Fogos deixam mais de metade dos “solos florestais” portugueses em risco de erosão

Todos os anos milhares de hectares de floresta portuguesa sofrem com o flagelo dos incêndios, deixando os solos com um rasto negro – de destruição e sem vida. Fatores que poderiam ser invertidos, caso houvesse uma rápida intervenção por parte dos atores políticos e de gestão territorial. Esta é a conclusão a que um grupo de investigadores da Universidade de Aveiro chegou, ao debruçar-se sobre o aspeto do território continental e construir um mapa de risco de erosão do solo português.

Um grupo de investigadores do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar, do Departamento de Ambiente e Ordenamento da Universidade de Aveiro, desenvolveu um mapa de risco de erosão do solo, após incêndio, para Portugal Continental.

O trabalho culminou numa ferramenta que identifica áreas prioritárias para mitigação dos impactos dos incêndios na erosão do solo, como explicou Ana Rita Lopes, uma das investigadoras ligadas ao projeto.

“Este mapa permite identificar o potencial que existe nas áreas com maior risco de erosão em Portugal Continental. São identificados vários cenários, onde foram aplicadas várias bases de dados e níveis de severidade. E isto vai ser fundamental, a partir deste risco de erosão, para atuar e prevenir casos em que ocorrem incêndios florestais nessa zona”.

O mapa serve como sinal de alerta, numa altura em que os extremos climáticos estão cada vez mais presentes num globo em rápida mudança.

Este estudo assinado pelos investigadores do Projeto FEMME, Joana Parente, António Girona-García, Ana Rita Lopes, Jan Jacob Keizer e Diana Vieira já foi publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, e revela que, em condições de elevada severidade de incêndios, a zona Centro-Norte do país revela um risco muito elevado de erosão do solo.

Para este facto contribuem a topografia, o regime de precipitação e o tipo de vegetação característico.

Coincidentemente, a zona Centro-Norte do país também é uma das que apresentam maior recorrência de incêndios e, ao mesmo tempo, providencia serviços de ecossistemas importantes para o país, inclusive serviços ligados à quantidade e qualidade da água para fins de consumo humano, sublinhando a importância de uma gestão de fogos rurais que integra a prevenção, o combate e o restauro pós-fogo.

É certo que os incêndios rurais são um fenómeno recorrente em Portugal. Um problema complexo que possui uma dinâmica com múltiplas vertentes, entre as quais os fatores ambientais, sociais, económicos e políticos.

Entre os vários impactos ambientais causados pelos incêndios rurais estão o restabelecimento e a repovoação da fauna e da flora, mas principalmente a recuperação dos danos causados ao solo, que em conjunto com a combustão da vegetação causam a erosão acelerada.

Ana Rita Lopes explica que, após um incêndio e agora sem vegetação, a chuva, ao cair diretamente no solo, muitas vezes com forte intensidade, provoca o efeito de lixiviação, arrastando na água praticamente todos os nutrientes que sobram após o incêndio.

“As folhas e as plantas funcionam como guarda-chuva do solo. Se esse coberto vegetal fica completamente destruído, vai deixar de intercetar as gotas de chuva. Quando a chuva é muito intensa, o solo não tem tempo de filtrar, ou quando está muito seco não há tempo de infiltração e as características do solo não permitem a infiltração, faz com que a água se acumule à superfície, escorra e arraste os sedimentos e a camada protectora do solo (…) potenciando o impacto destrutivo.”

Além de os fogos contribuírem para a perda de solo, que é um recurso natural não-renovável, os impactos da erosão após os incendios aumentam a suscetibilidade a inundações, danos em infraestruturas hidráulicas e rodoviárias, assoreamento em barragens e contaminação de cursos e massas de água pelo transporte de sedimentos e cinzas.

O transporte de cinzas e sedimentos para grandes massas de água tem sido reportado como relevante, não só em Portugal, mas também noutras partes do mundo. Como tal, a mitigação do risco de erosão deve ser feita antes da ocorrência das primeiras chuvas após o incêndio, especialmente em áreas onde este risco é elevado. Contudo, isso não acontece com a rapidez considerada eficaz para a recuperação e rejuvenescimento do manto florestal, devido a “burocracias democráticas” , refere a investigadora da Universidade de Aveiro.

“Porque existe muito processo democrático, em entidades públicas que financiam a proteção do solo. E muitas vezes essas medidas, quando são aprovadas para serem implementadas ou quando é entregue o trabalho para implementar essa medidas, já decorreram dois ou três anos após incêndio. Claro que não faz sentido aplicar estas medidas dois ou três anos após incêndio”, afirma Ana Rita Lopes.

Contrariamente aos EUA e à Galiza, em Portugal a aplicação de medidas para a mitigação do risco de erosão pós-fogo costuma ser demorada e limitada a algumas áreas ardidas. Sendo este facto frequentemente justificado pela falta de ferramentas de diagnóstico que permitem identificar áreas de elevado risco de erosão.

Neste contexto, o projeto FEMME, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolveu o mapa de risco de erosão pós-fogo de Portugal Continental, para fazer face às potenciais dificuldades de tomada de decisão após incêndio, tendo como objetivo principal a criação de uma ferramenta de apoio à gestão pós-fogo, bem como cada vez mais um sinal de alerta.

Este mapa foi obtido aplicando o modelo Morgan-Morgan-Finney (MMF) para áreas florestais dominadas por Eucalipto e Pinheiro e ainda áreas de mato.
Portugal, território desigual

Quando olhamos para o território continental, no seu todo, verificamos que existe um coberto vegetal muito diferenciado e muito superior na região centro-norte, comparativamente à região abaixo do Tejo.

Tradicionalmente, há uma tendência para pensar que é na zona mais a sul, a mais quente e com menos acesso á água nos solos, que a associação à erosão do solo será mais abundante. Mas existem outros factores que podem contrariar esta leitura.

Durante o início do século XX, na região alentejana, predominantemente plana, privilegiou-se as culturas de sequeiro com acesso a solos pobres e grandes latifúndios e uma economia agrícola assente na cultura extensiva dos cereais, com destaque absoluto para o trigo, conjugada com a do olival, do montado de sobro (cortiça), ou do arroz nas zonas de regadio junto aos grandes rios Tejo e Sado.

Culturas que davam aridez aos solos, com muito pouca expressão de zonas florestais, sendo apenas algumas destas regiões povoadas por vastas plantações de sobreiros, tipicamente mediterrânicas e adaptadas a solos com pouca água.

Contrariamente, nas zonas mais a norte e no centro, a paisagem apresenta-se com um crescente declivoso e mais húmido, dando oportunidade ao crescimento de outro tipo de vegetação mais arbóreo e menos prático para culturas intensivas, privilegiando-se a cultura do pinheiro e, mais recentemente, uma reflorestação com eucalipto.

Com a evolução civilizacional, o interior do país deixou de ter a atratividade e o potencial humano e produtivo, levando a que estas vastas áreas deixassem de ter o cuidado e limpeza que era feito de modo natural pela população.

Com muitos dos hectares “desprotegidos”, as florestas tornaram-se num forte alvo de incêndios, quer por incúria, quer por outros motivos. E as alterações climáticas não vieram para ajudar. Motivos que ainda hoje persistem e são justificação para uma fraca intervenção de preservação.

É precisamente a pensar no futuro, mostrando o presente, que este mapa de risco de erosão pós-fogo para Portugal Continental, face às potenciais dificuldades de tomada de decisão após incêndio, tem como objetivo principal a criação de uma ferramenta de apoio à gestão pós-fogo. Revela fragilidades, tendo em vista criar desde já um melhor ordenamento territorial e voltar a criar condições de habitabilidade para flora e fauna.

Veja a reportagem na RTP.


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