O efeito mortífero do uso dos cereais como ‘arma’ na Ucrânia há 90 anos, narrado no livro Fome Vermelha da historiadora Anne Aplebaum, é agora revivido, à escala global, com o bloqueio das exportações alimentares deste país invadido pela Rússia.
“Apesar das evidentes diferenças, há várias similitudes entre o Holomodor, em 1932, e o bloqueio dos cereais ucranianos, em 2022. Desde logo, o entendimento por parte de Moscovo de que a fome é uma arma terrivelmente eficaz para fazer ceder os mais frágeis”, explicou à Lusa James Bakewell, historiador da Universidade de Sussex, em Brighton, Reino Unido.
“E os mais frágeis são geralmente os civis. Ou, no caso atual, os civis dos países dependentes dos cereais da Ucrânia, dos países menos desenvolvidos”, adiantou.
Outra similitude entre os dois períodos detetada por Bakewell foi a estratégia de controlo da opinião pública: em 1932, colocando ucranianos contra ucranianos, criando cisões entre a população; em 2022, colocando os países menos desenvolvidos contra os países mais desenvolvidos, na esperança de que estes consigam influenciar os governos das grandes potências, “por exemplo, levantando sanções económicas, em troca do desbloqueio dos portos ucranianos”.
Contudo, diversos especialistas em Direito Internacional consideram que será muito difícil estabelecer o bloqueio dos cereais nos portos ucranianos como um “crime de guerra”, na medida em que Moscovo está apenas a exercer o seu direito de controlo territorial conquistado durante a invasão iniciada no final de fevereiro.
Ainda assim, a alimentação está a ser usada como arma de guerra, com idênticos resultados aos procurados e obtidos em 1932-33, quando a requisição forçada de quotas de cereais aos agricultores ucranianos terminou com a morte de cerca de quatro milhões de pessoas.
Os resistentes ao regime soviético foram perseguidos, viram as suas colheitas destruídas, as suas casas incendiadas; e quem tentou denunciar a situação, incluindo jornalistas correspondentes estrangeiros, foi perseguido e mesmo deportado.
Num livro de 2017, e publicado em Portugal na passada semana, sob o título Fome Vermelha, a historiadora e jornalista Anne Applebaum descreve como o regime da União Soviética já tinha utilizado a técnica da fome como arma de guerra na Ucrânia, há exatamente 90 anos, entre 1932 e 1933.
Nessa altura, o objetivo do Politburo, a élite de liderança do Partido Comunista Soviético, era procurar evitar que os ucranianos tivessem condições para se autonomizar da União Soviética, tirando proveito de uma onda de fome que varreu quase todo o território.
Hoje, muitos analistas consideram que o Kremlin tem utilizado o bloqueio de cereais nos portos ucranianos para procurar influenciar as opiniões públicas mundiais, criando pressão adicional sobre os governos que têm de lidar com a situação de fome que este embargo está a provocar em muitos países, em particular os menos desenvolvidos.
No final de maio, o secretário-geral da ONU, António Guterres, avisou que a escassez de cereais e de fertilizantes provocada pela guerra na Ucrânia “ameaça atirar dezenas de milhões de pessoas para a insegurança alimentar, seguida da malnutrição e da fome generalizada”.
Anne Applebaum explica como, há 90 anos, o regime soviético matou à fome quase quatro milhões de ucranianos, num episódio que ficou conhecido como o Holomodor, literalmente “a exterminação pela fome”.
Em Fome Vermelha, a jornalista vencedora de um prémio Pulitzer descreve como a estratégia do regime foi conter a consciência nacional dos ucranianos, bem como a sua vontade de autonomia política, aumentando a quota de cereais que eles eram obrigados a ceder ao Estado, centralizado em Moscovo.
E, nas decisões que foram então tomadas pelo Politburo, a medida de terror foi ainda mais longe, com a criação de um cordão que impedia os ucranianos de fugir do seu território, ficando condenados a morrer lentamente sem acesso a alimentação.
Na senda de uma outra obra, de 1986, Harvest of Sorrow (Colheita da Tristeza, em tradução literal), de Robert Conquest, Applebaum explora ainda um outro lado perverso desta estratégia de guerra: a dissimulação do Holomodor, através do controlo da informação, nomeadamente com elaborados esquemas de disseminação de desinformação ou o que hoje se chama ‘fake news’.
Até ao seu final, o regime soviético nunca admitiu o Holomodor e qualquer discussão sobre o assunto era reprimida, as estatísticas foram alteradas e o acesso a informação por parte de correspondentes estrangeiros foi sempre limitada ao máximo.
Nas últimas décadas, são muitos os exemplos de utilização da tática de deixar populações à fome para conseguir vantagens militares, o que levou, em 2018, o Conselho de Segurança das Nações Unidas a aprovar uma resolução condenando a “insegurança alimentar” e a “fome” como tática nos conflitos, considerando que se trata de “crime de guerra”, que mata pessoas todos os dias.
Esta tática de guerra tem sido repetida em vários palcos de combate, como a Somália, a Nigéria ou a região do Lago Chade, onde as partes em conflito deliberadamente destroem colheitas e incendeiam armazéns de cereais, para causar a fome e acelerar a rendição dos inimigos.
A situação na Síria ou na África Central, em particular na região do Lago Chade, prova que a tática de infligir diretamente a fome na população civil afetada pelos conflitos é de uma enorme eficácia, com organizações como a Global Rights Compliance ou o World Food Program a apontarem estes “crimes de guerra” como sendo responsáveis anualmente por dezenas de milhares de mortes.
“Estas situações estão a acontecer, no momento em que conversamos. Mas não abrem os noticiários televisivos, nem fazem as primeiras páginas dos jornais. Mas a fome como arma de guerra está a matar pessoas todos os dias”, lembrou Bakewell.
Por isso, meses depois de a ONU ter considerado o infligir deliberado de fome como “crime de guerra”, a assembleia de países com presença no Tribunal Criminal Internacional aprovou um complemento ao Estatuto de Roma, determinando que essa estratégia nos conflitos pode ser julgada mesmo que não fique provado que houve mortes por fome.