Durante muitas décadas, no âmbito da União Europeia, os chamados apoios agrícolas de mercado, ou apoios ao rendimento, estiveram implícitos nos preços agrícolas. Estes preços, normalmente mais elevados, eram protegidos do mercado mundial através de um complexo sistema de taxas.
Nos anos noventa, a maioria destes apoios tornaram-se explícitos e passaram a ser designados por “ajudas directas” ainda que a sua atribuição tivesse continuado a estar “ligada” à produção, isto é, de uma forma geral, às áreas utilizadas, ao número de animais ou ao volume de produção.
Precedendo a reforma de 2003, acentuou-se um debate antigo entre dois grupos de pessoas com diferentes percepções sobre a forma mais adequada de enquadrar a agricultura europeia.
Por um lado, aqueles que defendiam o “desligamento” das ajudas directas relativamente à produção, porque consideravam que essa ligação impedia uma boa afectação dos recursos e que era económica e socialmente injustificada.
Por outro lado, aqueles que consideravam que um eventual desligamento das ajudas traria consequências muito nefastas, não só porque potenciaria um enorme abandono agrícola, em particular no nosso país, como seria um passo de gigante para o desaparecimento, a prazo, dos apoios ao rendimento ligados à PAC.
Entre os defensores do desligamento alinharam-se personalidades, políticos, técnicos e intelectuais da agricultura, de diferentes origens e formações, que conseguiram tornar a sua opção como a mais politicamente correcta e, por essa via, influenciar a maioria dos decisores europeus, entre os quais toda a esquerda europeia e, em Portugal, o Partido Socialista, que aproveito para recordar, é o responsável por mais de dez anos de governo dos últimos treze.
Entre os críticos do desligamento, estiveram praticamente sempre a maioria dos agricultores e das suas organizações e alguns técnicos agrícolas, como foi sempre o meu caso. Passe a imodéstia, nunca tive dúvidas sobre o que iria acontecer. Desde sempre me bati contra essa possibilidade, em público e em privado. Até me recordo ter sido essa a razão que me levou a discordar frontalmente e a distanciar-me dos resultados da reflexão de um Grupo de Trabalho sobre o futuro da PAC, que também integrei, quando o Eng.º Fernando Gomes da Silva foi Ministro da Agricultura.
Quando mais tarde fui Ministro da Agricultura, entre 2002 e 2004, não mudei de opinião e continuei a criticar essa opção, quer internamente, quer no âmbito dos debates e negociações na União Europeia, tendo sido por essa razão inúmeras vezes considerado um incorrigível conservador (quando era criticado com amizade) ou um retrógrado sem emenda ao serviço de interesses inconfessáveis (quando as criticas provinham de sectores mais radicais).
Até aqui, tudo normal. É perfeitamente normal que diferentes pessoas tenham diferentes opiniões sobre a melhor forma de conduzir a política agrícola em Portugal e na Europa, sendo até muito saudável que essas opiniões sejam explicitadas, enriquecendo o debate público que alimenta a democracia. Foi assim que o fizeram alguns dos meus amigos, dos quais discordei. Foi assim que também eu tentei fazer.
O que já não é normal é, depois que as políticas que defenderam tenham sido postas em pratica e os seus resultados comecem a tornar-se evidentes, desapareçam quase todos aqueles que as defendiam (excepto honrosas excepções), ou, pior do que isso, venham a público dizer que os responsáveis foram exactamente aqueles que as criticavam, numa despudorada tentativa de quererem fazer a história ao contrário.
Tal não acontecerá enquanto houver alguém disposto a recordar e a provar o que realmente aconteceu.
O que realmente aconteceu, foi que, em 2001, o Dr. Capoulas Santos, enquanto Ministro da Agricultura, tendo por seu assessor o actual Ministro, Dr. Jaime Silva, seu representante na REPER, em Bruxelas, fez uma proposta escrita que apresentou à Comissão europeia, na qual defendia o desligamento sem nenhuma margem para dúvida. (Vd. no Anexo I Documento em formato PDF as páginas 7 e 8 do documento intitulado “Um novo rumo para a agricultura europeia”, datado de 17/04/2001, da responsabilidade do Dr. Capoulas Santos).
Logo nessa altura tive oportunidade de, em público, num Congresso organizado pela CAP, criticar essa proposta, o que aliás deu origem a um muito curioso debate privado, promovido, sob a forma de almoço, pelo Dr. Jorge Sampaio e no qual estiveram presentes a defender a proposta, o Dr. Capoulas Santos e o Dr. Jaime Silva que propositadamente se deslocou de Bruxelas. Desse debate há pelo menos uma testemunha de quem nenhum português se atreverá a duvidar.
Um ano e pouco mais tarde, quis o destino que passasse a ser eu o Ministro da Agricultura. Obviamente que não mudei de opinião. Em todas as minhas intervenções no Conselho de Ministros da UE (todos publicados no site do Ministério e provavelmente já apagados) critiquei o desligamento. Que me seja perdoada a imodéstia de dizer que até liderei um movimento entre os responsáveis europeus, contra o desligamento, chegando a apresentar oficialmente os resultados de um estudo que fizemos no Ministério sobre as suas negativas consequências caso fosse adoptado (Vd. no Anexo II Documento em formato PDF o resumo da exposição, em inglês, entregue ao Conselho de Ministros da UE)
Como se sabe, na revisão da PAC de 2003, não conseguimos vencimento total das nossas posições (também por isso votámos contra). Conseguimos, no entanto, reservar para os Estados membros a possibilidade de manterem, em muitos casos, uma certa percentagem dos subsídios ligados à produção.
Poder-me-ão perguntar: se assim foi, porque é que, passado pouco tempo, tomámos a decisão de desligar totalmente os subsídios relativos aos cereais e às sementes oleaginosas? A resposta é simples e continuo a pensar que se tratou de uma medida muito acertada. Apesar das discussões europeias terem sido muito duras, a obstinação da Comissão Europeia foi grande (aplaudida e encorajada pela oposição socialista em Portugal)1 e não aceitou que os Estados membros mantivessem desligados menos do que 75% dos subsídios comunitários no sector dos cereais.
Ora se Portugal desligasse 75% desses subsídios, mantendo os restantes 25% ligados, de cada vez que um agricultor abandonasse a cultura de cereais, para se reconverter ou porque os preços não fossem compensadores (e seriam certamente muitos nessa condições), não só perderia esse montante, como o mesmo seria transferido para o orçamento comunitário e assim perdido para o país. Seria uma perfeita estupidez política não proceder como procedemos 2.
Só mesmo os que pouco sabem das condições económicas associadas a cada uma das nossas produções agrícolas é que poderão defender que se procedesse de outro modo.
Já agora, para que a história fique completa, acrescento, que para contrariar o abandono e manter alguma segurança nos resultados económicos da cultura de cereais, decidimos instituir uma sistema de apoio suplementar a essas culturas, com base nas medidas agro-ambientais, que o governo socialista seguinte se apressou a revogar.
Depois de tudo isto, alguém conseguirá perceber porque é que os actuais responsáveis agrícolas insistem em acusar-me de ser o responsável pelo desligamento e pelo abandono agrícola em Portugal? Será que minimizam assim tanto a inteligência dos agricultores? Será que não têm mais nada para me acusar? Ou será que não têm mais nada para fazer?
23 de Abril de 2009
Armando Sevinate Pinto
Agrónomo e ex- Ministro da Agricultura (entre 2002 e 2004)
(1) Não me esqueço que, na apresentação do seu projecto de reforma o Comissário Fischler foi aplaudido na Assembleia da Republica pelo deputado Capoulas Santos, enquanto o governo português a tentava contrariar
(2) Já no que respeita aos bovinos (vacas aleitantes), porque o podíamos fazer, mantivemos os subsídios 100% ligados