agricultura

Como iremos fazer agricultura num futuro com menos água?

O impacto das alterações climáticas não deixa margem para dúvidas: vamos ter menos água disponível.

O caminho será aumentar o regadio e esquecer a agricultura de sequeiro? Ou conseguiremos um equilíbrio dos dois modelos?

Entre projectos para salvar o Tejo, preocupações com os aquíferos no Algarve e o exemplo, para o bem e para o mal, do Alqueva, fomos à procura de respostas.

“A água antes chegava até aqui. Lembro-me que quando era miúdo, daqui para a frente era água. E olhe agora.” Manuel Campilho aponta para a pedra que em tempos marcava o início do rio Tejo na zona onde nos encontramos, perto de Alpiarça. À nossa frente, areia a perder de vista. Avançamos como se estivéssemos numa praia, até um modesto curso de água – o rio. “Esta areia é do rio, que ficou a descoberto. Não há peixes.”

O empresário agrícola da Quinta da Lagoalva olha para o triste cenário e, ainda assim, consegue imaginar um futuro em que o rio volta a correr, os peixes reaparecem, a flora renasce, as embarcações passam, e os campos em redor são cultivados, usando a água do Tejo. “O que nos propomos fazer é pôr água no rio, voltar a reabilitar este ecossistema”, declara.

Ao seu lado, o engenheiro agrónomo Jorge Froes explica o que é esse Projecto Tejo no qual ambos depositam grandes esperanças. “O que queremos é criar um rio que tenha sempre água, fazendo pequenos açudes rebatíveis, que durante o Inverno desaparecem e durante o Verão sobem. Enquanto o rio tem água, até Maio, sobem um bocado os açudes, quando o rio começa a deixar de ter água, podemos abrir as comportas, por exemplo de Castelo de Bode. Faz-se essa gestão integrada dos recursos hídricos e conseguimos que, de Maio até Outubro as águas de Castelo de Bode e restantes barragens circulem aqui no Tejo.”

O investimento previsto é de 4,5 mil milhões de euros (embora com 100 milhões seja possível começar a obra no espaço de quatro ou cinco anos, dizem os promotores) e, na frente agrícola, o objectivo é aumentar as áreas de regadio em 300 mil hectares nas regiões do Ribatejo, Oeste e Setúbal.

Um pouco mais acima, na zona de Vila Nova da Barquinha, Paulo Constantino, da Associação Ambientalista ProTejo, tem argumentos para contrariar os de Manuel Campilho e Jorge Froes: “Em 12 anos, a disponibilidade hídrica na bacia do Tejo reduziu-se em 25%. Há menos disponibilidade de água, mas, ainda assim, a suficiente para todos os usos e para fazer a água chegar ao mar e levar os nutrientes até à foz.

O problema é como se usa essa água e o impacto que tem na bacia do Tejo portuguesa a gestão que fazem as hidroeléctricas espanholas. Entre Março e Junho [de 2021] esvaziaram as barragens até níveis mínimos unicamente porque o preço da energia no mercado espanhol estava altíssimo e queriam fazer lucro imediato.”

Um pouco por todo o país, o debate repete-se. De um lado agricultores, do outro, ambientalistas. Todos a olhar para a água. Em pano de fundo, a crise climática e uma certeza: no futuro haverá menos água disponível. Sabendo que, de toda a água que captamos, 70% é utilizada na agricultura – “as plantas não têm dentes, alimentam-se como? Bebendo, não é?”, lança Manuel Campilho – a pergunta é que modelo agrícola é mais sustentável.

A maior parte da superfície agrícola nacional é ainda ocupada por uma agricultura de sequeiro, que depende essencialmente da água da chuva e da existente no solo, mas as áreas de regadio (cerca de 14% do total) têm vindo a crescer, revelando-se muito mais rentáveis (produzem em média cinco a seis vezes mais do que o sequeiro), e são, para muitos, o único futuro possível.

Portugal, “um milagre da meteorologia”

No Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IMPA), Miguel Miranda, que preside à instituição, mostra-nos os ecrãs. “Costumo dizer que Portugal é um milagre da meteorologia. Onde Portugal acaba é onde o deserto começa. O verde de Portugal é chuva, é precipitação. Chegámos ao fim de Fevereiro numa das situações de maior seca que alguma vez se verificaram nas nossas condições. A partir do início de Março, a situação alterou-se completamente, já temos os sistemas atlânticos a entrar pela península e, portanto, começou já a precipitação.”

É verdade que as secas são cíclicas, mas, com a crise climática, elas vão acontecer com maior frequência. O World Resources Institute faz uma projecção para 2040 e coloca Portugal em risco elevado de stress hídrico (em que o consumo de água representa entre 40% e 80% das disponibilidades anuais), sendo o Sul muito mais vulnerável do que o Norte.

“Havendo uma mudança climática na Terra, há duas formas de nos adaptarmos. A primeira é movermos as populações, dizermos que isto vai ser uma região semideserta e vamos ter que sair daqui e ir para uma zona mais húmida”, explica Miguel Miranda. “A segunda é dizer que temos hoje uma capacidade de intervenção suficientemente grande para que, mesmo numa zona com condições semidesérticas, sermos capazes de montar um sistema ambiental, humano e social viável e sustentável.”

A água doce “não desapareceu, nem vai desaparecer”, sublinha Miguel Miranda. A quantidade “é sempre a mesma, porque ela não fica na atmosfera”. A distribuição é que é diferente e, por isso, “a forma como a usamos e transportamos é que vai ter que mudar”. E, se pensarmos na agricultura, o presidente do IPMA não tem quaisquer dúvidas: “Numa situação como a que vamos viver nas próximas décadas, de mudança climática, com a redução da precipitação e o aumento dos fenómenos extremos, seria cegueira as pessoas não compreenderem que a agricultura que pode existir é uma agricultura protegida”.

Não está a falar de “voltar à loucura dos excessos de químicos”, mas, no que diz respeito à água, está a falar do que considera ser a inviabilidade do sequeiro. “Numa situação de grande alteração pluviométrica, provavelmente as culturas de sequeiro são perdidas, ponto. E depois arranja-se um subsídio para compensar; e o subsídio vem de que riqueza?”

O mesmo diz Jorge Froes, no nosso passeio por um Tejo sem água. “Este ano foi a prova de que o sequeiro em Portugal está morto. Quando se diz que vamos abandonar o paradigma do regadio e evoluir para a silvopastorícia, é impossível. O gado come as pastagens, as pastagens são de sequeiro, as pastagens morreram todas — o gado come o quê? Não come. Ou come silagem que foi feita onde? No regadio. A única agricultura que vamos ter em Portugal é o regadio. Agora, compete ao país decidir se a quer ter ou não.”

Andar para o futuro

No Algarve, na zona de Castro Marim, a visão das agricultoras da associação agroecológica Al Bio é completamente diferente. “Existem outros modos de ser agricultor”, diz Rosa Dias, da Quinta da Fornalha. “O modelo de agricultura familiar não está obsoleto nem condenado a desaparecer.” Quer mostrar-nos o que são os dois modelos, lado a lado – o familiar, biológico, predominantemente de sequeiro, que é o dela, e o da agricultura intensiva, que é o do vizinho, produtor de abacates que são, essencialmente, para exportação.

As áreas de abacateiros não páram de crescer no Algarve (nos últimos vinte anos a área cresceu dez vezes) e isso é o maior pesadelo para Rosa Dias, Ângela Rosa, Elisa Campos e Inês Mesquita, que vêem ameaçados os seus pomares de sequeiro, herança familiar, com grande diversidade de espécies agrícolas — só de figos, Ângela Rosa tem na sua propriedade mais de 13 variedades.

O problema não é só o consumo de água, diz Ângela Rosa, é a contaminação dos aquíferos por uma agricultura mais intensiva e não biológica. “É um mar de agricultura intensiva muito próximo do litoral”, alerta. “Ali” — e aponta para uma zona para lá da plantação de abacateiros — “é já a zona de infiltração do aquífero de São Bartolomeu, que está carregadíssimo de nitratos.”

Será a agricultura das jovens da Al Bio uma coisa do passado, um modelo condenado? Voltamos a ouvir Miguel Miranda: “Se dissermos que o Alentejo não tem capacidade para ter culturas nenhumas além do montado e que, portanto, vamos viver do montado, isso não é possível, não tem cabimento. Quantos habitantes poderiam viver do montado? Vender cortiça? Tem que se perceber que o futuro não é voltar a um passado que nunca existiu.”

No meio do seu pomar de citrinos e de alguns abacateiros — que precisam de menos água, mesmo que isso signifique ficarem mais pequenos que os do vizinho de Rosa Dias — Ângela Rosa reage: “Também não podemos dar a ideia de que o passado é que era bom. Nós estamos a inovar, estamos a fazer biomassa, a não utilizar pesticidas, a cultivar em harmonia com a biodiversidade, a fauna e flora nativas, a tentar reduzir o nosso consumo de água, a ter tecnologia nas nossas explorações que monitorize o que está a acontecer, quais as melhores horas para regar, por exemplo.”

“O meu modelo de negócio não está centrado no lucro, tem o objectivo de tentar ser sustentável”, sublinha Rosa Dias. E Ângela Rosa reforça a ideia, com a sua aparentemente inesgotável energia: “Somos o legado, a resistência e provamos que é possível viver, que é rentável, e estamos aqui para andar para o futuro.”

Estudar o solo

Um estudo sobre o uso da água na agricultura em Portugal, feito pelo C-Lab para a Fundação Calouste Gulbenkian, mostra que ainda coexistem agricultores com perfis muito distintos. Apenas 3%, os chamados “mentores”, fazem um planeamento a longo prazo e revelam uma “sensibilidade à água marcada por projecções e estudos científicos”; no outro extremo estão os “condicionados”, 38%, que planeiam a curto prazo e têm uma “sensibilidade à água marcada pela sua experiência pessoal e próxima”.

Em Vale d’Arem, no Alentejo, visitamos um dos mais de 40 olivais da Nutrifarms (Sovena), onde Paulo Carapinha nos mostra o que é esta “agricultura de precisão” que faz com que, mesmo num modelo intensivo e de regadio, haja uma gestão eficaz da água.

Aqui, o Alqueva modificou […]

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