avião pesticidas

Pesticidas: guerra aberta na Europa sobre um perigo invisível

De um lado, o “complexo agro-industrial”, como lhe chama o próprio vice-presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans. Do outro, milhões de cidadãos empenhados em combater uma das grandes ameaças à biodiversidade. Esta é a batalha política do momento em Bruxelas: deve, ou não, haver uma redução obrigatória de 50% no uso de pesticidas químicos?

Hugo Zina só teve tempo de correr. Estava na África do Sul, a fazer um levantamento biológico num campo de cereais. No céu, sem aviso, estava um avião a pulverizar o campo com um pesticida qualquer, que nem a tarimba de biólogo lhe permitia reconhecer. De repente, viu-se obrigado a entrar no carro para se proteger. O trabalho foi interrompido, para sempre.

Voltou no dia seguinte, e no outro. A sua missão, que era monitorizar as aves naquela zona, ficou de repente (e tragicamente) mais fácil e também mais urgente do que nunca. “Impressionou-me muito a consequência do que aconteceu. Basicamente, tudo o que era macro, principalmente aves, desapareceu. Não se ouvia nada. Os invertebrados, os insectos — todo o tipo de insectos — vieram ao cimo da terra e morreram. Aquilo ficou um deserto autêntico.”

Foi nesse momento que Hugo decidiu deixar de ser biólogo. Não lhe bastava observar, medir, quantificar, “ser uma roda na engrenagem”. Tinha na cabeça uma vontade de fazer qualquer coisa que contrariasse a lógica do que viveu na África do Sul. Foi para a Alemanha, fazer voluntariado, e lá conheceu Theresa Sabo, que fazia um mestrado em Agricultura Biológica. A ideia tornou-se mais clara. Hugo, de 36 anos, e Theresa, de 35, casaram-se e vieram morar para uma quinta, vizinha do paul de Tornada, a poucos quilómetros das Caldas da Rainha. Ali fundaram a Horta do Pé Descalço, em 2017. Têm uma regra: “Nós praticamos a não-agressão.” Palavra de biólogo: “Não é preciso aplicar pesticidas.”

“Sou o primeiro a concordar que tudo deve ser protegido, sobretudo as pessoas. E tenho interesse nisso, porque sou o primeiro a levar os meus produtos para casa e a comê-los”, explica, com lógica, Ildefonso Cabaníllas Corchado. Encontramo-lo em Badajoz, na sede da UPA, a associação de pequenos agricultores da Extremadura espanhola. Ildefonso produz tomate, nos campos irrigados pela rede fluvial do Guadiana. “Estamos a lutar com armas desiguais. A palavra ‘lucro’, na agricultura, já não existe…”

Nestas contas difíceis, em que a sobrevivência dita regras, Ildefonso não concebe a ideia de produzir sem pesticidas químicos. Mesmo com pesticidas, o negócio piora de ano para ano. “Antes, com dois ou três produtos, tínhamos tudo sob controlo. Agora, precisamos de fazer várias combinações de pesticidas, o que torna tudo mais caro, porque o novo produto é mais caro do que o anterior, e depois tem de ser complementado com outros para ter o mesmo efeito, pelo que é duas vezes mais caro. É praticamente como se as pragas já tivessem um escudo…”

Não surpreenderá ninguém que estes dois agricultores ibéricos, de gerações diferentes, vejam a intenção da Comissão Europeia de impor uma redução de 50% no uso de pesticidas agrícolas até 2030 de formas diferentes. Antagónicas, até. O regulamento sobre o uso sustentável de pesticidas (SUR) será a primeira lei vinculativa a sair da estratégia da União Europeia (UE) que visa tornar a agricultura europeia verde e sustentável (chamada “do prado ao prato” ou F2F, na abreviatura inglesa de “farm to fork”).

Guerra, um antes e depois

A mesma linha que separa estes dois agricultores divide Governos e comissários. Cria também um fosso entre as preocupações dos ambientalistas e a defesa dos interesses daquilo a que o neerlandês Frans Timmermans, que é o responsável europeu pelo Pacto Verde e vice-presidente da Comissão Europeia, chama “complexo agro-industrial”.

Não restam dúvidas de que a produção agrícola, industrial, e o uso de pesticidas são responsáveis por uma crise profunda que está a dizimar populações de animais e a mudar a forma como vivemos. O problema está em saber o que deve ser feito.

Nada explica melhor esta tensão política do que a própria história recente desta lei. A França assumiu a presidência da UE no início deste ano. No seu programa, declarou que iria “promover iniciativas para acelerar a transição agro-ecológica e assim reduzir a utilização de pesticidas”.

Poucos dias depois, foi publicado um estudo, da Universidade de Wageningen (Países Baixos), que foi financiado pela CropLife, o lobby das empresas produtoras de pesticidas, que concluiu que as políticas de redução de pesticidas na Europa “resultarão numa diminuição dos volumes produzidos por cultura em toda a UE, em média de 10% a 20%, e que os preços do vinho, azeitonas e lúpulo aumentarão”. Isto levaria, segundo esse estudo, a uma diminuição das exportações da UE, e a uma potencial duplicação das importações.

Ainda em Janeiro, uma declaração conjunta de 19 organizações representativas dos agricultores e da indústria química apelava, entre outras coisas, à tecnologia inteligente e à transformação digital para alcançar os objectivos da estratégia F2F, e para garantir que os pesticidas não sejam proibidos até que existam alternativas. A campanha mediática e de pressão política estava no auge. Mas o momento decisivo, que fez crescer ainda mais a oposição à redução de pesticidas, pareceu um acaso.

A 24 de Fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia. Sentindo a pressão crescente, alimentada pela guerra — e pela interrupção na produção e venda de cereais — o comissário agrícola polaco Janusz Wojciechowski informou os eurodeputados sobre os próximos passos que o executivo da UE pretendia dar para fazer face ao impacto da guerra. “Agora precisamos de parar o processo, suspender o processo”, disse o comissário, respondendo a uma pergunta do eurodeputado de centro-direita Herbert Dorfmann, sobre o que a Comissão tencionava fazer com “certos actos legislativos que poderiam questionar a segurança alimentar, por exemplo, a directiva sobre pesticidas”.

Emmanuel Macron — que estava numa difícil campanha eleitoral em que enfrentava uma candidata de extrema-direita defensora do uso de pesticidas — disse, numa conferência de imprensa, que a política europeia da estratégia F2F, que ele próprio defendeu, se baseia num mundo “antes da Guerra na Ucrânia”, e que poderia resultar numa “redução de 13% na produção”. Marine Le Pen, em campanha eleitoral no departamento de Loiret, prometeu denunciar o programa europeu: “Terá a consequência de reduzir a produção agrícola europeia em 10% a 20%, o que é um absurdo total numa altura em que estamos a correr atrás da soberania alimentar”, disse.

A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decidiu adiar a apresentação da lei de redução dos pesticidas. Mas 41 eurodeputados escreveram uma carta a expressar o seu “profundo desapontamento e indignação com o adiamento da proposta de reforma da directiva sobre a utilização sustentável de pesticidas, que deveria ter sido publicada esta quarta-feira, 23 de Março de 2022”.

Frans Timmermans tentou resistir à pressão: “Aqueles que logo de início não gostaram da F2F usaram [agora] a guerra como pretexto para voltarem à sua antiga posição e tentarem impedir a F2F de acontecer.” A resposta não tardou. Numa conferência de imprensa, Christiane Lambert, co-presidente da COPA-Cogeca, a principal federação agrícola europeia, qualificou as observações de Timmermans como “desonestidade intelectual”. “E acuso-o de ser desumano, por ser egoísta, por apenas olhar para os europeus e não para os cidadãos do mundo”.

Na entrevista que nos concedeu para este trabalho, o vice-presidente da Comissão reage a estas declarações. “Pergunto-me porquê este nível de agressão contra mim. Será por eu ter razão?”

Apelo ao medo

Sem a obrigatoriedade da redução, que Frans Timmermans quer impor, os pesticidas continuarão a ser usados, da mesma forma que no passado. A prova disso é o efeito nulo da directiva da UE de 2009 que apelou a uma redução acentuada da sua utilização, mas sem metas obrigatórias. Timmermans concorda que os objectivos não-vinculativos “não nos levam a lado nenhum”.

Este processo mostra como os governos nacionais actuam, por vezes, como representantes exclusivos dos interesses das suas associações de agricultores. Em França, o ministro da Agricultura do primeiro Governo Macron estava tão próximo da federação nacional de agricultores que o chefe daquela federação até o elogiou no Twitter como “bom porta-voz da causa”. Em França, o antigo chefe de gabinete do ministro da Agricultura, Marc Fresneau, juntou-se recentemente ao lobby nacional dos fabricantes de pesticidas como chefe de relações públicas.

O lobby que ataca a F2F fala de uma crise alimentar, apesar de a UE ser um exportador líquido de alimentos. O seu principal argumento é a perda de alimentos devido à invasão russa, mas, de acordo com dados da FAO, nenhum dos estados da UE se encontra entre os 50 primeiros países mais dependentes das importações russas e ucranianas. “O que a indústria agro-química e os grandes negócios agro-industriais estão a fazer é alarmismo. É completamente falso e injustificado que haja escassez de alimentos. Eles querem usar a guerra para os seus próprios interesses de lobby, querem apelar aos medos das pessoas”, critica Gergely Simon da Rede de Acção contra os Pesticidas e Greenpeace.

O lobby dos pesticidas não tem sido poupado nos seus gastos em Bruxelas. De acordo com a base de dados da UE, a Bayer tem o orçamento mais elevado, mais de 4,250 milhões de euros por ano. Apenas o Google, Facebook, e Microsoft têm gastos anuais com lobbying mais elevados.

As grandes empresas também formam várias organizações, conjuntas, para tornar a sua pressão ainda mais intensa. As mais importantes são a CropLife (que, como vimos, financia estudos universitários) e a Euroseeds, também com orçamentos de centenas de milhares de euros. Como explica Nina Holland, uma perita do Corporate Europe Observatory (CEO), as empresas concorrentes estão a fazer lobby em Bruxelas de uma forma unida. “Todas elas estão a exercer pressão em prol das mesmas regras pró-negócio quando se trata de avaliação de risco ou de adiamento de certas medidas. Se olharmos para estas organizações, podemos ver que a Bayer, a BASF, a Corteva e a Syngenta tendem a dominar a sua liderança”, explica Holland.

A COPA-Cogeca, a federação europeia das organizações da indústria agro-alimentar também faz lobby contra o uso sustentável de pesticidas. O secretário-geral da COPA-Cogeca, Pekka Pesonen, disse-nos que a sua organização “apoia os princípios” da redução de pesticidas. Mas, em Setembro de 2021, partilhou com os seus membros uma campanha de relações públicas montada para criar incerteza entre os parlamentares da UE sobre os efeitos da nova legislação. Ali eram identificados todos os estudos realizados por agrónomos que defendem posições próximas da indústria e até documentos criados pelo Departamento de Agricultura dos EUA.

Desde o início de 2019, como pudemos apurar, a COPA-Cogeca consultou 26 vezes os comissários ou os seus gabinetes, sobre a questão. A CropLife Europe, 12 vezes. Bayer, BASF, Syngenta e Corteva tiveram 69 reuniões, o que dá uma média de duas por mês. Não são mantidos pela UE registos de reuniões com funcionários de nível inferior.

O mistério dos dados

Com este trabalho, pudemos verificar que não é só a França que mostra ter dois discursos, totalmente contraditórios, sobre o uso de pesticidas. Portugal e Espanha, que têm ministérios poderosos para as questões ambientais, e procuram empenhar-se publicamente com posições ecologistas, estão entre os críticos da proposta de Timmermans. Não em público, mas sobretudo nas reuniões secretas do Conselho.

Mesmo sem fazerem parte do grupo de dez países que já se assumiram contra a proposta (mas não têm, ainda, peso para parar a lei no Conselho), Portugal e Espanha mostraram, recentemente, dúvidas sobre os efeitos da lei.

Em resposta às nossas perguntas, o Governo português garante estar disponível “para aprovar as medidas que venham a revelar-se efectivas alterações positivas para a regulamentação da utilização de pesticidas”. Mas há um “contudo” nesta resposta: “É necessário conhecer um conjunto de detalhes que ainda não são conhecidos — como a forma de cálculo a adoptar ou as sanções impostas aos Estados-membros que não cumpram as metas, por exemplo — para determinar uma posição final de Portugal nesta matéria.”

“Não me surpreende”, diz-nos Alexandra Azevedo, responsável da Quercus pelo tema dos pesticidas. “Enquanto outros países já têm leis que proíbem o uso de pesticidas em área urbana, Portugal não tem. Portugal é muito apetecível para a instalação de modelos de […]

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