Há sensivelmente 1 mês e na sequência das audiências concedidas ou das reuniões de trabalho efectuadas, a QUALIFICA enviou a vários órgãos de soberania e a diversas entidades um documento onde se enunciavam os principais estrangulamentos legais e constrangimentos administrativos que estão a sufocar os pequenos produtores e a fazer desaparecer os produtos tradicionais.
Os Ministérios mais directamente relacionados com as matérias tratadas no documento – Agricultura, Economia e Cultura – nem se dignaram receber a QUALIFICA nem tão pouco acusaram sequer a recepção do documento enviado…
Mas o mais grave é que tudo continua por resolver, mesmo as questões que a QUALIFICA – antes de mesmo de formalmente constituída – vinha a levantar.
Assim, vejamos, em síntese:
A – Licenciamento industrial de unidades produtivas REAI – Decreto-Lei nº 209/2008
A legislação nacional, ao enquadrar no regime de Licenciamento Industrial os pequenos produtores e as pequenas produções e por não ter em conta a situação real da localização e forma de funcionamento de muitas pequenas empresas, pela carga burocrática que cria, pela limitação quantitativa da produção e quantitativa da mão-de-obra a utilizar, pelo esquecimento das produções temporárias, pela falta de conhecimento prático das situações existentes, dos compromissos dos produtores e do emprego criado, determina a exclusão prática e absoluta dos produtores tradicionais e, com ela, a morte de uma actividade económica sobretudo com cariz social e culturalmente significativo.
O texto legal é confuso, ao criar 3 tipologias dentro dos estabelecimentos de pequena dimensão (tipo 3, ex-classe D); é desmesuradamente exigente e burocrático sobretudo quando se trata de actividade produtiva local ou similar; enuncia mas não define em que condições certas exigências poderão não ser aplicáveis; está construído numa lógica de início de actividade e não de manutenção de laboração em instalações e estabelecimentos pré-existentes, até aqui legais; exige a certificação de máquinas e equipamentos de carácter doméstico (fogões e frigoríficos, por ex.).
Na prática, não permite os fabricos caseiros que são autorizados pela legislação comunitária.
Ainda por cima contém exigências muito superiores às constantes do DL 57/99 e das Circulares nº 1, 5 e 6, todas de 2008 (!) do GPP que, sem serem modelares nem satisfatórios, foram do ponto de vista estrutural facilitando progressivamente o funcionamento das microempresas e permitindo a realização das Feiras de Fumeiro e outras, com apreciável ganho económico para os produtores e sem qualquer prejuízo para a saúde dos consumidores ou queixas por concorrência desleal
Pior ainda é que os limites máximos de produção considerados em tal lei tornam as empresas existentes economicamente inviáveis. O investimento estimado geralmente em 50000€ (para queijarias e salsicharias deste tipo, por exemplo), não é recuperável com produções máximas de 2000 kg/ano de enchidos ou, decerto por gralha ainda não corrigida, de 12000 litros de lacticínios/ano
Por último o diploma é socialmente injusto, ao fixar como limite máximo 15 trabalhadores – critério para classificar um estabelecimento como incluído na classe 3 (e de 5 trabalhadores como máximo para a actividade produtiva local). Esta situação, impeditiva da criação de emprego, é sempre lamentável mas atinge foros de desrespeito grave, sobretudo quando se aplica em zonas deprimidas e em épocas de crise!
Com esta lei, temos também que dizer adeus a práticas correntes em Portugal, por exclusão liminar de produtores individuais e colectivos (ranchos folclóricos, associações de solidariedade, grupos de apoio à 3ª idade, à infância, aos menos capacitados, associações de desenvolvimento local e cultural, etc.) que costumam desenvolver actividade ocasional ou temporária apenas, preparando produtos tradicionais, típicos de certas épocas festivas ou existentes apenas em curtíssimos períodos de tempo, normalmente inferiores a 30 dias. Logo, estas actividades economicamente pouco relevantes mas socialmente muito importantes, ficam impossibilitadas de prosseguir, apenas por deficiência de enquadramento legal e por falta de conhecimento sobre a situação real do tecido económico, aliada a uma total incompreensão pelos fenómenos demográficos e sócio-culturais existentes em Portugal.
A todos estes problemas somam-se: a dificuldade de utilização de plataforma informática pelos pequenos produtores, sendo esta a única foram possível de acederem ao sistema de licenciamento; a inexistência de instrumentos técnicos como guias, linhas de orientação ou similares, que permitam às autarquias desenvolver o trabalho de licenciamento de forma segura e equilibrada ao longo de todo o território nacional; o típico jogo do “empurra” das autoridades centrais e regionais, que prometem em público tudo esclarecer mas que não só nada respondem como ainda por cima remetem os produtores para os serviços das autarquias, informando-os que tais serviços é que são responsáveis pela situação!
Assim, e com causas estritamente NACIONAIS, os micro, os pequenos e os produtores temporários continuam a ter:
– exclusão garantida, por falta de enquadramento legal,
– acesso discriminado ao mercado por impossibilidade de cumprir a teia burocrática,
– impossibilidade de aumentar a produção, por fixação de quantidades máximas,
– impossibilidade de criar emprego, por limitação do nº máximo de trabalhadores.
Logo, continua a ser imperioso e urgentíssimo a criação de um regime verdadeiramente simplificado e apropriado para os pequenos produtores, que tenha em conta: a regulamentação comunitária que permite regime especial para este tipo de produtores; o risco da sua actividade na saúde pública; a dimensão económica; o papel relevante na economia local, na ocupação do território, na criação/manutenção de emprego e na preservação da cultura e tradição.
B – Despacho Normativo 38/2008 – derrogações
Apesar de frontalmente apontados os graves inconvenientes e as lacunas e incoerências do Despacho Normativo nº 38/2008, de 13 de Agosto e proposta inclusivamente uma solução alternativa corrigindo falhas, estabelecendo critérios e simplificando o trabalho dos Produtores e dos seus Agrupamentos, nada foi alterado.
Só recentemente uma publicação de um dos organismos que trata dês assunto refere – ainda como hipótese – a concessão de derrogações e apenas para os “leitões assados” e para a cura dos queijos Tradicionais. E o que é espantoso é que passados todos estes anos, os projectos de derrogação vem dizer o mesmo que dizia a legislação comunitária, isto é, podem continuar-se as práticas tradicionais desde que os produtos tenham boas condições de higiene… como toda a vida tiveram!
C – A paralisia no sistema oficial de Qualificação
1. Constata-se a total paralisia nesta importantíssima área de trabalho. As únicas movimentações visíveis resultam da já quase total resolução comunitária dos pedidos de qualificação ou de alteração de cadernos de especificações, solicitados até Fevereiro de 2006.
Os pedidos em curso nacional, alguns já com publicação de avisos em DR em 2007 ou em data anterior (p. ex. qualificação de Boticas para produtos de fumeiro e de panificação, de Freamunde para capão, de Transmontano para queijo de cabra, de Ribatejo para carne de bovino Bravo, de Alentejo para carne de caprinos, de Mirandês para carne de cordeiro, de Beira Baixa para requeijão e travia e de Bacalhau de Cura Tradicional Portuguesa como ETG) não sofreram nenhum avanço visível. E todos os restantes pedidos já com avanços substanciais parecem ter ficado paralisados.
2. Nem mesmo foi efectuada a alteração do Despacho Normativo nº 47/97, absolutamente caduco em virtude da publicação dos Regulamentos 510 e 509, em 2006. Portugal está, assim, em situação de incumprimento face às disposições previstas por tais regulamentos, em particular do Reg. 510/2006
3. A informação constante do site do GPP é diminuta e de muito fraca qualidade (p. ex. a nota “Inquérito anual aos agrupamentos gestores dos produtos de qualidade”, ou a resposta a uma hipotética pergunta frequente sobre o uso dos símbolos comunitários, que nada esclarece e induz os operadores em erro).
4. Mas gravíssimo é o documento intitulado “Procedimento operativo – Qualificação e registo de DOP/IGP/ETG” – PO 002/DSFAA Ed. nº 1 – Rev. Nº 0 – 07/11/2008.
Para além do péssimo uso da língua portuguesa, o documento enferma de erros inadmissíveis, designadamente:
– ao assimilar o processo de registo de uma ETG ao processo de registo de uma IG ou de uma DO, ignorando as diferenças de princípios de Propriedade Intelectual e de territorialidade de aplicação da legislação comunitária;
– ao informar erroneamente em matéria de protecção das IG e das DO, sobretudo ao nível internacional;
– ao exigir aos Agrupamentos documentos e procedimentos sem qualquer base legal, comunitária ou nacional;
– ao admitir que os processos não são tratados por ordem de entrada mas por nebulosos critérios regionais/centrais, desconhecidos dos principais interessados;
– ao confundir os operadores em matéria de pedido de alterações aos Cadernos de Especificações aprovados comunitariamente.
5. Saliente-se ainda um “novo”procedimento em curso no MADRP e que consiste na devolução aos operadores, sem mais e sem garantias de respeito pelos prazos de entrada, de pedidos de protecção efectuados ainda na vigência dos regulamentos de 92, sob o pretexto de os operadores deverem alterar os pedidos em conformidade com a nova regulamentação comunitária.
Ora este tipo de procedimento não tem qualquer suporte legal – nacional ou comunitário e serve apenas para “limpar” os arquivos dos serviços e desresponsabilizar o Ministério pelos atrasos, sem ter em conta critérios de precedência com registos de marcas, esforços promocionais já efectuados, investimentos em curso, etc.
6. E a última desculpa para tal paralisia – a da maior dificuldade dos regulamentos comunitários – é totalmente ridícula e destituída de fundamento!
Os regulamentos de 2006, pelo contrário, são mais fáceis de cumprir, explicitam melhor certos critérios e exigências e tornam mais clara toda a situação para os operadores interessados.
Só é preciso ter competência técnica, saber interpretar e ter presente que se trata de Propriedade Intelectual ….. e não de meras regras do rotulagem e similares e, também, conhecer e ter em conta a realidade histórica e cultural dos nomes geográficos usados para designar produtos tradicionais e não as meras estratégias de marketing para aglomerar sob o mesmo nome aquilo que é diferente e felizmente variado!
E tanto que os regulamentos não são mais complexos do que os anteriores que até mesmo os Estados membros sem qualquer experiencia ou tradição nestas áreas deles têm tirado enormes benefícios, aumentando sempre o nº de pedidos, excepto os portugueses!
D – Portaria 699/2008 – Pequenas produções
Resolvendo parcialmente as questões relativas ao fornecimento de pequenas quantidades de ovos, mel e pescado pelo produtor primário directamente ao consumidor final ou a estabelecimentos de comércio retalhista local que abasteçam directamente o consumidor final, e ainda que discutíveis os valores apontados e, sobretudo, o equilíbrio entre as quantidades estipuladas, o ponto mais grave é que não foi regulamentado o equivalente para as produções de origem vegetal.
Assim sendo, os pequenos produtores de hortofrutícolas, de cereais ou os recolectores de plantas silvestres, por exemplo, não podem legalmente vender as suas produções no comércio ou na restauração local, vendo-se estes estabelecimentos privados de fornecer aos seus clientes produtos muito frescos, de origem conhecida e bem comprovável.
E – Outras situações de constrangimento legal e administrativo
A este panorama regulamentar, acresce ainda:
– a falta de actuação de autoridades em matéria de fiscalização de mercados, de sites e de áreas e estabelecimentos comerciais, onde se registam abusos sistemáticos sobre as DOP e as IGP quer ao nível da rotulagem dos produtos quer ao nível da publicidade
– o abuso da posição dominante de certas grandes empresas de distribuição, que esmagam os pequenos produtores e os obrigam a retirar as suas DOP/IGPs e marcas de empresa, em detrimento das marcas próprias, selecções, clubes, etc. e que anunciam feiras de produtos tradicionais em que mais de 80% dos produtos anunciados são industriais!
– a complexidade (excesso de documentos), a permissividade (falta de critérios) e a demora na obtenção do Estatuto de Artesão ou de Unidade Produtiva Artesanal, a que acresce a total impunidade com que não são cumpridas certas disposições legais, designadamente sobre o uso da menção artesão ou similar ou da utilização como marca, por empresas e entidades não reconhecidas
– a falta de mecanismos de acreditação para as empresas de consultoria em matéria de Higiene e Segurança Alimentar, amplamente solicitada pelas associações e empresas que se consideram como credíveis e vítimas de concorrência desleal
– a lentidão da resposta aos pedidos de acreditação dos organismos de certificação para a Agricultura Biológica e para os Produtos Tradicionais, que coloca de novo Portugal em situação de incumprimento comunitário, face designadamente às disposições do Reg. 834/2007 (Agricultura Biológica).
Ana Soeiro
Secretária Geral da Qualifica – Associação Nacional de Municípios e de Produtores para a Valorização e Qualificação dos Produtos Tradicionais Portugueses