Um grupo de economistas agrícolas da UE decidiu preparar uma declaração conjunta que pretende ser um contributo para o debate sobre o futuro da PAC, no momento em que se iniciam as discussões no contexto da reforma do orçamento comunitário.
Esta declaração, de que sou um dos 22 signatários, intitula-se “A Common Agricultural Policy for European Public Goods: Declaration by a Group of Leading Agricultural Economists” e vai ser apresentada hoje, 18 de Novembro, à comunicação social em Bruxelas.
Durante esta última semana têm vindo a ser publicados na comunicação social dos diferentes Estados Membros da UE, artigos que apresentam de forma resumida o conteúdo da referida declaração. Esta exprime o máximo consenso que foi possível alcançar sobre esta problemática entre académicos e investigadores que, como eu, não se revêem, necessariamente, na totalidade do texto assinado, nomeadamente no que se refere à importância relativa a atribuir no futuro a alguns dos diferentes tipos de orientações preconizadas.
Dada a necessidade de debatermos entre nós o futuro da PAC, pareceu-me ser útil fazer chegar aos leitores do AGROPORTAL a tradução do texto integral da declaração em causa. Faço-o com o objectivo de contribuir para uma discussão alargada sobre as vantagens e inconvenientes das ideias propostas, para o futuro da agricultura e do mundo rural da UE em geral e de Portugal em particular.
É o seguinte o texto da declaração em causa.
“Uma Política Agrícola Comum orientada para os Bens Públicos Europeus:
Declaração de um Grupo de Economistas Agrários de Primeira Linha
A Política Agrícola Comum (PAC) está a precisar de uma reforma. A negociação iminente de um acordo orçamental para o período pós-2013 oferece uma oportunidade real de tratar das alterações necessárias. Se a Europa pretender fazer as opções correctas, é essencial promover um debate público alargado. Desejamos contribuir para esse debate.
Desde 1992, os mecanismos de apoio aos preços têm progressivamente vindo a ser transformados em pagamentos desligados da produção (Regime de Pagamento Único). Isso minimizou os efeitos colaterais negativos da PAC. A PAC actual gera menos distorções na agricultura europeia e global, e prejudica menos os agricultores pobres dos países em vias de desenvolvimento. Contribui igualmente para uma redução dos incentivos à promoção de práticas prejudiciais para o ambiente. Não obstante, o Regime de Pagamento Único confere benefícios muito irregulares aos Estados Membros e aos agricultores individuais, sem contribuir para a concretização de objectivos claros de distribuição de rendimento, de desenvolvimento rural ou de protecção ambiental. O apoio ao desenvolvimento rural e à protecção ambiental é frequentemente justificado, mas quase sempre implementado ineficazmente. Para além disso, os restantes elementos dos velhos mecanismos de apoio de mercado da PAC continuam a ser problemáticos para os parceiros comerciais da UE, enfraquecendo a posição negocial da EU no seu esforço para desmantelar as políticas excessivamente proteccionistas à escala mundial e para assegurar uma conclusão com êxito da Ronda de Doha para o Desenvolvimento.
Chegou o momento de reconceber a PAC de modo a fortalecer os seus efeitos positivos. Só se a PAC ajudar de modo eficiente a promover os interesses da sociedade será legítima aos olhos dos nossos cidadãos e viável a longo prazo. A UE deveria envolver-se apenas no financiamento e regulamentação do sector na medida em que ajuda a promover estes objectivos mais amplos, e em particular nos casos em que os efeitos das políticas se façam sentir para além das fronteiras nacionais. De outro modo, as políticas deveriam reflectir o princípio da subsidiariedade. As políticas sociais e de redistribuição deveriam ser deixadas às autoridades nacionais e subnacionais, que se encontram em melhor posição para ir ao encontro das necessidades e preferências locais. Uma concorrência leal no mercado interno pode ser alcançada através da supervisão da UE e não implica um financiamento significativo por parte da UE.
Os objectivos da futura PAC
Podem ser identificados quatro tipos de objectivos para a PAC: aumentar a eficiência e a competitividade económicas, assegurar a segurança alimentar, alterar a distribuição de rendimentos e promover os bens públicos. No entanto, apenas o último destes objectivos fornece uma base sustentável para a futura PAC.
1. Eficiência e competitividade económicas: De um modo geral, a melhor maneira de conseguir um sector agrícola orientado para a procura, mais inovador e mais competitivo é através de mercados que funcionem bem e não da intervenção estatal. Mas a UE tem um papel legítimo a desempenhar no encorajamento da investigação e desenvolvimento, tanto no sector público como no privado, uma vez que os benefícios da investigação e desenvolvimento são muitas vezes partilhados através das fronteiras, e os Estados Membros podem ganhar em congregar os seus esforços neste âmbito. Um tal apoio por parte da UE tem, no entanto, uma melhor integração na política de investigação existente na UE, que dispõe das competências necessárias, não sendo para tal necessário que faça parte da PAC.
2. Segurança alimentar: A UE tem o poder de compra necessário para adquirir bens alimentares e matérias primas agrícolas no mercado mundial, mesmo quando os respectivos preços se encontrem em alta. A segurança alimentar não se encontra, portanto, actualmente ameaçada na UE. Os agregados familiares pobres ainda podem ser afectados por períodos de preços elevados, mas a melhor maneira de os ajudar é através de esquemas de protecção social. Ainda para mais, a UE poderia tomar medidas para aumentar a sua própria produção se tal fosse necessário. Em reacção à subida dos preços, os agricultores poderão aumentar as áreas de cultivo, usando métodos de exploração mais intensivos, alterando os padrões de produção e aumentando a respectiva produtividade.
Preparar a UE contra ameaças futuras e manter a capacidade de produção em caso de escassez persistente, continuam a ser objectivos legítimos. Para esse fim, os pagamentos específicos – por exemplo para preservar a fertilidade dos solos ou os recursos hídricos, e manter um nível mínimo de actividade agrícola – serão mais eficazes do que subsídios pontuais de emergência para manter os níveis existentes de produção ou emprego agrícolas.
No contexto internacional do aquecimento global, de recursos hídricos limitados e de uma população em crescimento permanente, a segurança alimentar a nível mundial é de facto um problema. Mas não é legítimo invocar argumentos de segurança alimentar a nível mundial para justificar a PAC actual. O dinheiro com que se pretende reduzir a fome e a pobreza em países terceiros seria mais bem aplicado investindo em investigação e infra-estruturas agrícolas nos países em vias de desenvolvimento, do que orientá-lo para a produção agrícola na UE.
3. Distribuição do rendimento: Embora em certos Estados Membros os rendimentos dos agregados familiares dos agricultores estejam abaixo do rendimento médio no sector não agrícola, podendo mesmo estar abaixo da linha de pobreza nacional, os subsídios agrícolas não constituem um instrumento eficaz de política social. Se o apoio público depende da produção agrícola ou da propriedade de terras, os agricultores com níveis de rendimento mais elevados e os proprietários rurais acabam por receber o grosso dos apoios. Ao invés, os apoios públicos deveriam ser dirigidos aos agregados familiares com baixo rendimento, independentemente do sector em que exercem a sua actividade.
As assimetrias de rendimento ainda são grandes entre as regiões europeias e os Estados Membros. A Coesão é um princípio importante numa UE com 27 estados diferentes, mas os resultados obtidos pela PAC neste âmbito são frustrantes. O apoio agrícola não é direccionado às regiões ou Estados Membros mais desfavorecidos, e as respectivas despesas públicas não representam, necessariamente, aquilo de que os beneficiários mais precisam para desenvolver as suas economias.
4. Bens públicos rurais: Os agricultores criam muitas vezes bens públicos valorizados pelas sociedades, mas que não são suficientemente remunerados pelo mercado. Tais bens públicos podem incluir protecção ambiental, conservação da biodiversidade, fertilidade dos solos e qualidade da água, preservação da paisagem, segurança alimentar, saúde animal e vegetal, e desenvolvimento rural. Alguns desses bens públicos são por natureza mais globais, como a biodiversidade, e carecem de acção por parte da UE. Outros, como as paisagens, deverão, com maior legitimidade, ser abordados pelas autoridades nacionais ou locais.
Protecção ambiental: Alguns bens públicos de carácter ambiental poderão justificar apoio por parte da UE. Um que é óbvio é a luta contra as alterações climáticas, que representa um desafio global que justifica uma resposta supranacional. A monitorização das emissões de gases com efeito de estufa por forma a aplicar esquemas de cap and trade (limitação e comércio de emissões) ou taxas sobre emissões de CO2 é difícil na agricultura. Os pagamentos para práticas agrícolas amigas do ambiente poderão bem revelar-se necessários para induzir os agricultores a irem além dos requisitos legais mínimos. A protecção da biodiversidade também justifica o apoio da UE dado que os animais, os ecossistemas e a poluição que ameaça a biodiversidade atravessam as fronteiras. De um modo semelhante, manter os aquíferos limpos e prevenir a escassez de água, bem como as cheias, são uma preocupação da UE, visto que os europeus partilham rios, lagos e mares.
Preservação da paisagem: A maior parte dos benefícios de uma paisagem diversificada, tradicional e bem conservada serão usufruídos no contexto do próprio país – através de fruição directa, como uma vantagem para atrair recursos humanos qualificados ou através do turismo. Estes são primordialmente bens públicos nacionais e não europeus. Mas os europeus também usufruem das paisagens de outros Estados Membros, justificando, portanto, alguma intervenção colectiva por parte da UE.
Padrões alimentares: É por vezes sugerido que os subsídios são concedidos para permitir aos agricultores irem ao encontro da legislação europeia mais exigente no que respeita à segurança alimentar, sem deixarem a produção agrícola a fornecedores estrangeiros, com padrões inferiores. Os alimentos importados têm de facto, no entanto, de cumprir os padrões de segurança alimentar da UE e, nesse aspecto, confrontam-se com os mesmos custos.
Existem, todavia, problemas difíceis relacionados com aspectos ambientais, de bem-estar animal e outros aspectos técnicos de métodos de produção, que não são de fácil resolução. A UE deveria ser mais enérgica nas negociações internacionais, para assegurar que os produtos sejam, por exemplo, adequadamente rotulados, e a procurar uma harmonização internacional de padrões de produção éticos e ambientais. Caso os legisladores europeus decidam aplicar padrões mais elevados aos respectivos agricultores, os consumidores europeus precisarão de ser devidamente informados dos atributos dos bens importados.
Desenvolvimento rural: Quando um país pretende subsidiar uma estrutura mais descentralizada, trata-se mais de uma escolha nacional do que um bem público. Não obstante, o princípio de coesão conferiu à UE um papel de ajuda às regiões menos favorecidas para desenvolverem o máximo do seu potencial. O desenvolvimento rural pode integrar essas políticas em áreas remotas e subpovoadas, mas os programas de desenvolvimento rural da actual PAC não são dirigidos, prioritariamente, para as áreas com necessidades mais prementes nem para os agricultores com mais baixos níveis de rendimento, nem se integram, habitualmente, numa visão abrangente e coerente de desenvolvimento local.
Formato da futura PAC
Concordamos que a Europa precisa de uma política agrícola, mas precisa de uma política que se concentre em áreas onde a acção da Europa acrescente o maior valor possível. A PAC não constitui o enquadramento de políticas certo para realçar a eficiência da agricultura, para mudar as distribuições de rendimento na UE e fora dela, para promover a segurança alimentar a nível mundial, ou para encorajar o desenvolvimento rural. O papel futuro da PAC deverá ser o de conceder aos agricultores incentivos apropriados para fornecerem os bens públicos europeus exigidos pela sociedade, particularmente na área do ambiente, incluindo a luta contra as alterações climáticas, a protecção da biodiversidade, a melhoria do fundo de fertilidade dos solos e a gestão dos recursos hídricos.
Uma futura PAC em linha com esse objectivo iria diferir dos fundamentos da actual PAC. O primeiro pilar deveria ser progressivamente abolido. Inicialmente introduzido para compensar os agricultores através do apoio aos preços, o principal instrumento actual do primeiro pilar – Regime de Pagamento Único – não promove os interesses da sociedade. Deverá ser abolido de forma faseada e deverão ser concebidos novos esquemas em que as ajudas sejam concedidas não em função do comportamento passado, mas dos comportamentos futuros. As políticas ao abrigo do segundo pilar deverão ser escrupulosamente reavaliadas. Apenas se deverão reter as políticas que promovam bens públicos genuinamente europeus, que sejam eficientemente dirigidas aos seus objectivos e que evitem um custo orçamental exagerado.
Como indicado acima, alguns bens públicos legítimos que são produzidos pela agricultura deverão ser, no futuro, financiados pelos orçamentos nacionais e não pela UE. No entanto, existe o perigo real de as autoridades nacionais ou subnacionais virem a implementar políticas que distorçam o mercado interno. Maiores acréscimos na flexibilidade dos Estados Membros terão de ser contrabalançados por uma supervisão mais apertada por parte da EU na implementação dos programas nacionais apoiados pela UE, bem como dos esquemas nacionais. Isso requer normas firmes e claras da UE, através de monitorização e avaliação, e através de uma aplicação eficaz e coerente das normas.
As alterações de políticas propostas irão facilitar elas próprias uma concorrência mais leal no mercado interno. As actuais distorções são substanciais, porque os níveis dos subsídios do primeiro e segundo pilares diferem entre países e agricultores, e porque alguns países continuam a investir na modernização das explorações, enquanto outros preferem orientar os apoios públicos para protecção ambiental ou para qualidade de vida rural. Um movimento coerente por toda a UE no sentido de apoios que promovam os bens públicos poderá assim promover condições de concorrência equitativas que, presentemente, se encontram destorcidas.
Uma excessiva concentração de poder de mercado na comercialização a retalho ou na produção de bens alimentares pode ser prejudicial tanto para os agricultores como para os consumidores. A UE precisa de combater qualquer situação de abuso de poder de mercado ao longo da cadeia alimentar, para assegurar que todos os que nela participam conseguem transacções justas.
Como resultado das reformas de política agrícola na UE e no resto do mundo e do processo de alterações climáticas em curso, iremos estar sujeitos a uma crescente instabilidade nos preços dos mercados mundiais. Quando os preços de mercado caem, os governos ficam sob forte pressão no sentido de intervir de modo a proteger os agricultores; e isso poderá prejudicar o futuro da PAC. A UE tem de resistir a esses apelos, em especial nos casos em que a protecção dos agricultores europeus é feita à custa dos agricultores dos países em vias de desenvolvimento. Mas a UE precisa igualmente de reconhecer as reais preocupações que os preços baixos podem criar. Isso sugere que uma futura reforma da PAC deverá ser acompanhada de novas políticas que permitam aos agricultores utilizar instrumentos de gestão de risco, e que criem redes de segurança do rendimento para enfrentarem preços mundiais de mercado excepcionalmente deprimidos.
Se a reforma da PAC estiver em linha com estas recomendações, conseguir-se-á um abastecimento de bens alimentares de maior confiança, menores emissões de gases com efeito de estufa, uma maior biodiversidade e uma gestão mais responsável dos solos e dos recursos hídricos, a custos inferiores. Poderá igualmente assegurar uma concorrência leal entre os agricultores no mercado interno e facilitar políticas comerciais justas que façam realçar a legitimidade da UE na comunidade global. Ainda, para além disso, permitirá uma reorientação dos fundos orçamentais disponíveis para a produção de bens públicos europeus. A reforma da PAC é, por consequência, um passo importante para a construção de uma União Europeia mais eficaz, que ganhe e seja capaz de manter o apoio dos seus cidadãos. “
Francisco Avillez
Professor Emérito do ISA, UTL