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Estudo Biodiversidade 2030: nova agenda para a conservação em contexto de alterações climáticas

“Biodiversidade 2030: Nova agenda para a conservação em contexto de alterações climáticas” é um estudo português de diagnóstico e reflexão que ajuda a identificar constrangimentos e a traçar caminhos para melhorar a gestão da biodiversidade em relação com o clima, território, águas interiores e costeiras, oceanos e pessoas, a médio e longo prazo.

Traçadas em 2010 e de novo em 2020, as metas para travar o acentuado declínio de biodiversidade que se regista desde 1970 têm falhado consecutivamente. Inverter os resultados implica uma atuação diferente e não basta melhorar a política de conservação, alerta Miguel Bastos Araújo, responsável pela Cátedra de Biodiversidade na Universidade de Évora e coordenador do estudo “Biodiversidade 2030: nova agenda para a conservação em contexto de alterações climáticas”. Para alterar esta tendência, temos de trazer a conservação para os territórios da produção e consumo de bens e serviços, no domínio da sustentabilidade, sublinhou o coordenador durante a apresentação deste estudo.

Encomendado pelo Ministério do Ambiente e da Ação Climática, “Biodiversidade 2030” foi desenvolvido por uma equipa portuguesa de investigadores, entre os quais especialistas nas várias temáticas que cruzam a complexa questão da conservação da biodiversidade: Sara Antunes (tema águas interiores), Emanuel Gonçalves (mar), Rosário Oliveira (território), Isabel Susa Pinto (regiões costeiras) e Sara Santos (financiamento).

O documento reúne dados de diferentes entidades nacionais e internacionais para ajudar a traçar um cenário sólido e suportar o processo de decisão política sobre a biodiversidade, assim como delinear caminhos e reformas com vista à prossecução das metas a que Portugal está comprometido no âmbito da Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030 e da Convenção da Diversidade Biológica.

O ponto de partida desta reflexão tem, por isso, em conta uma série de compromissos entre os quais se destaca a necessidade de:

– proteger legalmente 30% da superfície terrestre e marinha (área não muito superior à que integra atualmente a rede de áreas classificadas), salvaguardando de forma estrita um terço dessas áreas (cerca de 10% do território) que correspondem a zonas com alto valor para a conservação;

– acautelar a adaptação da biodiversidade às alterações climáticas, de acordo com projeções, como a do IPCC – Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, que estima a redução da área favorável a 73-81% das espécies de vertebrados no território continental até final do século XXI;

– gerir com mais eficácia a biodiversidade nas áreas classificadas;

– restaurar populações e ecossistemas naturais, incluindo os que desempenham um papel proeminente na captura e armazenamento de carbono;

– financiar adequadamente a conservação e restauro, o que implica a mobilização de cerca de 20 mil milhões de euros a nível europeu, montante a que corresponde um contributo anual português de 260 milhões de euros.

O estudo “Biodiversidade 2030: Nova agenda para a conservação em contexto de alterações climáticas” faz também diagnóstico dos constrangimentos a ultrapassar para alcançar estas metas. Entre eles, identifica seis principais pontos fracos:

  1. dificuldade no acesso a dados (dispersão de informação) essenciais para caracterizar as tendências e vulnerabilidades da biodiversidade;
  2. não consideração nas políticas de conservação, económicas e fiscais das ameaças que resultam dos efeitos das alterações climáticas e da perda de biodiversidade;
  3. prevalência de uma gestão passiva da biodiversidade, que limita a capacidade de manutenção e restauro dos ecossistemas (temos uma tradição regulatória forte, mas fraca tradição de iniciativas de gestão ativa);
  4. fraca articulação e convergência sectorial e interministerial, que limita a eficácia da aplicação concertada de fundos públicos, o que acaba por se traduzir em utilizações ineficientes e por vezes perversas dos valores disponíveis;
  5. escassa capacitação e experiência dos atores locais na gestão ativa do capital natural, o que limita a capacidade de atuação no território;
  6. subfinanciamento crónico de políticas públicas de conservação e limitado envolvimento do sector privado no financiamento de iniciativas de proteção da biodiversidade.

Em paralelo, “Biodiversidade 2030” indica um conjunto de oportunidades que Portugal não deve desperdiçar para melhorar a conservação da biodiversidade, potenciando os restantes serviços do ecossistema que a acompanham e maximizando a mitigação dos efeitos das alterações climáticas. Neste sentido, propõe um conjunto de soluções práticas sem as quais alguns dos constrangimentos identificados dificilmente poderão ser ultrapassados.

A criação de um sistema nacional de informação centralizada sobre biodiversidade é uma das soluções. O estudo defende um sistema que integre bases de dados europeias e internacionais, com standards uniformizados, e a colaboração de vários parceiros, incluindo iniciativas similares já postas em prática, como é o caso da Global Biodiversity Information Facility (GBIF).

Outra solução é a criação de uma equipa de monitorização das metas traçadas para a biodiversidade após 2020. Caberá a esta equipa definir os indicadores de progresso que permitam conhecer os resultados do que está a ser feito, pois só com esta mensuração será possível rever e ajustar as medidas para ir ao encontro das obrigações e metas assumidas.

A revisão das prioridades contantes nas metas definidas na Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade 2030 (ENCNB 2030) é outra das necessidades, uma vez que esta estratégia já foi aprovada em 2018. As suas prioridades devem ser revisitadas e ajustadas à luz dos compromissos da Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030 e dos futuros compromissos da Convenção da Diversidade Biológica, que estão a ser definidos (em 2022) e em breve serão assumidos.

Entre as propostas patentes em “Biodiversidade 2030”, está ainda a criação de um grupo de trabalho luso-espanhol que faça a articulação da política de conservação à escala ibérica. A biodiversidade não tem nacionalidade nem limites fronteiriços, pelo que as reformas a fazer devem ser coordenadas dentro e nas zonas de fronteira, especialmente no contexto das alterações climáticas, em que há mais pressão para uma atuação coerente.

A par destas soluções, o estudo resume nove reformas mais estruturais e necessárias para gerar resultados que coloquem Portugal no caminho dos objetivos da biodiversidade traçados a médio e longo prazo:

  1. Criação de uma Estrutura de Adaptação Climática da Biodiversidade (EACB), que ajudará a concretizar o objetivo da conservação de 30% do território.
    Com a implementação desta estrutura poderá haver necessidade de uma reforma legislativa, que integre e torne mais claros os diferentes regimes jurídicos que existem atualmente e que foram alvo de múltiplas revisões, conciliando as vertentes legais da conservação (que cabe ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), do território (Direção Geral Território) e da água (Agência Portuguesa do Ambiente).
  2. Reforço do nível de proteção das áreas classificadas com vista a uma cobertura total de 10%.
    Estes 10% correspondem a áreas de conservação estrita, onde se devem excluir atividades extrativas e manter apenas as atividades humanas de muito baixo impacte. Em terra, e de acordo com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, estas áreas constituem apenas 0,17% de Portugal continental, uma percentagem muito aquém da necessária. Embora aumentá-las possa ser complexo – a maioria deste território é privado –, há variadas formas de o fazer: através da reconversão de terrenos públicos de uso florestal, da renaturalização de territórios devolutos (abandonados) no interior, da aquisição de áreas privadas de alto valor natural pelo Estado e envolvimento de privados, da classificação de áreas protegida privadas (já em curso), e da contratualização da gestão com objetivos de conservação (contratos-programa com privados).
  3. Definição de planos de gestão ativa e adaptativa.
    Pela complexidade da realidade, a que se soma a incerteza trazida pelas alterações climáticas, a gestão ativa e adaptativa implica um processo longo e iterativo de teste de hipóteses e revisão regular das medidas de gestão no terreno. Isto implica planos e objetivos de longo prazo (10 a 30 anos) e requer uma flexibilidade que não se compatibiliza com a legislação vigente.As áreas classificadas precisam, assim, de ser apoiadas por uma nova visão e enquadramento legal, que considere planos de gestão com objetivos claros, definição de medidas para os alcançar, indicadores para avaliação de resultados, assim como monitorização, fiscalização e vigilância.
  4. Aprofundamento da cogestão das áreas classificadas.
    Os atuais modelos de cogestão precisam de ser revistos para se ultrapassarem múltiplos bloqueios, incluindo a inexistência de personalidade jurídica e orçamento próprio, assim como a rigidez da sua formação (por decreto), que impedem a capacidade de uma gestão efetiva. Em termos de governança, importa que os modelos de cogestão tenham uma clara separação de poderes – nomeadamente entre quem executa e quem avalia – para que não haja conflito de interesses.
  5. Restauro de ecossistemas de águas interiores.
    As águas interiores são os ecossistemas mais ameados do mundo. Em Portugal estão identificados como estando em estado “mau, medíocre ou razoável’ de conservação 2416 quilómetros de linhas de água dentro do Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC) e 408 quilómetros em áreas de refúgio climático. É uma vasta área que deve beneficiar de programas de restauro ecológico, e que, pela sua importância, deve ser alvo de atuação prioritária. Em paralelo, é necessária uma gestão ativa que evite a degradação das linhas de água que estão em “bom estado ou excelente”, com 2839 quilómetros dentro do SNAC e 309 quilómetros em refúgios climáticos. Outra medida importante é proceder ao desmantelamento de barreiras obsoletas existentes em cursos de água (barragens desativadas, por exemplo). 50% destas barreiras estão também localizadas em áreas classificadas.
  6. Restauro de ecossistemas marinhos.
    É necessária mais informação científica sobre estes ecossistemas, pois ela é escassa em Portugal, mas não existem dúvidas sobre a sua importância, reforçada pelo papel que desempenham no ciclo de carbono (enquanto sumidouros de carbono). O conhecimento mais abrangente e disponível diz respeito às zonas costeiras – sapais e pradarias de ervas marinhas por exemplo – e é nele que, numa primeira fase, se devem focar os programas de restauro ecológico.
  7. Implementação do princípio do utilizador-pagador nas áreas protegidas portuguesas.
    Em Portugal não há esta tradição, mas o pagamento pela manutenção das áreas protegidas poderia significar entre 40 e 100 milhões de euros por ano, uma importante receita para financiar a conservação da biodiversidade no nosso país. A implementação deve ter em conta regras específicas que se adequem aos contextos diferentes que existem nestas áreas, evitando a criação de conflitos e injustiças – duplicação de tributações, por exemplo – e o valor deve ser integralmente canalizado para a conservação e não para a gestão corrente destas áreas, com total transparência.
  8. Criação de mercados de créditos de biodiversidade.
    Quem cria capital natural deve ser beneficiado e quem o delapida deve ser onerado. Isto pode ser implementado pela criação de mercados de biodiversidade e formalizado em Portugal através de uma plataforma virtual na qual são registadas, realizadas e pagas todas as transações.
  9. Introdução de mecanismos de fiscalidade verde.
    A dinamização dos mercados de crédito implica uma reforma da fiscalidade verde. A ótica de neutralidade fiscal deve prevalecer, criando apetência para que quem gere a biodiversidade e seja “criador” de créditos os possa vender a operadores que têm necessidade ou interesse em adquiri-los, sejam privados que precisem de compensar a sua atuação ou fundos de investimento que queiram investir para revender. Para que toda esta vertente financeira funcione, será necessário criar um “banco biológico”, promovendo a existência de uma entidade pública que faça a gestão deste mercado.

Acompanhe a apresentação do estudo “Biodiversidade 2030: Nova agenda para a conservação em contexto de alterações climáticas” num vídeo com o seu coordenador, Miguel Bastos Araújo, ou leia-o integralmente em Research Gate (pode também descarregá-lo aqui em formato PDF).

O artigo foi publicado originalmente em Florestas.pt.


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