A União Europeia e as Novas Negociações sobre a Agricultura no Âmbito da OMC – João Pacheco

Aproveito esta oportunidade para passar em revista os principais desafios que orientarão a posição da União Europeia nas actuais negociações sobre a agricultura no âmbito da OMC.

Em minha opinião, encontramo-nos perante um triângulo constituído, por um lado, pelo alargamento da União a outros países europeus, por outro, pelo quadro orçamental da União para o período de 2000-2006 e, por último, pelas negociações no âmbito da OMC.

Os referidos desafios interagem mutuamente. Assim, o alargamento da União Europeia afecta as perspectivas e possibilidades orçamentais. As perspectivas orçamentais da União são um elemento da sua posição nas negociações do alargamento. Os recursos orçamentais disponíveis influenciarão a nossa posição de negociação na OMC. O resultado dessas negociações terá, de uma ou outra forma, impacto no nosso orçamento. Do mesmo modo, a perspectiva do alargamento influenciará a nossa posição na OMC (bem como a dos países candidatos). Por último, o alargamento terá um impacto directo nos nossos compromissos no contexto da OMC.

Como é natural, este conjunto de factores apresenta-se como extraordinariamente complexo. De seguida analiso separadamente cada um dos seus elementos constitutivos.

O alargamento da União Europeia

O alargamento é um objectivo estratégico fundamental da União: por um lado, consolidará a transição para a democracia e para políticas de livre concorrência nos países da Europa Central e Oriental e, por outro, contribuirá fortemente para a paz, estabilidade e prosperidade na Europa.

O alargamento coloca um certo número de desafios específicos, tanto para a União Europeia como para os países candidatos. Referir-me-ei apenas à sua componente agrícola.

Na perspectiva da União, o alargamento levará a um significativo acréscimo do potencial produtivo em relação à situação actual e, além disso, conduzirá a integrar uma situação estrutural difícil em termos de dimensão das explorações, estruturas de mercado e instalações de transformação. Um bom exemplo dessas dificuldades estruturais é a situação do emprego agrícola na Europa em sentido lato. Em 1996, a percentagem do emprego correspondente à agricultura na Comunidade actual era de cerca de 5%. Essa percentagem era no “grupo de países do Luxemburgo” – como é habitualmente designada a primeira vaga de países candidatos – de 18% e na segunda vaga de 27,9%, do que resulta para o conjunto uma percentagem de 22,5%. Evidentemente, esta média cobre profundas diferenças entre os vários países.

Por outro lado, o alargamento representará também um significativo aumento do número de consumidores da União, o que deverá contribuir para a expansão do mercado à medida que o seu rendimento aumente em consequência do crescimento que, esperamos, o alargamento induzirá nas economias dos novos Estados-Membros.

De qualquer modo, numa Comunidade alargada, não nos poderemos permitir a repetição dos erros que os então nove membros da Comunidade cometeram nos anos 70. De facto, não podemos tentar resolver problemas relacionados com o rendimento dos agricultores através de uma política que incentive o aumento da produção e leve à formação de excedentes. Nos anos 80, os aumentos da produção comunitária podiam, pelo menos parcialmente, ser escoados através de exportações adicionais, tornadas possíveis pelas restituições à exportação. Essa possibilidade deixou de existir. Voltarei a este ponto no final da peça.

O quadro orçamental da União Europeia para o período de 2000-2006

A política agrícola comum da União evoluiu no contexto de um quadro orçamental cada vez mais restritivo.

A reforma da PAC de 1992 foi levada a cabo, com sucesso, de acordo com as habitualmente denominadas “directrizes agrícolas”, que permitiram um certo aumento, em termos nominais, das despesas agrícolas, a um ritmo inferior ao aumento do PIB.

As reformas no quadro da Agenda 2000, decididas no ano passado, impõem restrições ainda mais severas. As despesas agrícolas estão actualmente limitadas em termos nominais. Com os limites impostos, as políticas de apoio ao mercado e os pagamentos directos aos agricultores, assim como as políticas de desenvolvimento rural, estão também efectivamente limitados. Por outro lado, o novo montante financeiro global estabelece as dotações disponíveis para financiar o alargamento da União.

Para ilustrar o que acabo de expressar, basta recordar a evolução registada nos estádios finais do processo decisório a nível do Conselho relativamente à Agenda 2000: os chefes de Governo alteraram projectos de decisões estabelecidos pelos Ministros da Agricultura, porque acreditavam que essas decisões envolviam despesas mais elevadas, especialmente no que se referia às medidas de garantia tradicionais, do que estavam preparados para financiar. Em consequência, limitaram a reforma ao que estavam preparados para gastar e criaram barreiras firmes entre o financiamento das medidas de garantia e as medidas estruturais. Tal constituiu uma importante alteração em termos de política orçamental e, pessoalmente, não vejo quaisquer sinais de inversão dessa situação.

Um novo ciclo de negociações no quadro da OMC

As negociações acabaram de começar e a nossa posição é, espero, bem conhecida embora, por vezes, mal compreendida.

A União espera que as negociações agrícolas estabeleçam um equilíbrio entre as reformas comerciais fundamentais (através da redução tanto da protecção nas fronteiras, bem como do apoio interno e do apoio às exportações, ambos causadores de distorções comerciais) e os aspectos de natureza não comercial, equilíbrio esse que reflicta o seguimento do Acordo de Marrakesh de 1994. Um futuro acordo OMC deve conduzir a uma maior liberalização do comércio agrícola, permitindo simultaneamente que os parceiros na OMC mantenham uma política que respeite e corresponda às suas prioridades internas. O objectivo da criação de um sistema comercial agrícola orientado para o mercado deverá igualmente ter como consequência um tratamento especial para os países em desenvolvimento.

Apoio interno

O Acordo previu instrumentos específicos que estabeleciam uma classificação das medidas de apoio interno em função do grau de distorção comercial que provocam e, além disso, especificou o nível de redução a aplicar às medidas agrupadas nas categorias de políticas agrícolas de que resultam distorções mais elevadas. Essas medidas enquadram-se nas três “caixas” do Acordo – verde, azul e amarela. Naturalmente, o próximo acordo deverá dar uma resposta à questão de saber se algum dos instrumentos específicos previstos no próprio Acordo necessita de ser adaptado.

A União considera que uma revisão importante dos instrumentos específicos previstos no Acordo não é nem necessária, nem desejável. Esta posição não exclui uma certa actualização das “caixas” azul e verde, mas sublinha a continuação da actual distinção das políticas em função do grau de distorção comercial que provocam como elemento principal para a determinação da adesão à desejada substituição do apoio ligado a preços ou produtos por políticas de apoio que sejam mais transparentes e provoquem muito menos distorções comerciais.

Questões relativas à concorrência no domínio das exportações

Este área do Acordo é frequentemente apresentada como dizendo apenas respeito aos subsídios à exportação, sublinhando-se o facto de quase 85% de todos os subsídios às exportações agrícolas serem atribuídos na União Europeia. Não há nada de novo ou inesperado nesse facto. Trata-se de um reflexo da estrutura de anteriores políticas agrícolas da União, que foi incorporado nos compromissos por ela assumidos. Além disso, os 85% atrás referidos baseiam-se em subsídios notificados à OMC. Esta organização determinou recentemente que as reduções fiscais que os EUA concedem aos exportadores através do sistema FSC correspondem a montantes que constituem subsídios ilegais à exportação, que, evidentemente, nunca foram notificados.

O que há de interessante a notar é o impacto positivo da reforma da PAC no declínio dos subsídios à exportação concedidos na União, nos sectores que foram objecto da reforma, tais como os cereais e a carne de bovino e, indirectamente, as carnes de suíno e de aves de capoeira. Os subsídios à exportação concedidos na União Europeia, actualmente enquadrados por regras e disciplinas estritas, declinaram significativamente e espera-se que diminuam ainda mais na sequência das últimas reformas introduzidas no contexto da Agenda 2000 (mesmo antes de um novo acordo OMC entrar em vigor). A Comunidade deseja continuar a negociar uma maior redução dos subsídios à exportação, mas essa posição pressupõe que todos os apoios desse tipo sejam objecto do mesmo tratamento.

Tal significa que o compromisso de introduzir regras relativamente aos créditos às exportações agrícolas (incluindo o fornecimento de ajuda alimentar em condições de crédito favoráveis) deve ser respeitado. Este compromisso, que está relacionado com o importante instrumento de apoio às exportações aplicado pelos EUA, é uma parte do Acordo (artigo 10.2), sendo o seu cumprimento essencial para se alcançar um resultado equilibrado. Outras formas menos transparentes de apoio à exportação, como, por exemplo, a realização de exportações com base em monopólios garantidos pelo Estado, devem igualmente ser objecto de uma solução satisfatória.

De igual modo é importante garantir que não se abuse das operações de Ajuda Alimentar para despejar excedentes no mercado mundial, minando os legítimos interesses comerciais de outros países exportadores e dos próprios agricultores dos países visados.

Questões relativas ao acesso ao mercado

A União Europeia, que é simultaneamente um importante exportador de produtos alimentares e o maior importador dos mesmos a nível mundial, tenciona beneficiar de uma parte da expansão do comércio mundial desses produtos. A União procurará obter melhores oportunidades para os seus exportadores, nomeadamente através de uma maior transparência das regras de gestão dos contingentes pautais, incluindo as importações realizadas por monopólios estatais, e da eliminação de outros obstáculos não pautais injustificados.

Entre estes últimos encontram-se os relacionados com a protecção de indicações geográficas, a fim de garantir que as exportações da União não enfrentem uma concorrência desleal, como, por exemplo, a utilização abusiva por terceiros de denominações comunitárias bem estabelecidas. A União acredita igualmente que os países em desenvolvimento devem beneficiar de um tratamento especial. Pelo seu lado, a União já lhes oferece importantes preferências, sendo, de longe, o maior importador de produtos agrícolas provenientes desses países. A União está igualmente preparada para aumentar o acesso com isenção de direitos e de contingentes em relação a praticamente todas as importações originárias dos países menos desenvolvidos.

Questões não comerciais

Os vários acordos OMC abrangem um vasto conjunto de matérias: o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, o Acordo sobre os Obstáculos Técnicos ao Comércio, o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio. De todas estas questões, a mais controversa tem, sem qualquer dúvida, sido a das medidas relacionadas com as questões da segurança alimentar e o seu impacto no comércio. A recente jurisprudência OMC confirmou que medidas não discriminatórias, baseadas em elementos de natureza científica e destinadas a proporcionar um nível de segurança determinado pelos membros, estão em conformidade com o Acordo.

Em termos mais gerais, poderia ser útil que tal fosse confirmado, a fim de garantir aos consumidores que a OMC não será utilizada para forçar a entrada no mercado de produtos cuja segurança seja causa de legítimas preocupações. A experiência da União Europeia nos anos recentes demonstrou que o consumidor não encara as questões de segurança alimentar, que indiscutivelmente têm impacto no comércio, como tais mas sim como questões relacionadas com a saúde. Por conseguinte, as medidas que se destinam a integrar essas preocupações nos futuros acordos comerciais não devem ser encaradas como constituindo obstáculos ao comércio. Pelo contrário, a longo prazo, essas medidas podem funcionar como um incentivo.

Mas a questão de natureza não comercial mais importante que deve ser resolvida nas próximas negociações agrícolas no quadro da OMC consiste, no que respeita à União, no reconhecimento do papel multifuncional da agricultura. Não só a produção de géneros alimentícios, alimentos para animais e fibras mas também a preservação do ambiente rural e da paisagem, o bem-estar dos animais e a contribuição da agricultura para a viabilidade das zonas rurais e para um desenvolvimento equilibrado do território representam objectivos políticos legítimos. É nossa intenção atingir tais objectivos através de medidas especificamente definidas para a realização de determinados fins, de um modo que minimize eventuais distorções comerciais.

Conclusão

Termino colocando as seguintes questões: o que constitui o centro do triângulo “alargamento da União Europeia / quadro orçamental restritivo / negociações no quadro da OMC”? Como pode a União encarar o conjunto de desafios em causa, preservando simultaneamente o seu modelo agrícola?

Evidentemente, não existem respostas rápidas e simples para essas perguntas. As democracias têm o seu próprio processo de tomada de decisões. Os funcionários podem aconselhar e propor, mas não podem decidir. Assim sendo, a chave para enfrentar os novos desafios consiste em manter a direcção seguida pela União Europeia desde as reformas de 1992: abandono de uma política que provoca elevadas distorções dos preços de mercado.

Trata-se de uma direcção que, em minha opinião, é desejável tanto para a Comunidade, actual ou alargada, como para os nossos parceiros comerciais. Esta mudança de política não significa que desejemos abandonar os nossos agricultores ou impedi-los de continuar a fornecer os serviços multifuncionais que a agricultura pode proporcionar à nossa sociedade. Este aspecto constitui igualmente uma posição que será mantida na Comunidade alargada. Mas a preservação do papel multifuncional da agricultura não pode, em especial nos novos Estados-Membros, ser confundida com o bloqueamento das alterações estruturais. Na verdade, essas alterações devem ser incentivadas. A evolução registada no âmbito da OMC leva a que não possamos repetir, na Comunidade alargada, os erros de política agrícola cometidos nos anos 70 pela Comunidade a nove. A nossa própria política orçamental tem o mesmo efeito.

No futuro, a União será mais competitiva e menos dependente de políticas específicas relacionadas com as exportações. A União será também mais agressiva na defesa dos seus interesses nesse domínio. A União aplicará políticas de apoio interno definidas de uma forma mais específica para alcançar determinados objectivos de desenvolvimento rural, ambiental e outros. Trata-se de uma direcção que é particularmente desejável para Portugal. Portugal beneficia relativamente menos que outros Estados – Membros de subvenções às exportações ; beneficia relativamente menos de ajudas aos agricultores calculadas em função do volume de produção passado ou presente. Portugal beneficiará claramente mais de apoios específicos, nomeadamente ao desenvolvimento rural.

João Pacheco
Chefe da Unidade 1 (OMC, OCDE, EUA e Canadá)
Direcção H (Questões Internacionais Relativas à Agricultura)
DG AGRI – Comissão Europeia


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