João Távora pediu-me que reproduzisse um texto que escrevi em 2016 (note-se, antes dos fogos de 2017), com o título acima. Já ontem, António Costa (o jornalista do ECO, não o outro) fez um tweet ligando para um outro texto que escrevi em 2017 (Eucaliptocratas, diz ele). E eu tenho estado com vontade de reproduzir um outro que fiz (Antes cabras que aviões).
A lógica do João é a de que não sabe se toda a gente tem acesso ao artigo original que o João acha que vale a pena lembrar agora.
Aqui vai o texto, lembrando que entretanto o slogan “Portugal sem fogos depende de todos” já foi abandonado, um bom indício de que as coisas mudam, lentamente, mas mudam. Embora nalgumas cabeças o slogan continue bem vivo, começam a ser minoritárias entre quem toma decisões nesta matéria.
A versão que publico aqui é a que está nos arquivos do meu computador (e eu sou muito desorganizado), pode ter discrepâncias em relação à versão que foi publicada no Observador, nomeadamente a correcção do erro de português que me envergonha de cada vez que leio o texto (os meus amigos ambientalistas anti-eucalipto radicais, que acham que o fogo beneficia a indústria do eucalipto, passam a vida a reproduzir este texto como demonstração da minha submissão aos interesses do fogo e do eucalipto. Não é que sejam todos estúpidos, admito que alguns nunca tenham lido mais que título).
““Portugal sem fogos”, uma ideia criminosa
“Portugal sem fogos depende de todos” é um dos mais perniciosos slogans de uma política pública.
Há a convicção generalizada de que como os fogos não são de geração espontânea e como não têm origem em causas naturais deixaremos de ter fogos em Portugal, ou pelo menos situações dramáticas, por vezes trágicas, associadas aos fogos resolvendo o problema da negligência e do fogo posto.
Será útil, para ganhar distância e podermos falar de fogos racionalmente, olhar para a dramática situação dos fogos vivida há pouco tempo nos Estados Unidos. A situação atingiu uma gravidade suficiente para levar Obama a declarar o estado de emergência no estado de Washington e a Austrália e a Nova Zelândia a mandar bombeiros para ajudar os EUA.
O que esta situação demonstra é que em condições meteorológicas extremas arde em qualquer parte, desde que haja combustível. As explicações habituais sobre o número de ignições, sobre a incompetência portuguesa em matéria de ordenamento florestal, sobre as espécies autóctones e todas essas explicações habituais deixam de fazer sentido numa situação como a dos Estados Unidos. E, no entanto, a situação saiu completamente de controlo, tendo inclusivamente levado à morte de alguns bombeiros.
É verdade que Portugal é dos sítios em que mais arde no mundo, o que muita gente não entende por achar que nas zonas de clima mais seco e quente deveria arder mais. Esta convicção resulta da confusão habitual entre clima e meteorologia.
O que verdadeiramente determina a posição especial de Portugal nas estatísticas de fogo é uma combinação de clima ameno, na transição entre o Mediterrâneo e o Atlântico, que é responsável por uma das mais elevadas produtividades primárias da Europa – isto é, os matos crescem muito – com fenómenos meteorológicos extremos, de maneira geral associados a períodos de vento Leste ou Nordeste, muito quente e seco (ou frio e seco no Inverno, situação que também provoca dias de muitos fogos e bastante área ardida, como já aconteceu em Novembro, por exemplo).
Esta combinação é a mesma que faz da Galiza a área onde se concentram mais de 50% dos fogos de Espanha, apesar de estar longe de ser a zona mais quente e seca de Espanha.
E em todo o mundo desenvolvido a evolução da produção agrícola e pecuária tem favorecido a acumulação dos matos que antes eram usados para aquecimento, para estrume e para a pastorícia.
Aqui chegados, compreendendo que cada êxito no combate a um fogo é mais um passo para o desastre futuro, ao favorecer a acumulação de combustível, talvez fosse tempo de abandonarmos completamente a ideia peregrina (por errada e por impossível) de um Portugal sem fogos.
A opção não está entre ter fogos ou não ter fogos, a opção é ter fogo selvagem e incontrolado, totalmente dependente de condições meteorológicas extremas que não controlamos, ou termos fogos que são um instrumento de gestão de combustível que nos permita gerir a situação da forma socialmente mais útil possível.
Há anos que nos EUA a política dos serviços florestais se alterou radicalmente e à política de supressão do fogo seguiu-se uma política de gestão do fogo, bem resumida num comentário informal de Paulo Fernandes sobre o assunto, feito já há alguns anos num blog: “A designada política do “deixa arder” era oficialmente designada como “prescribed natural fire” e, mais recentemente, “wildland fire use”. Consiste em deixar arder os incêndios, geralmente de origem natural, desde que não ameacem bens/ infraestruturas e desde que ardam em condições que satisfaçam os objectivos de gestão do território. Para ter uma ideia da importância deste “deixa arder” nos EUA diga-se que é superior à área de fogo controlado, que por sua vez é a principal actividade do Forest Service. Poderia esta política ser adoptada, aliás adaptada, para a Europa? Não tenho a menor dúvida de que sim. Aliás, ela já é involuntariamente praticada em Portugal (nas épocas do ano em que a prontidão do dispositivo de combate é menor)”.
Esta opção, por si só não chega para resolver o problema, com este Verão tem demonstrado nos EUA.
Aliás vale a pena realçar que finalmente a pastorícia foi reconhecida em Portugal como uma operação de gestão de combustíveis nos instrumentos de apoio ao mundo rural, no PDR 2020.
Mas seria um passo na direcção certa abandonar de vez a ideia de um Portugal sem fogos, de supressão de todos os fogos em quaisquer circunstâncias, na fase mais precoce possível.
Há anos que esta é a doutrina dominante, mas dois dias de vento Leste fraco deram uma pálida imagem do que será a catástrofe a que nos conduzirá esta opção quando voltar a haver, como em 2003, dez a quinze dias de vento Leste forte a muito forte.
O facto de haver muitos anos em que essas condições se verificam muito raramente não nos deveria fazer esquecer que podem acontecer em qualquer ano.
E nessas condições meteorológicas, com o combustível acumulado que temos hoje nas nossas paisagens, a probabilidade de escapar de uma tragédia é baixíssima.”
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.