Organismos Geneticamente Modificados: Uma Perspectiva da Indústria de Alimentos Compostos para Animais – Jaime Piçarra

1 – Introdução

Dada a importância do milho e dos produtos do complexo soja na alimentação animal – representando cerca de 30% e 17%, respectivamente, ou seja, 47% do total das matérias primas consumidas – o debate em torno da utilização de organismos geneticamente modificados assume particular relevância na indústria de alimentos compostos para animais. Por outro lado, é preciso não esquecer a dependência do exterior no aprovisionamento de matérias primas, sendo o nosso país deficitário em cerca de 70%, com a soja a representar uma dependência total, sendo importada da Argentina, Brasil e Estados Unidos.

Nesta perspectiva, a abordagem ao tema proposto deve ser discutida sob dois diferentes aspectos: por um lado, no âmbito da segurança alimentar e, por outro lado, em termos da globalização dos mercados / negociações da Organização Mundial do Comércio, ou seja, no âmbito da competitividade futura da indústria de alimentos compostos – tanto mais que os custos de aprovisionamento representam cerca de 80% dos custos dos alimentos compostos – e, dada a importância das rações nos preços da pecuária, à luz da capacidade competitiva de toda a Fileira Pecuária.
2 – A Segurança Alimentar

Com as crises da BSE em 1996 e das dioxinas em 1999, os problemas ligados à alimentação animal passaram a ser objecto de análise e especulação na comunicação social, muitas vezes com um carácter bastante mais emotivo do que científico em que todas as questões aparecem directamente ligadas, conduzindo a uma má imagem dos produtos junto dos consumidores. Os problemas relativos ao ambiente, traçabilidade dos produtos e segurança alimentar por parte dos consumidores (BSE, antibióticos, OGM’s, resíduos) – porque mais exigentes, atentos e informados – assumem já hoje particular importância, exigindo-se por parte de todos os agentes económicos uma maior preocupação com a qualidade e com regras de produção e de controlo dos produtos, desde a exploração agrícola até aos pontos de venda. Nesta perspectiva, o Livro Branco da Comissão Europeia sobre segurança alimentarDocumento em formato PDF aponta um caminho relativamente claro e sugere um conjunto de propostas legislativas que não deixam dúvidas de uma perspectiva de segurança e controle, global e integrada “stable to table”, desde a exploração agrícola à mesa do consumidor, em que cada parceiro na cadeia alimentar deve assumir as suas responsabilidades, ou seja, todos são co-responsáveis pela segurança dos alimentos, sendo claro, no âmbito do Livro Branco que “a segurança dos produtos alimentares de origem animal começa com a segurança da alimentação animal”.

De facto, a segurança alimentar – o fornecimento de produtos seguros e isentos de risco – sempre foi uma das preocupações da indústria de alimentos compostos e continuará a sê-lo, pelo que os mecanismos de autocontrole, a introdução de códigos de boas práticas, as normas ISO ou o método HACCP (controle dos pontos críticos dos processos de fabrico) serão instrumentos essenciais a ter em conta, não só pela indústria mas igualmente pelos fornecedores de matérias primas para a alimentação animal. Deste modo, importa saber se um OGM é ou não um produto isento de risco e, como tal, passível de ser utilizado pela indústria. Esta resposta compete desde logo aos cientistas e deve ser baseada em critérios científicos, cuja informação deve constituir a base da política de segurança dos alimentos na União Europeia e não as percepções ou emoções dos consumidores.

Nos EUA, a aprovação de produtos OGM’s é um processo relativamente complexo e exigente, com uma duração de cerca de 18 meses (180 dias na APHIS) e que exige a aprovação de diversas entidades, consideradas credíveis, na área do ambiente (EPA), agricultura (APHIS) e saúde pública (FDA), num processo que é avaliado de acordo com critérios científicos. Uma vez aprovados os novos produtos, estes são considerados isentos de risco e, como tal, podem ser comercializados sem problemas quer para a saúde animal quer para a saúde humana.

Na União Europeia, o processo de aprovação exige uma apreciação científica do problema, no âmbito de diferentes Comités Científicos (Géneros Alimentícios, Nutrição Animal) que, actualmente, funcionam sob a tutela da ex-DG XXIV, a Direcção Geral da Saúde e Protecção dos Consumidores (DG SANCO), tutelada pelo Comissário David Byrne que é igualmente responsável pelo sector da alimentação animal. Deste ponto de vista, quando a Comissão Europeia aprova as novas variedades – actualmente estão aprovados 18 produtos transgénicos, dos quais 4 variedades de milho e 1 de soja, aguardando aprovação mais 13 produtos -, estas devem ser comercializadas no espaço europeu e passíveis de utilização de uma forma segura e isenta de riscos. Nesta perspectiva, se um produto é aprovado, deve ser considerado seguro e potencialmente utilizável; caso contrário não deve ser utilizado, pelo que a legislação tem de ser clara, exequível e objectiva, devem existir acções de controle e fiscalização em todos os pontos do circuito, não podendo ser deixada à indústria o ónus de se utilizarem produtos que suscitem desconfianças nos consumidores.

Em nossa opinião, a grande discussão em torno dos OGM’s – a que não são alheios problemas de âmbito comercial e protecção aos mercados mas igualmente uma falta de confiança nos sistemas de regulação – tem a ver com perspectivas diferentes de encarar esta matéria na Europa e nos EUA e que têm sido transpostos para as questões da rotulagem/segregação em que a decisão política de uma livre escolha do consumidor mais não tem feito senão confundir a opinião pública, tanto mais que a nova regulamentação do Novel Food e, a curto prazo, do Novel Feed (alimentos compostos) é na prática de difícil execução, exigindo métodos de análise que terão de ser padronizados a nível europeu, listagem negativa e limites de tolerância que só irão onerar os custos dos produtos, podendo limitar as vantagens de utilização dos OGM’s, reconhecidas recentemente em organismos internacionais como a FAO. Refira-se aliás, no que respeita ao regulamento Novel Feed, o Livro Branco prevê a sua adopção pela Comissão em Setembro de 2001 e pelo Conselho/Parlamento Europeu em Dezembro de 2001 mas a presidência francesa da União Europeia já considerou este dossier como prioritário, pelo que a proposta da Comissão já a partir de Outubro. Desconhecemos ainda se, à semelhança do que acontece com a alimentação humana, os alimentos para animais que contêm OGM’s terão ou não de ser rotulados e os limites de tolerância mas pensamos que a segregação das matérias primas, pelos elevados custos que daí decorrem, deve ser uma exigência do mercado e não um imperativo do legislador. A existir rotulagem, os fornecedores de matérias primas devem indicar claramente se contêm ou não organismos geneticamente modificados, de forma a podermos cumprir a legislação e satisfazer as necessidades dos nossos clientes. As regras devem ser harmonizadas em todo o espaço comunitário, de forma a evitar distorções de concorrência.
3 – Competitividade/Globalização

A utilização de organismos geneticamente modificados (OGM’s) representa igualmente um desafio, tanto mais que nos encontramos perante uma população mundial que cresce assustadoramente enquanto se assiste a uma diminuição da terra arável. De facto, estamos confrontados com uma duplicação da população mundial nos próximos 40 anos e torna-se necessário incrementar a produção alimentar em cerca de 250%, pelo que, a par dos problemas ambientais, a biotecnologia, com a sua capacidade para melhorar o rendimento, a qualidade e o valor nutritivo dos alimentos poderá ser uma das chaves do problema. Refira-se que no âmbito de uma reunião do Grupo Especial Intergovernamental do Codex Alimentarius que decorreu no Japão em Março deste ano, organização ligada à FAO, se reconheceu que “a biotecnologia oferece possibilidades de crescimento da produção e da produtividade da agricultura, da pesca e das florestas e que permitirá a obtenção de maiores rendimentos nas terras marginais, nos países em que a produção actual é insuficiente para alimentar as respectivas populações.”

Por outro lado, é sabido que nas próximas negociações da Organização Mundial do Comércio, se espera uma maior abertura dos mercados europeus ao mercado mundial e uma menor protecção dos mercados, ou seja, a crescente liberalização dos mercados exige que todos os países adoptem iguais procedimentos, sendo inadmissível que a União Europeia venha a impôr maiores exigências e restrições aos seus operadores do que as que são impostas ás trocas comerciais de países terceiros, sob pena de perda de competitividade da Europa e deslocalização de empresas europeias para outros países, para fora do espaço comunitário.

Nesta perspectiva, a aprovação de novas variedades deveria constituir um processo simultâneo nos EUA e na Europa, tanto mais que se assiste a uma explosão de produtos OGM em todo o mundo, sobretudo em países importantes como os EUA, Argentina, Brasil e Canadá, enquanto na Europa são conhecidos os problemas em torno desta matéria, sendo a Espanha actualmente o único país em que está autorizada a sementeira de milho transgénico. Em Portugal, depois de terem sido autorizadas as sementeiras de 2 variedades de milho, o Ministério da Agricultura suspendeu o processo em Dezembro de 1999, à luz do princípio da precaução, sendo no entanto possível a importação de variedades transgénicas autorizadas pela União Europeia.

De facto, a nível mundial, de acordo com organizações especializadas nesta matéria, em 1999, as culturas transgénicas (soja, milho, colza e algodão) foram semeadas numa área de cerca de 40 milhões de hectares, um crescimento de 44% relativamente a 1998. Os EUA representam cerca de 72%, seguidos da Argentina, Canadá e China mas já existem culturas transgénicas na Austrália, África do Sul, México, Espanha, Roménia e Ucrânia. A soja, com 54%, representa a principal cultura, seguida do milho (28%), algodão e colza (9% cada). As resistências aos herbicidas representam 71% e aos insectos 22%. Nos EUA, cerca de 54% da soja é transgénica e resistente aos herbicidas (15 milhões de hectares) e no milho, este ano, 25% (37% em 1999) era geneticamente modificado. Na Argentina, a soja modificada representa já 90% desta cultura. As vendas totais de culturas transgénicas representaram entre 2.1 e 2.3 mil milhões de dólares em 1999, estimando-se 8 mil milhões em 2005 e 20 mil milhões de dólares no horizonte 2010.

Em Portugal, a discussão em torno dos OGM´s, decorrente sobretudo do “diferendo” de pontos de vista entre os EUA e a União Europeia já está a ter um impacto negativo na indústria de alimentos compostos para animais, ao nível do contingente de 500 000 toneladas de milho de países terceiros. Nos últimos dois anos, uma vez que a Europa aprovou um menor número de variedades de milho do que as existentes nos EUA (neste momento estão suspensas as aprovações de novos produtos na União Europeia) e como este país insiste na não segregação, está-nos a ser vedada a possibilidade de importarmos milho daquele país, tendo o milho sido importado dos países de Leste e da Argentina, o que desvirtua por completo os objectivos do contingente, pelo que, reduzidas as fontes de aprovisionamento, existirão condições para um aumento de preços e provavelmente, no médio prazo e a manter-se o actual statuos quo, o contingente não se esgotará uma vez que os mercados alternativos não poderão assegurar as quotas de milho destinadas a Portugal e Espanha. Nesta perspectiva é necessário garantir que as variedades aprovadas nos EUA sejam aceites na Europa, desde que não seja possível às autoridades americanas certificar que o milho norte-americano é proveniente de variedades autorizadas.

Por outro lado, se até agora a utilização de OGM’s e o debate sobre esta matéria tem incidido apenas em questões ambientais como a resistência aos insectos e aos herbicidas, a utilização de variedades de milho transgénico tenderá a assumir uma diversificação crescente, incidindo na composição e na qualidade do grão, como os teores em amido, óleo e proteínas, com potencial interesse para a alimentação animal, designadamente o aumento do teor em lisina, a melhoria da digestibilidade do fósforo pelos monogástricos e uma maior digestibilidade das forragens pelos ruminantes.

Seja apenas por razões ambientais ou de melhoria da qualidade do grão, a utilização de produtos OGM’s em condições de segurança para a saúde pública e animal, poderá contribuir para a redução de custos e melhorar a competitividade dos produtos, cada vez mais inseridos em mercados globalizados à escala mundial. Tendo como missão satisfazer as necessidades dos seus clientes e actuando no rigoroso cumprimento da Lei, a indústria nacional de alimentos compostos saberá estar à altura das suas responsabilidades, oferecendo ao mercado alimentos seguros e isentos de risco e actuando de forma a preservar e a promover a saúde animal, com reflexos positivos na segurança dos consumidores.

Jaime Piçarra
Engenheiro Agrónomo
Assessor da IACA – Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais


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