e abordar as expectativas, em jeito de caderno de encargos, essencial para manter a viabilidade da Fileira agroalimentar e a sustentabilidade de uma parte importante da economia e do território.
Atualmente a Opinião Pública voltou a recordar-se da importância da Alimentação. Devemos continuar a trabalhar para que esta memória não seja esquecida.
Nesta perspetiva, ter uma leitura sobre o novo elenco governativo torna-se essencial. É em interação com ele que deveremos recuperar para a Fileira a relevância, não só económica como pública, que merece.
A nossa leitura é de que à primeira vista se trata de um Governo fortemente político. Nas áreas que mais nos influenciam estão, parece-nos, escolhas de clara confiança, apontando sinais inequívocos para o Setor acerca da necessidade de cooperação porque os tempos difíceis e complexos assim o exigem.
No Ambiente, temos um Ministro que aparentemente não tem ligações a esta pasta, mas é um membro do núcleo duro do Primeiro-Ministro, o que significa um poder de intervenção forte, com implicações nas áreas ambientais, florestas e energia, desde logo na política energética e dos biocombustíveis, mas também nos efluentes, economia circular e na transição energética, áreas que, sabemos, têm implicações na agricultura, na pecuária e que inclui, naturalmente a alimentação animal, e a agroindústria.
Na Economia, temos saídas que deixarão saudades: Ministro Siza Vieira e Secretário de Estado João Torres, com quem contactámos com grande frequência nestas últimas semanas, manifestando preocupações e defendendo as nossas posições junto do Governo e no quadro da União Europeia. Agradecemos publicamente o trabalho realizado e a cooperação e disponibilidade demonstradas para com o nosso setor, sobretudo no quadro do Grupo de Acompanhamento da Cadeia de Abastecimento, quer na fase da pandemia, quer, mais recentemente, na reativação desta estrutura de diálogo entre o Governo e as organizações da cadeia alimentar – produção, indústria, logística, distribuição e Administração Pública. Consideramos que este instrumento, por se ter revelado muito útil, deve continuar a existir com o novo Ministro porque é essencial no diálogo, na coesão e na resolução dos problemas reais das empresas.
A entrada do Ministro António Costa Silva, o mentor do PRR e de toda a estratégia que lhe serviu de base, é por si só uma boa noticia. Também é boa notícia o facto de o Mar estar integrado neste Ministério, dando nota de que o potencial da chamada economia azul vai ser concretizado.
Para já, para o nosso setor, é urgente continuar quer com a PARCA, quer com este Grupo de Acompanhamento e monitorização, e renovar a Linha de crédito de apoio à tesouraria para a indústria transformadora, de 400 milhões de euros, que esgotou rapidamente, como, aliás, era de esperar. Claramente insuficiente. Só no nosso setor, apresentámos uma proposta de 150 milhões de euros para fazer face às necessidades de muito curto-prazo.
Finalmente, da maior importância, a Agricultura. A manutenção da Ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, representa um sinal claro de confiança política. Esperamos que esta confiança se traduza num incremento da dimensão política e do prestígio do Setor durante a legislatura que agora se inicia. Nesta linha, é muito positivo que o Ministério da Agricultura inclua, de uma forma explicita a Alimentação, alteração que desde há muito defendemos.
De facto, temos hoje uma PAC menos agrária e mais alimentar, pelo que faz todo o sentido perspetivar as cadeias de valor e a alimentação junto dos consumidores, atendendo aos atuais desafios societais. E, provavelmente, a manutenção da Ministra terá sido um prémio pelo encerramento da PAC na nossa Presidência, porque vamos ter um PEPAC para implementar, e a possibilidade de alimentar humanos e animais, provocada pela invasão da Ucrânia, recordou os governantes da importância da produção de alimentos. Quanto à junção da agricultura com as pescas, vemo-la como natural numa estrutura governativa mais ligeira, até porque os Conselhos são de agricultura e pescas (AGRIFISH).
Ainda no que respeita ao tema Alimentação, cumpre-nos dizer que uma vez que o Ministério da Agricultura “adquiriu” para a sua designação este substantivo, isso não pode significar, simplesmente, uma mera alteração nominal. Deve, sim, consubstanciar uma estratégia política que tem de dar prioridade às questões da soberania e segurança alimentar, da indústria agroalimentar e da capacidade exportadora do país no que a produtos alimentares diz respeito.
Face aos desafios que temos pela frente, inclusive no novo desenho da Assembleia da República, compreende-se que o Governo tenha um perfil mais político porque tem de estar em todas as frentes, em Portugal, em Bruxelas e nas organizações supranacionais, necessitando de tomar decisões de fundo, transformadoras e desafiantes, algumas de rutura com o passado, ou de recuo em alguns dossiers.
Seja como for, é certo que o diálogo, sobretudo com as empresas e as suas organizações representativas, deve ser privilegiado. E se a imagem de marca da escolha dos Ministros é a confiança política, torna-se ainda mais necessário que os Secretários de Estado sejam sobretudo técnicos, com grande experiência ou reconhecimento nas respetivas áreas governativas. As decisões políticas deverão ser sustentadas por argumentos de natureza técnica, de preferência sólidos e coerentes, apoiados pela ciência.
Em resumo, são estas as expectativas que temos, e deixamos, sobre o novo Governo.
É essencial uma visão de conjunto, bem sabemos, mas também sabemos que, nas pastas específicas que aqui referimos, existe um longo trabalho a fazer em termos de cooperação e diálogo, de redução dos custos de contexto, os estrangulamentos já conhecidos e que se têm arrastado sem resolução (efluentes, licenciamentos, restrições ambientais…). Deixamos, também a sugestão de consolidação do trabalho que vinha a ser desenvolvido entre a Agricultura e Economia.
Na IACA, como sempre, estaremos disponíveis para colaborar, não deixando de discordar se necessário, caso as políticas comprometam ou coloquem em causa o que defendemos, a nossa Missão, e os interesses, legítimos, dos nossos Associados.
Continuamos a afirmar que a Alimentação Animal é, e quer ser, parte da solução para um Portugal mais inclusivo, moderno, com agricultura e pecuária em todo o território, menos dependente do exterior e afirmando-se no quadro da União Europeia.
Para já, temos de enfrentar a crise e encontrar soluções em conjunto. Podem contar com a IACA e com a Indústria da Alimentação Animal.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
O artigo foi publicado originalmente em IACA.