Henrique Pereira dos Santos

Ilídio de Araújo – Henrique Pereira dos Santos

Ontem, ao fim do dia, ali no Palácio da Independência, fui à apresentação deste livro.

Cerca de 25 pessoas numa sala para a apresentação de um livro não é mau, mas apenas 15 paisagistas, praticamente todos pelo menos tão velhos como eu, na apresentação deste livro, a mim incomoda-me.

Ilídio de Araújo era um caso singular na arquitectura paisagista em Portugal, sob muitos aspectos.

Começando pelas suas origens: ao contrário da generalidade da primeira geração de arquitectos paisagistas – e, convenhamos, durante quase todo o tempo em que funcionou o curso livre de arquitectura paisagista, no ISA, totalmente assente no Professor Caldeira Cabral – que eram pessoas superiores, como Ilídio de Araújo também era, e vinham, quase invariavelmente, de boas famílias tradicionais, ao contrário de Ilídio de Araújo.

Como o próprio dizia, era filho de agricultores e o gosto pelas flores e pela vegetação vinha-lhe da mãe, não sendo indiferente o facto do seu contacto com a vegetação ter começado quando tinha a cara a menos de 40 cm do chão, o que, na sua opinião, lhe dava uma intimidade muito maior com esse mundo que a que alguma vez teria quem começasse a olhar para as plantas com os olhos a um metro e meio do chão.

Quando eu estava no curso, Ilídio de Araújo era uma espécie de mito longínquo, o único que estava lá para o Porto (na verdade, algum tempo depois, havia um segundo arquitecto paisagista, Manuel Ferreira, muito mais novo), num certo isolamento que sempre cultivou, e muito associado à história da arte dos jardins.

Explicou-me mais tarde que essa ideia resultava de um equívo

co – o facto de por acaso o único livro que tinha publicado ser “Arte paisagista e arte dos jardins em Portugal” – que tinha resultado de um conjunto de circunstâncias fortuitas.

Ele próprio entendia que essa área da profissão que se lhe tinha colado não era, sequer, das que mais lhe interessavam e em que mais trabalhava. Isso não o impedia de ser o melhor nessa área, acrescento eu. Era, no entanto, uma fama injusta e que o diminuía, na sua própria opinião, mas era assim que olhávamos para ele, quando eu estudei no fim dos anos setenta, princípios dos anos 80.

Mais tarde, quando trabalhei com Ilídio de Araújo, percebi bem como era redutora a imagem que tinha criado dele durante o curso, sendo das pessoas com quem mais aprendi sobre paisagens, de uma maneira a  que provavelmente livro nenhum fará justiça: a capacidade para ler a paisagem, in situ – do Noroeste de Portugal, em especial, mas qualquer outra – era assombrosa.

Trabalhar com Ilídio de Araújo estava muito, muito longe de ser fácil, embora eu não tenha muita autoridade moral para fazer comentários sobre essa matéria. Nem mesmo o facto de o meu sogro ter sido seu colega no liceu de Braga e, mais tarde, em Agronomia, unindo-os pelo menos a condição de exilados minhotos em Lisboa, filhos de pequenos agricultores, facilitava a relação profissionalmente tensa e pessoalmente civilizadíssima.

A grande quantidade de interesses que tinha, a permanente curiosidade sobre tudo o que dizia respeito à paisagem, e a dúvida permanente que o levava a estar sempre a estudar pontos de vista diferentes sobre tudo, fazia com que muitos dos que trabalhavam com ele, em especial os jovens paisagistas que queriam estagiar com ele, desistissem, concluindo, acertadamente, que “o Ilídio não orienta, desorienta”, como ainda recentemente ouvi.

Sempre lhe conheci um tom amargo sobre o rumo de evolução das paisagens.

Essa característica foi-se acentuando, sendo difícil convencê-lo a falar sobre paisagens, gestão de paisagens, ordenamento, em grande parte dos últimos anos da sua vida, embrenhado nas suas interpretações sobre a proto-história e a paisagem (sempre a paisagem, e sempre a procura de entender melhor o que via).

Não admira, por isso, que quando aceitou apresentar o meu primeiro livro no Porto, em que, ao arrepio do que já era a sua atitude geral de recusa de falar sobre paisagens, aproveitou para dar uma boa lição sobre paisagens, eu tenha optado por publicar grande parte desse texto neste post da Ambio.

Ilídio tinha o dom de dizer o que queria, da maneira como queria e, ao mesmo tempo, ser percebido por toda a gente, quer se concordasse ou não, com o que dizia:

“Naquele tempo eu andava pelas nossas paisagens à procur

a de problemas; hoje fujo deles como de perturbadores pesadelos … só … me fez quebrar o voto de não mais falar publicamente de «paisagens» num país cujos governantes confundem econometristas com economistas, desenhadores com urbanistas, idiotas com doutores. E para quem os problemas das paisagens são problemas de lana caprina que nada têm a ver com a produtividade final do nosso trabalho colectivo.


o progresso técnico, a explosão demográfica, o progresso humano e social, e a globalização mundial da economia, fizeram recair sobre a Administração Pública um volume imenso de tarefas de previsão e de coordenação, que eram imprevisíveis há 60 anos – quando a ambição máxima de desenvolvimento que se propunha para cada português não passava de uma cabana, uma horta e sete palmos de terra no cemitério paroquial (emprestados por quatro ou cinco anos). Hoje qualquer idiota doutorado em contas de mercearia e mestre escola incapaz de escrever um postal sem dar uma dúzia de facadas na ortografia da sua própria língua reclama do Estado o direito adquirido a uma infinidade de serviços mais ou menos gratuitos, e de um menu de mordomias e privilégios, acrescentado com vencimentos mensais de milhões de euros”.

Tenho a certeza absoluta de ir chocar co

m muitas discordâncias, algumas repetidas das discordâncias de há quase quarenta anos, quando trabalhámos juntos, (frequentemente assentes na visão dirigista do mundo de Ilídio de Araújo por contraponto à minha visão mais liberal), no livro que comprei ontem e de que fui lendo uma coisa ou outra, mas também tenho a certeza de que não darei o meu tempo por perdido ao confrontar-me com essas discordâncias.

Do que tenho pena, e na realidade me espanta, é dos meus colegas mais novos acharem que ter a possibilidade de ler Ilídio de Araújo não valha uma ida ao Palácio da Independência, ainda para mais com a apresentação do livro por Alexandre Cancela de Abreu, ao ponto de não estar lá quase nenhum dos meus colegas mais novos.

Fazeis mal, camaradas, fazeis mal, não saber de onde se vem dificulta muito saber o que fazer no futuro, qualquer que ele venha a ser.

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O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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