Dez Razões para defender as Quotas Leiteiras – Pedro Pimentel

Há determinadas ocasiões em que apesar de convictos dos nossos argumentos e cientes de que a razão nos assiste, vemos serem-nos ‘vendidas’ posições distintas como se de ‘factos consumados’ se tratassem.

Esta é seguramente uma dessas ocasiões, pois apesar de convictamente entender que a manutenção do sistema de quotas leiteiras, de entre as diversas hipóteses em discussão, será o cenário mais favorável para a nossa fileira do leite, basta ouvir o discurso oficial de Bruxelas e o coro ‘afinado’ de alguns países (de que Portugal, em minha opinião, não se demarcou convenientemente) para se ficar com a ideia de que o ‘cozinhado’ está feito.

Os ingredientes são conhecidos… UM DISCURSO POLITICAMENTE CORRECTO: o da liberalização dos mercados; O ‘JARGÃO’ DA MODA: o que está em causa é a competitividade do sector; A TEIMOSIA E FIRMEZA DOS INTÉRPRETES: a aguerrida dinamarquesa Mariann Fischer Böel nas vestes de comissária da Agricultura; AS MEIAS VERDADES: colocar como sinónimos a decisão de prolongamento do sistema de quotas até 2015 e a decisão de desmantelamento do sistema em 2015; A INTOXICAÇÃO COMUNICACIONAL: conseguir que o sector se entretivesse a discutir os cenários do pós-quota antes de decidida a continuidade ou não do sistema; UMA CONJUNTURA DE MERCADO MUITO FAVORÁVEL: zero excedentes, zero stocks, procura em crescendo face à oferta, preços na origem no seu mais alto nível histórico… …e formam uma combinação aparentemente vencedora que parece deixar hipóteses de sucesso muito limitadas a todos (… e não são assim tão poucos) os que não se limitam a aceitar este ‘pensamento único’.

Penso, contudo, que haverá um conjunto alargado de razões – escolhi dez, um número redondo que ajuda a construir o título deste artigo – para justificar a defesa do sistema de quotas leiteiras. Algumas dessas razões derivam dos méritos do próprio sistema e outras resultam da antevisão dos cenários potenciais do pós-desmantelamento.

1. desde logo porque 93 por cento do leite produzido na União Europeia é comercializado no mercado europeu e tem ainda um peso percentualmente maior nas receitas das empresas lácteas da EU; o desmantelamento do sistema de quotas visa supostamente ‘encontrar espaço’ nos mercados internacionais para apenas sete por cento do leite europeu…

2. o sistema de quotas ao longo dos seus mais de 20 anos de vida contribuiu para a adequação da oferta à procura (europeia e internacional) no sector lácteo e permitiu a estabilização dos preços e a sustentabilidade dos rendimentos ao longo da fileira; criou previsibilidade no sector, incentivou investimentos na produção e na indústria; possibilitou a redução de efectivos, compensada por ganhos de produtividade; abriu espaço à melhoria das performances ao nível da segurança alimentar, ambiente e bem estar animal, em nível superior aos praticados na generalidade dos países terceiros…

3. o sistema permitiu ainda a manutenção ou mesmo o desenvolvimento razoavelmente harmónico da produção leiteira na totalidade dos países da União Europeia…

4. muitas das críticas efectuadas ao sistema de quotas derivam não do seu funcionamento, mas do volume das quotas atribuídas a determinados países (Espanha, Itália e Grécia são bons exemplos) resultado de uma má negociação na construção do sistema ou na adesão à UE, mas também da relutância em ceder mercado potencial por parte de países (Holanda, Dinamarca, Irlanda) cujas produções em muito excedem o consumo do seus mercados de influência; a própria avareza na atribuição das quotas aos novos Estados-membro foi mais um ‘presente envenenado’ dos defensores da abolição das quotas…

5. a crise verificada no último ano, com a quebra da produção em vários países europeus e a incapacidade de dar resposta à crescente procura de leite e seus derivados seja na UE, seja nos mercados internacionais, não pode ser assacada ao sistema de quotas, mas antes às medidas de desagregação da OCM-Leite acordadas na revisão intercalar de 2003, com o esvaziamento dos stocks de intervenção, uma forte pressão descendente (e desincentivadora) sobre os preços das commodities lácteas, o desligamento das ajudas e a implementação do RPU…

6. em Portugal e depois da adesão ao sistema em 1992, verificou-se uma muito significativa modernização do sector, com o crescimento da produção, da industrialização e do consumo; o robustecimento do tecido produtivo foi acompanhado por uma verdadeira ‘revolução silenciosa’, com a saída do sector de dezenas de milhares de produtores, sem crises sociais, nem quebras ao nível da produtividade ou do abastecimento do tecido industrial…

7. no entanto, a modernização do sector está longe de estar concluída, seja ao nível do redimensionamento de uma parcela significativa das explorações leiteiras, seja na concentração dos subsectores industriais mais atomizados, seja na conquista de mercados externos menos saturados e mais rentáveis; para tudo isto é necessário tempo e alguma protecção face a uma exposição excessiva à concorrência internacional, intra e extra europeia…

8. mesmo no caso açoriano, em que são óbvias as vantagens competitivas em relação a grande parte do tecido produtivo continental e em que se verifica uma situação razoavelmente privilegiada no contexto concorrencial europeu, a liberalização dos mercados e o disparar potencial da produção nos países do Norte da Europa impediriam a manutenção desta posição favorável, sobrevivendo as questões da dimensão, da diversificação produtiva e das economias de escala como obstáculo à afirmação sustentada da fileira do leite nos Açores…

9. as organizações ligadas ao sector lácteo de países como a Dinamarca ou a Holanda já foram perfeitamente claras nas suas intenções, indicando que do desmantelamento do sistema de quotas deveria resultar o abandono produtivo maciço nos países e áreas cuja produção consideram menos competitiva – onde enquadram Portugal, Espanha, todo o sul de França, amplas áreas de Itália e diversas outras zonas do sul da Europa – o que se constituiria como uma oportunidade para a colocação dos seus produtos, com níveis de rentabilidade bem superiores aos obtidos nos mercados internacionais de exportação das denominadas commodities lácteas…

10. o próprio documento divulgado pela Comissão Europeia, intitulado “PERSPECTIVAS DO MERCADO PARA O SECTOR DO LEITE E DOS PRODUTOS LÁCTEOS” mostra-nos que as projecções relativas à evolução da produção de leite na UE passam por uma fase inicial de algum crescimento, seguida de uma fase mais longa de estabilização da produção em valores próximos dos actuais (o que sustentaria preços e rendimentos); no entanto, para bom entendedor meia palavra basta e aquilo que efectivamente o documento traduz é uma mera reorganização geográfica do mapa europeu de produção de leite, com os crescimentos de países do Norte a compensarem os abandonos e a quebra de produção que se verificariam nos países do Sul…

A disciplina de produção, controlando a oferta (e, obviamente, apoiada de instrumentos de apoio a nível nacional) parece ser a forma mais sensata – até pelos resultados do passado recente – de manter um nível de preços suficiente que possa travar o abandono produtivo e impedir que o mesmo assuma proporções desastrosas.

Num país excêntrico como Portugal ou numa região ultraperiférica como os Açores, a indústria de lacticínios depende do aprovisionamento de proximidade, o que pela envolvente atlântica ou pela fronteira única com um país largamente deficitário, torna a manutenção de uma produção nacional suficiente para o abastecimento do mercado português como um factor absolutamente crítico para a sua sobrevivência.

Não tenhamos duvidas, por outro lado, que a actual discussão relativa à ‘aterragem suave’ do sector, mais não é do que uma forma de desvalorizar as quotas leiteiras no mais curto espaço de tempo, precavendo a possibilidade de países ou organizações pensarem em pedir compensações (do tipo ‘resgate’) no momento do desmantelamento do sistema.

A comissária Fischer Boël declara-se aberta à discussão e à apresentação de propostas, mas foi já dizendo que o sistema de quotas está definitivamente ‘finito’; que aumentos de quota sim, mas que não gosta da ideia de aumentos percentualmente distintos; que a conjugação de múltiplas ferramentas sim, mas que apenas deve ser utilizado o mecanismo ‘quotas’; que o regime de quotas só é abolido em 2015 sim, mas que se estiverem reunidas antes condições para avançar para a liberalização…

Ou seja, nada melhor para terminar do que lembrar Henry Ford, que popularizou o automóvel com o seu célebre modelo Ford T, ligado ao qual proferiu a célebre frase: “cada cliente pode escolher o seu carro da cor que quiser, desde que seja preto”. Pois mais de noventa anos volvidos e em relação a este dossier, o pensamento dominante parece não ter evoluído…

Pedro Pimentel
Secretário Geral da ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios

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