Aplicar uma Lei da Água sem os Agricultores? – Ilídio Martins

Foi finalmente concluído o “edifício legislativo” que constituem o conjunto de diplomas legais que transpõem para Portugal a Directiva Comunitária nº 2000/60/CE vulgarmente designada Directiva Quadro da Água. O termo arquitectónico foi recentemente proferido por um dos mentores de todo o processo de transposição, como que a justificar o enorme esforço e a complexidade que justifica os 7 anos de trabalho e porventura vão explicar eventuais atrasos ou percalços na sua aplicação.

Neste caso, como em muitos outros exemplos em Portugal, o legislador procurou a perfeição. Na perspectiva de “mais Estado” e mais controlo, foi efectuada uma pseudo consulta pública, evitando-se fazer a audição directa dos possíveis destinatários, para evitar maiores atrasos, dado que nada acrescentariam aos pressupostos previamente definidos. Foi assim possível elaborar uma Lei da Água sem uma simples reunião de trabalho com os agricultores ou mesmo só com os regantes, os quais até têm uma Federação (FENAREG) que porventura poderia ser o interlocutor ideal. O bom senso deveria levar a pensar que quem utiliza 85% da água em Portugal, poderia ter uma opinião e um contributo sobre um conjunto de Leis que os vão afectar positivamente ou negativamente, conforme os casos e o ponto de vista.

Publicada a Lei da Água, há que executá-la. E é agora que o legislador e a sua equipe, de consciência tranquila, sentem que a sua missão terminou, sendo naturalmente os outros ou o sistema que não terá capacidade para executar uma Lei que é na sua essência perfeita.

Nos anos 90, mais concretamente em 1994/1995, o Ministério do Ambiente, fez publicar um pacote legislativo em tudo idêntico ao actual, pecando na altura pelos mesmos erros: não ouvir e não envolver os principais interlocutores (Agricultores, Municípios, EDP, etc.), distanciamento do legislador do Pais real e incapacidade dos organismos do Estado para executar um “edifício legislativo” “perfeito demais”. Tal como agora, havia mais preocupação e pressa em obter receitas a partir do recurso água do que de facto em reformar o sector da água, ou mesmo melhorar a qualidade da água e todo o complexo sistema que a rodeia. Não foi aplicada, tendo ficado na “gaveta”. Há quem diga que o mal não está em errar. Errado é não reconhecer os erros do passado, corrigindo-os.

Como é possível ao Estado querer fazer uma reforma do sector da água sem ouvir e envolver os principais utilizadores, sem ter uma estrutura minimamente preparada e apetrechada para executar as medidas definidas na legislação, sem transmitir com clareza aos visados os benefícios dessa reestruturação?

Os agricultores e em especial os regantes concordam em termos genéricos com a Directiva Quadro da Água e o seu desígnio principal, o qual está centrado na necessidade de melhorar e preservar as massas de água, por forma a que este bem essencial continue a estar disponível no meio ambiente de uma forma duradoura e sustentável. Para tal há que implementar sistemas de controlo e monitorização, implementar um vasto conjunto de medidas, que vão desde os investimentos hidráulicos, às medidas de sensibilização e, apenas em último caso, a medidas de carácter repressivo para os prevaricadores deste recurso. O nosso Ministério do Ambiente deu particular ênfase à transposição dos aspectos de ordem económica que são referidos na Directiva, nomeadamente na eventual recuperação de custos.

Desde o início deste processo ficou claro que havia uma necessidade urgente de obter uma nova receita para financiar a implementação da Lei da Água em Portugal, sendo a TRH – Taxa de Recursos Hídricos, o instrumento vital para garantir recursos financeiros à instalação e funcionamento das ARH’s – Administrações de Recursos Hídricos (cinco novos institutos públicos) e ao próprio INAG. Não será assim de estranhar que sejamos o primeiro Pais da Europa a aplicar a TRH, uma vez que entrou em vigor no passado dia 1 de Julho.

Naturalmente que, como seria de esperar, a máquina burocrática do Estado não está minimamente preparada para levar a efeito a aplicação dos diplomas publicados, as ARH’s não existem a não ser no papel, não foi atribuída dotação orçamental adequada para o seu funcionamento, os poucos funcionários destacados não estão minimamente motivados nem informados, não existem procedimentos administrativos ou programas informáticos de base que permitam gerir os títulos de utilização de recursos hídricos, não estão definidas atribuições e competências nesta área e consequentemente não são dados esclarecimentos porque ninguém (com excepção dos iluminados legisladores e dos lugares políticos atribuídos) sabe quando nem como aplicar a Lei da Água.

A CAP já fez saber que estamos perante mais um imposto e não perante uma taxa, não sendo este o momento oportuno, face à conjuntura de aumento brutal dos custos de produção, para a sua aplicação. De facto uma das premissas da taxa de recursos hídricos seria a recuperação, ainda que parcial, dos custos. Não os custos do passado, mas os investimentos que venham a ser efectuados no futuro, estando previsto que, no âmbito das ARH’s sejam elaborados planos de bacia hidrográfica que identifiquem os principais estrangulamentos e indiquem medidas de acção que venham a permitir melhorar a gestão e a qualidade da água em cada bacia. Com base nesses planos, ouvidos os intervenientes reunidos em conselho de bacia (a propósito, este conselho será constituído por 53 elementos, dos quais dois são representantes dos agricultores, o que atesta a importância que foi dada a quem utiliza 85% da água), serão definidos os investimentos a efectuar. Metade da receita da TRH será destinada a suportar estas despesas. Se nada disto está feito, se não estão previstos investimentos, se os valores aprovados da TRH nunca foram suportados pelo estudo sócioeconómico previsto, à luz de qualquer \estudo sério e realista, se vão ser aplicados de uma forma generalizada (note-se que a aplicar-se, todos os consumidores de água vão pagar, desde a agricultura nos alimentos que produz, o consumo doméstico, a EDP, que vai reflectir na factura eléctrica esse custo, às industrias e ao turismo, que também não deixarão de passar a factura ao consumidor) sem que seja visível qualquer serviço, revertendo na sua totalidade para o orçamento do Ministério do Ambiente, mais de 50 milhões de euros anuais, então talvez seja mesmo um imposto.

Sobre a questão do momento oportuno, já será mais discutível. Para quem vai pagar o momento nunca é oportuno. De facto a conjuntura, não é a mais favorável, mas a posição deve ser outra. A agricultura deverá participar activamente na Lei da Água e naturalmente deve contribuir, estando na linha da frente da sua aplicação. Ninguém está mais interessado em preservar o recurso água do que o sector agrícola. Quando 85% da água utilizada no País passa pela agricultura, torna-se evidente que é importante e mesmo determinante envolver os agricultores neste processo.

A agricultura moderna, competitiva necessita de água. Produzir 1Kg de arroz necessita 2000 litros de água e produzir 1Kg de carne necessita 16.000 litros deste recurso, sendo estes apenas dois exemplos da nossa alimentação. Sem água, resta o abandono, a desertificação do meio rural Português e a insegurança alimentar. Mais do que em qualquer região da Europa, na zona mediterrânica há que gerir bem as massas de água disponíveis, armazenando, conservando e distribuindo, por forma a manter uma agricultura sustentável, que crie riqueza e que permita a fixação das pessoas no meio rural. Os problemas com a água são completamente distintos no Norte e no Sul da Europa. Se em termos genéricos é fácil concordar com os princípios base de orientação da Directiva Quadro da Água, ao nível da aplicação dos mecanismos necessários para a sua implementação, há que atender às especificidades de cada Pais e mesmo nestes, de cada região. Esta discussão nunca foi feita, limitando-se o Ministério do Ambiente, como bom aluno, a transpor para a Lei Portuguesa, diplomas legislativos pouco realistas e consentâneos com as nossas particularidades, centrando-se mais na necessidade de, por via economicista e de repressão do utilizador, procurar atingir as metas que o Norte da Europa considera adequadas.

Apesar de tudo ainda poderemos ir a tempo de corrigir?

Se o Ministério souber transmitir aos utilizadores do recurso água os benefícios da aplicação da nova legislação: Se souber envolver os utilizadores e mesmo delegar parte da execução de algumas competências. Se de facto entrarem em funcionamento as ARH’s, mostrando iniciativa, trabalho e vontade de administrar os recursos hídricos. Se forem elaborados os planos de bacia hidrográfica, com a definição clara dos investimentos e das prioridades. Se de facto o Ministério do Ambiente souber transmitir aos utilizadores, sobretudo aqueles que estão no terreno, as vantagens de uma nova política da água, tomando a iniciativa e dando o exemplo. Se souber transmitir a importância e a necessidade de comparticipação dos utilizadores para fazer face a investimentos reais, visíveis, efectivos, que de facto melhorem as massas de água, a sua sustentabilidade e promovam o seu uso eficiente. Então estou certo, todos vão colaborar na aplicação da nova Lei da Água.

Ilídio Martins,
Director da FENAREG – Federação Nacional de Regantes de Portugal e
Técnico da ARBCAS – Associação de Regantes e Beneficiários de Campilhas e Alto Sado


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