Para os mais distraídos, convém relembrar que foi a IACA uma das primeiras organizações a nível nacional que, no início de 2021, ainda durante a presidência portuguesa da União Europeia, levantou a questão do agravamento dos preços das principais matérias-primas e a escalada que se antevia ao nível dos macro e microingredientes para a alimentação animal, a compra de milho e soja pela China, a disrupção na cadeia de abastecimento, fragilidades na União Europeia e em Portugal, as consequências na produção pecuária e nos bens alimentares, e a inflação, com a tónica da repercussão dos custos ao longo de toda a cadeia de valor e, naturalmente, a relação entre os fornecedores e a grande distribuição.
Mais tarde, já num quadro em que a discussão começou a ganhar maior amplitude mediática, sobretudo a seguir às férias de verão, com a crise energética, multiplicámos a comunicação das inquietações, com o apoio de tantos outros setores, sempre com a FIPA, ou em conjunto com setores mais expostos à crise que se adivinhava dramática, como o leite ou a suinicultura. Para além da área animal, a produção vegetal, com os custos dos fertilizantes e posteriormente a seca, foi reivindicando sucessivamente (e bem) apoios e condições de produção para assegurar um mínimo de competitividade e sustentabilidade.
Recordamo-nos que em outubro de 2021, quando se discutia na Europa se a inflação iria ser estrutural ou conjuntural e foram publicadas as primeiras estimativas do BCE, manifestámos a nossa incredibilidade perante as previsões. Não porque fossemos mais espertos e inteligentes que os demais, longe disso, mas pela natureza do nosso setor, pelo papel e importância que ocupamos na cadeia alimentar, pelo facto de estarmos mais expostos e atentos à conjuntura mundial e obrigados a uma visão holística.
Somos “obrigados a ter mundo”, a olhar para além do muito curto prazo.
Era para nós evidente que estávamos perante um problema estrutural, bastava ver as tensões inflacionistas nos EUA, na China, no Reino Unido, em alguns países da União Europeia, olhar para os mercados futuros de matérias-primas como o milho e a soja, as tensões geopolíticas…com um final de ano e um princípio de 2022 muito complicado e, finalmente, isso sim, nunca o poderíamos prever, uma guerra na Europa, com todo o drama que ela encerra e que já aqui descrevemos.
Um verdadeiro drama, de horror supremo, ainda maior quando a ele assistimos “de bancada” e em direto, com um sentimento de impotência perante um povo que luta, todos os dias, desde 24 de fevereiro, pelos valores em que acreditamos.
Tudo isto nos leva ao tema da semana que não podia deixar de ser a apresentação do Orçamento de Estado para 2022 e as medidas que nos foram apresentadas, esta semana, pela Ministra da Agricultura e Alimentação. De ambos os lados foi manifestada a disponibilidade total de cooperação e a cumplicidade, que se exige, entre quem nos tutela e os setores que representamos, sem esquecer que a política é feita de escolhas e de opções, todas elas legítimas, mas igualmente objeto de escrutínio. É este o modelo que nos orienta e aquele que devemos continuar a exigir, de um diálogo permanente entre Estado e empresas, em nome de um Portugal mais competitivo, sustentável e inclusivo.
Relativamente ao Orçamento de Estado, outros bem mais avalizados serão chamados a comentar e interpretar, mas numa primeira leitura, parece faltar ambição para a necessária recuperação, receamos que o PRR ignore o tecido empresarial e, mais perturbador, que os pressupostos tenham de ser rapidamente revistos porque o Mundo mudou a partir de 24 de fevereiro. Vamos ter um quadro geoestratégico completamente distinto daquele que conhecíamos e o problema da Ucrânia e os seus danos colaterais – e desde logo o papel da Rússia e da China no panorama mundial – vão perdurar muito para além de 2022, talvez até final da legislatura.
Prever uma inflação de 4%, quando as tensões inflacionistas tendem a ser estruturais, um crescimento de 4.9%, sendo certo que vai existir um abrandamento da economia mundial, um déficit de 1.9%…dá-nos a sensação de que o Governo não está a prever todos os efeitos de um conflito que, infelizmente, se pode prolongar até final do ano, ao mesmo tempo que os apoios e medidas para empresas e famílias parecem insuficientes perante a dimensão do problema. A recusa em aumentar os funcionários públicos poderá desencadear tensões sociais, com a rua a “substituir” a Assembleia da República, ruído e demagogia, em vez de bom-senso.
Em função da evolução do conflito, temos algumas questões relevantes e perturbadoras: o protecionismo de alguns países, a dependência de outros, desde logo o Norte de África, designadamente nos cereais e o comportamento da China. Pese embora preocupada com a Covid -19 – o que terá impacto no abastecimento europeu de matérias-primas importantes -, o facto é que os laços entre a China e o Ocidente continuam tensos por questões comerciais, a que se juntam (e bem) os direitos humanos, com a tensão a crescer depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, que o Governo de Pequim recusa condenar. Por outro lado, ainda na semana passada os Estados Unidos foram claros ao afirmar que a China arrisca enfrentar consequências se ajudar a Rússia a evitar as sanções ocidentais que incluem medidas financeiras que restringem o seu acesso a moeda estrangeira e dificultam o processamento de pagamentos internacionais.
Finalmente, as ajudas anunciadas, de que destacamos algumas, como por exemplo a reserva de crise, a linha de crédito à agroindústria ou a suspensão do IVA nas rações e fertilizantes.
É evidente que os apoios são limitados e finitos, mas há opções que devem ser claramente assumidas.
Na reserva de crise, a União Europeia vai avançar com 9 milhões de euros e Portugal com 18 milhões, ou seja, 27 milhões de euros que ainda não sabemos como vão ser repartidos, mas que deverão ser para apoiar setores como os suínos, aves, leite e talvez para apoiar a compra de rações e de fertilizantes.
A linha de crédito para o agroalimentar, de 400 milhões de euros, foi esgotada em dois dias, não está previsto que seja recuperada, mas é urgente o reforço para garantir liquidez e tesouraria para as empresas fazerem face, por exemplo, à aquisição de matérias-primas e outros inputs, cujos preços duplicaram ou triplicaram a seguir à guerra.
Finalmente, a suspensão do IVA nas rações e fertilizantes que ainda não sabemos como vai ser desenhada, mas que pode ser penalizante para a indústria da alimentação animal que tem de suportar o IVA nas suas compras e esperar quatro meses, com os atrasos que se estão a verificar, para o reembolso, o que só vai acrescentar problemas de tesouraria e mais custos, esta situação é ainda mais grave nos casos em que as empresas são objeto de inspeção. Uma medida que nos prejudica e que apenas beneficiaria alguns (poucos) produtores que não são seguramente os que dispõem de contabilidade organizada e aqueles que certamente seria importante apoiar. Uma medida que é avaliada em 40 milhões de euros e que deve ser repensada; talvez fosse mais eficaz ajudar os produtores com este montante, reforçando os 27 milhões de euros da reserva de crise.
Vamos ter ainda ajudas à eletricidade verde, aos combustíveis, energia, a antecipação das ajudas diretas para maio, mas existe ainda uma questão para a qual ainda não encontrámos resposta e que se prende com a transferência de verbas entre o primeiro e segundo pilar da PAC: foram garantidos deste pilar para as ajudas diretas (600 milhões de euros anualmente) um montante de 85 milhões de euros até 2027, uma opção (legítima) do Governo. Se no PDR temos verbas anuais de 500 milhões de euros, que dificilmente serão esgotadas, porque não explorar o limite previsto por Bruxelas, na ordem dos 120 milhões de euros, e canalizar estes montantes para apoiar os agricultores e mitigar o impacto da grave crise que atravessamos?
Sem dúvida de que nestas alturas devemos olhar para o médio e longo prazo, mas é importante reforçar a atual estrutura produtiva, para levarmos mais agricultores e explorações pecuárias até onde seja possível porque são eles e a agroindústria que asseguram alimentos, protegem a paisagem e o território, travam o abandono e a desertificação das zonas rurais.
Numa altura em que se discute o OE para 2022 e é sabido que o Ministério da Agricultura e Alimentação vai ter mais 272,5 milhões de euros face a 2021 (+24%) é tudo isto que está em causa.
Afinal, qual o papel e a interação que deve existir entre os atores da Alimentação e quem os representa no Governo? O que está pensado entre Agricultura e Alimentação, Economia e Ambiente? O que poderemos esperar no curto prazo para enfrentar uma crise que jamais vivemos e que exige uma outra dimensão e visão de quem nos Governa, da parte das empresas e de quem os representa?
Aqui deixamos mais estas inquietações e preocupações…as medidas só serão eficazes se forem atrativas para quem delas beneficia. Basta saber ouvir e dialogar. Estarmos atentos aos sinais. As decisões serão sempre legítimas, mas devem ser legitimadas.
Um orçamento só é bom se servir o País. Ainda vamos a tempo de fazer as necessárias correções.
Votos de uma Santa Páscoa.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA