Manuel Ferreira deita água sobre um monte de carvão ainda fumegante, onde antes havia lenha. Depois de uma noite sem pregar olho, ainda não dá para descansar e, se calhar, “não se consegue descansar nunca mais”, vaticinou a sua mulher.
Manuel Ferreira, de Ribeira de Ansião, no concelho de Pombal, está por cima de um monte de carvão a deitar água com uma mangueira. O corpo está cansado, depois de uma noite inteira com o coração nas mãos.
“Pensava que não era preciso mais lenha para o resto da vida, com a lenha que aqui tinha. Mas, afinal, enganei-me”, disse o homem de 63 anos, que ainda não foi à cama e que lamentou as 11 ovelhas que perdeu com a passagem do fogo por aquela aldeia.
A mulher, com os olhos vermelhos, disse que não dá para ter ainda “nenhum descanso”.
“Pode voltar a acender. Nunca se sabe”, afirmou à agência Lusa Dulcemina Ferreira, enquanto dá graças por os bombeiros terem aparecido para combater as chamas que reduziram a lenha do casal a um monte de carvão e cinzas.
“Se não fossem eles, a casa tinha ido”, garantiu. Nunca tinha visto um incêndio passar por Ribeira de Ansião.
“Nós sofremos um bocado e vamos continuar a sofrer. Agora, para o resto da nossa vida, já temos a cabeça um bocado ‘coiso’. Acho que a gente não consegue descansar nunca mais”, desabafou.
Ali perto, mas já no concelho de Ansião, em Mogadouro de Baixo, a agência Lusa encontrou Mário Valente, de lágrimas nos olhos, a tentar digerir o choque de ver a casa da sua mãe completamente ardida.
“Ainda tentei vir às 19:00 [de terça-feira], mas a polícia não me deixou passar”, afirmou, referindo que a sua mãe já não estava a viver na casa – mudou-se recentemente para a casa de uma filha – mas que ainda no domingo tinha lá estado com ela.
“Agora, só ficam as memórias. De resto, não há cá nada”, disse.
Ainda no domingo, recordou que esteve com fotografias de família na mão e a sua mãe, sem antever o incêndio, lá lhe pediu para levar duas “recordações de quando era pequenito”.
“Os quadros do meu pai, as fotografias, as roupas da minha mãe. A casa estava cheia e agora não há nada”, vincou.
Apesar de ter chegado a Mogadouro de Baixo preparado para o que ia ver, continua a ser “difícil”.
“A gente vê os outros na televisão, mas quando nos vemos assim, o nosso sangue, o sítio onde se nasceu e as raízes que correm dentro de nós, tudo destruído, não é igual. É totalmente diferente”, frisou.
Almerinda Luís, também daquela aldeia, acabou por ser retirada por uns amigos para Pombal, quando o incêndio já se aproximava da sua casa.
“Sou doente, diabética, como é que ia apagar o fogo?”, perguntou a mulher de 80 anos, que não se lembra de algum dia ter visto um incêndio daqueles por aquelas bandas.
Por qualquer localidade por onde se passa, é visível o desânimo no olhar das pessoas, o corpo cansado e os olhos vermelhos, de uma noite sem descanso, como é o caso de um homem de Vale Perneto que, aos 65 anos, fez o que pôde para garantir que a sua casa não ardia.
Andava de manhã com uns baldes atrás de pequenos pontos quentes que ainda fumegavam atrás da sua moradia.
Fernanda anda de regador na mão a fazer o mesmo em Ribeira de Ansião, junto à sua casa.
Depois de uma tarde e noite sem bombeiros, valeu-lhe “a inteligência, agilidade e resistência”.
“Nem sabíamos como nos havíamos de proteger. Nós nunca tínhamos tido um incêndio e vimo-nos rodeados dos dois lados [pela frente e pelas traseiras da casa]”, contou Fernanda, que mal descansou depois de uma noite onde acabou sempre por arranjar forças para combater as chamas, mesmo que tivesse tido dúvidas de que as teria.
À agência Lusa, lembrou que na segunda-feira de manhã tinha chegado a ir à Câmara de Pombal para reclamar de um proprietário vizinho, cujas árvores não respeitam a distância de segurança.
“Fui lá na segunda-feira e depois sucede isto”, frisou.
Na localidade de Lagoa das Ceiras, junto ao IC8, estrada que liga Pombal a Ansião, um galo e uma galinha andam meio perdidos junto à casa de Elisabete Carvalho.
“Foram os que se safaram. Voaram e escaparam. As outras [31 galinhas] morreram”, contou à Lusa a mulher de 55 anos, que contabiliza ainda dois tratores ardidos, quatro cães mortos, duas cabras e um chibo, além de um barracão cheio de lenha que já foi.
“Nunca gritei tanto na minha vida”, recordou.
Com dificuldade, olha para o que ardeu e lança uma pergunta para o ar: “Agora, a gente vai comer o quê?”.
O incêndio correu demasiado rápido, lamentou, e tornou impossível qualquer combate.
“Ó senhor, isto foi uma tristeza, uma tristeza, uma tristeza. Ainda não fomos à cama e há 24 horas que não como”, disse, antes de interromper a conversa para avistar um reacendimento do outro lado da estrada.
“Isto se se reacender é um perigo”, afirmou Elisabete Carvalho, que diz que ainda é demasiado cedo para poder descansar, mesmo que o corpo lhe peça.